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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


'Ruptura' separa vida e trabalho: é possível? Há benefícios à saúde mental?

Na história, Mark (Adam Scott) passa por uma procedimento cirúrgico que para separa vida e trabalho Imagem: Reprodução/YouTube Apple TV

De VivaBem, em São Paulo

05/07/2022 04h00

Imagine que, assim que você entra no local de trabalho, seu cérebro automaticamente se esquece de toda sua vida pessoal. Problemas, sentimentos, emoções? Nada vai com você. E assim que você deixa o ambiente, nenhum acontecimento que ocorreu ali fica na sua memória "externa".

Pensou? É essa a história da série "Ruptura" (Apple TV+), que traz um cenário onde é possível fazer um procedimento cirúrgico que divide, literalmente, uma região do cérebro em duas partes, criando uma pessoa do trabalho e uma pessoa fora dele —e tudo isso com consentimento dela (atenção, o texto abaixo pode ter spoilers).

A série aborda todo um sistema que prioriza a produtividade máxima, como se os humanos fossem verdadeiras máquinas, que estão ali apenas para trabalhar, sem nenhum questionamento. E, bom, nós já sabemos onde tudo isso pode acabar: síndrome de burnout, depressão, ansiedade, entre outros transtornos psicológicos.

É possível separar o "eu do trabalho" e o "eu fora do trabalho"?

Muita gente deve ter pensado como seria interessante, pelo menos em algumas situações, esquecer-se daquele problemão que ocupa sua cabeça o dia todo, seja ele familiar, financeiro ou amoroso. Ou, então, imagine chegar em casa sem pensar em todas as tarefas do trabalho (afinal, você nem sabe o que faz)?

Agora, trazendo para a vida real, sem tecnologias avançadas como essa, será que essa divisão traria algum benefício para a saúde mental? Ou melhor, é possível separar uma coisa da outra?

Em "Ruptura", personagens fazem procedimento que separa duas partes do cérebro Imagem: Reprodução/YouTube Apple TV

Os profissionais consultados por VivaBem são enfáticos em dizer: não, não é possível, tampouco benéfico. "O ideal seria que, enquanto a pessoa trabalhe, ela seja capaz de focar totalmente nisso, eliminando as interferências da vida, problemas e dificuldades", diz Sônia Palma, psiquiatra da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo. "Mas isso não é possível nem saudável. A gente leva para o trabalho as experiências da vida fora dele, tanto as boas como as ruins."

As lições que aprendemos com a vida e as emoções que sentimos durante o dia nos ajudam de várias formas, inclusive resolvendo problemas no próprio trabalho (e vice-versa).

"Às vezes, um dia ruim pode ser melhorado quando a pessoa tem um ambiente de trabalho legal, e o inverso também é verdade", afirma o psicólogo Rodrigo Costa de Oliveira, da Unidade de Atenção Psicossocial do Huol (Hospital Universitário Onofre Lopes), da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), da rede Ebserh.

Vida pessoal e trabalho: é preciso equilíbrio, mas como?

Não é uma tarefa fácil. Quantas vezes não entramos "de cabeça" no trabalho quando terminamos um relacionamento? Em quantos momentos não levamos trabalho para dentro de casa?

Na série, funcionários da empresa não sabem nada da vida pessoal deles (e vice-versa) Imagem: Reprodução/YouTube Apple TV

Resumindo: uma coisa pode ajudar a outra, mas precisamos aprender a limitar cada espaço —algo que foi muito afetado durante a pandemia, conforme os próprios especialistas lembram. "Com o trabalho online, devido à pandemia, isso ficou mais confuso. Acho interessante a série neste momento em que as pessoas estão saindo deste lugar online", diz a psiquiatra da BP.

Com o contexto de altos índices de desemprego no país, tem muita gente que possui um trabalho que é puramente uma questão de sobrevivência. Nem todo mundo tem o "luxo" de refletir sobre tais questões, segundo Claudia Lúcia Menegatti, psicóloga e professora do curso de psicologia da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).

De uma forma geral, a psicóloga explica que para saber limitar cada ambiente é preciso estar presente, procurando símbolos que lembrem que, a partir deste momento, acabou o momento de trabalho.

"Por exemplo, eu estou aqui agora falando com você, do meu consultório, isso me lembra o trabalho", diz. "Quando eu chego em casa, encontro símbolos que me ajudem a lembra de descansar, e isso é muito individual, e é a tarefa mais difícil de todas pelo ritmo de vida que estabelecemos", fala.

Menegatti cita os grupos de WhatsApp que funcionam o dia inteiro, com informações do trabalho o tempo todo, mas a ideia é, por exemplo, deixar o celular de lado enquanto janta com a família ou assiste a uma série.

"Em termos de saúde mental, precisamos aprender a navegar contra a maré, que diz: 'faça mais', invadindo sua vida pessoal. Com isso, perdemos a capacidade de relaxar, mas para ser produtivo, é preciso ter pausa", afirma a professora da PUC-PR.

Excesso de trabalho e o adoecimento

Na série, como o "eu do trabalho" é incomunicável com a pessoa do lado de fora, a sensação é que eles trabalham em looping, sem dormir. Uma ideia angustiante, principalmente para uma das personagens, a Helly (Britt Lower), que é a mais recente contratada da empresa, a Lumon.

"Quando a gente funde trabalho e vida pessoal, a maioria pode entrar em adoecimento. Vamos pensar que o burnout começou a ser validado como doença ocupacional neste ano pela OMS [Organização Mundial da Saúde]", diz Oliveira.

De acordo com o psicólogo, esse adoecimento ocorre principalmente quando a pessoa fica em constante alerta e ansiosa, em contato direto com os estressores. "São os prazos, os horários de trabalho sem lógica, a pessoa que fica até meia-noite e não para. Sem se desligar, você adoece", fala. "Na série, a solução para isso é nenhum lado ter contato com o outro porque aí você não teria o desgaste. Mas a vida dentro dessa ruptura é ainda mais angustiante e torturante."

Funcionários da empresa responsável pela ruptura começam a fazer questionamentos Imagem: Reprodução/YouTube Apple TV

"A série também traz esse ponto de a empresa ser sua família, o que nem sempre é verdade. Não dá para entrar nisso, senão o trabalho fica muito desumanizado", afirma a psiquiatra da BP. Para ela, essa visão poética, de "vestir a camisa da empresa", precisa ser vista com cuidado. "A pessoa começa a trabalhar o tempo todo, ainda mais neste tempo de home office, levando ao burnout, ansiedade e exaustão."

Não à toa que o personagem principal Mark (Adam Scott), ao ler um livro do cunhado Ricken (Michael Chernus) por acaso dentro da empresa —e sem saber que é seu parente— começa a refletir sobre tudo que acontece ali. "Você acha que precisa do seu emprego. Seu emprego precisa de você e não o contrário", diz o trecho.

Fuga dos sentimentos não é a resposta

Na série, a esposa de Mark morre em um acidente de carro. Em uma conversa fora da empresa, em que todos os colegas dele sabem que ele fez a ruptura, algumas pessoas questionam a decisão dele. A resposta dele é muito simples: há quem de fato queira isso; esquecer-se das dores pelo menos por 8 horas ao dia.

Mas será que fugir de sentimentos, como o luto, é a resposta? De acordo com os especialistas, não, essa decisão é ainda pior.

"O efeito é exatamente o contrário", diz a professora da PUC-PR. "Quando mais eu evito a emoção, mais ela assombra. Com isso, muitas pessoas cronificam o processo."

Geralmente, falar e colocar para fora os sentimentos faz com que as pessoas se sintam melhores. Dizer que está triste, aceitar que o processo é doloroso e que você está vulnerável pode aumentar o poder de melhora.

Menegatti dá um exemplo da série para mostrar como os dois mundos, em conjunto, podem ser bons: se os amigos de Mark soubessem da morte da esposa, eles poderiam agir como uma rede apoio. "Sabendo disso, posso ajudá-la em um dia que a pessoa está mais ansiosa ou triste, chorando, por exemplo", explica. "Tanto na vida pessoal como na profissional, ter uma rede de apoio pode ajudar em muitos momentos".

É preciso estar por inteiro nos lugares

Por fim, o psicólogo da UFRN comenta que a ideia abordada em "Ruptura" não é muito diferente do que vivenciamos com as redes sociais. "É aquele conceito de ficarmos altamente fragmentados: somos uma coisa no Instagram, no Facebook, outra no casamento e outra no trabalho. Vou me fragmentando e, daqui a pouco, não sou mais nada", diz.

O problema disso, segundo o especialista, é acabar gerando mais gatilhos de estresse para dar conta de tantas demandas externas de todas essas facetas. Para completar a ideia de Oliveira, Menegatti, da PUC-PR, reforça a importância em tentar "estar por inteiro" nos lugares —como ocorre na prática de mindfullness. Ela explica que algumas perguntas podem ajudar.

"Onde estou? Como estou me sentindo aqui e agora? Do que eu preciso?". Tudo isso pode ajudar a saber o que precisamos para aquele momento. Seja descanso, relaxamento, foco ou concentração.

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