A São Paulo Fashion Week tem quase 50 edições de estrada. Pouca coisa no Brasil dura tanto, especialmente no contexto da moda. O evento tem passado por grandes mudanças e briga para se manter relevante nesses tempos tão estranhos. E deu um passo acertado nesse sentido.
Nesta edição, o Projeto Estufa, braço do evento, ganhou espaço e força com uma série de palestras sobre temas quentes. Embora haja críticas e considerações a serem feitas sobre o conteúdo de algumas discussões, o movimento foi positivo: nessa estufa estão sendo cultivados não só novos estilistas, mas também um entendimento do que a própria SPFW precisa para se renovar. A questão agora é ir além da própria sobrevivência da semana.
De alguma maneira, que alguns definirão como evolutiva e outros como perversa, mas de toda forma simbólica, o evento começou sua reinvenção a partir da incorporação do que a moda, espelhando a sociedade, rejeitou por muito tempo. As temáticas políticas e raciais, ou seja, as demandas externas e internas geradas pela amplificação do debate sobre racismo e exclusão, trouxeram para a SPFW grifes como a LAB, de Emicida e Fióti, e, agora, nomes como Angela Brito e Isaac Silva. Vale lembrar que o evento chegou a ser notificado pelo Ministério Público e teve de fazer um acordo para garantir a presença de modelos negras nas passarelas. De lá pra cá muita coisa mudou.
Não se trata apenas de acreditar que todos mudaram e se desconstruíram, mas pensar que um certo limite civilizatório foi colocado, e que passou a ser comercialmente perigoso permanecer abertamente preconceituoso. Há, sim, milhares de pessoas, empresas e grifes que mudaram de fato sua visão e postura nesse sentido.
Outros são como aquela música da Rihanna "you´re only sorry you got caught", ou seja, gente que só mudou porque foi pega no pulo. Mas importante mesmo é a introdução do limite, e a noção de que certas coisas não podem ser ditas publicamente sem consequências. Nesse contexto, os truques e os aproveitadores começam a ser identificados com mais frequência.
Diante de um governo que ataca a cultura, que permite e emite colocações racistas, odiosas, preconceituosas em todos os níveis, esses limites estão sendo testados. Nesse sentido, é importante que a SPFW finque pé e sustente em seu novo espaço de palestras e debates um discurso firme. Que amplie a pauta democrática, que defenda que pessoas não são empresas, que a sociedade precisa cuidar de suas instituições e que a moda não se faz só de oportunistas, que há gente séria e comprometida trabalhando. Porque de fato há.
Queremos que, nas próximas, além de especialistas do mercado, também haja gente do mundo acadêmico, pesquisadores de universidades públicas, psicanalistas, profissionais da saúde, artistas comprometidos com o desenvolvimento da cultura, representantes de todas as esferas da sociedade.
A moda de fato tem uma conexão com o mundo, algo de muito forte que lida com memórias, afetos e modos de identificação muito importantes. E por isso mesmo não pode ficar muito presa no mundo do marketing e rejeitar essa ideia da vida como gestão de si mesmo. Que a nova fase seja, acima de tudo, sobre a complexidade de pensamento que estabelece diálogos amplos, muito além das palavras-chave.