SPFW mira seu futuro

Com novos estilistas e maior representatividade, evento se aproxima das 50 edições buscando se reinventar

Vivian Whiteman Colaboração para Universa ROBERTO CASIMIRO - 17.out.2019/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

A São Paulo Fashion Week tem quase 50 edições de estrada. Pouca coisa no Brasil dura tanto, especialmente no contexto da moda. O evento tem passado por grandes mudanças e briga para se manter relevante nesses tempos tão estranhos. E deu um passo acertado nesse sentido.

Nesta edição, o Projeto Estufa, braço do evento, ganhou espaço e força com uma série de palestras sobre temas quentes. Embora haja críticas e considerações a serem feitas sobre o conteúdo de algumas discussões, o movimento foi positivo: nessa estufa estão sendo cultivados não só novos estilistas, mas também um entendimento do que a própria SPFW precisa para se renovar. A questão agora é ir além da própria sobrevivência da semana.

De alguma maneira, que alguns definirão como evolutiva e outros como perversa, mas de toda forma simbólica, o evento começou sua reinvenção a partir da incorporação do que a moda, espelhando a sociedade, rejeitou por muito tempo. As temáticas políticas e raciais, ou seja, as demandas externas e internas geradas pela amplificação do debate sobre racismo e exclusão, trouxeram para a SPFW grifes como a LAB, de Emicida e Fióti, e, agora, nomes como Angela Brito e Isaac Silva. Vale lembrar que o evento chegou a ser notificado pelo Ministério Público e teve de fazer um acordo para garantir a presença de modelos negras nas passarelas. De lá pra cá muita coisa mudou.

Não se trata apenas de acreditar que todos mudaram e se desconstruíram, mas pensar que um certo limite civilizatório foi colocado, e que passou a ser comercialmente perigoso permanecer abertamente preconceituoso. Há, sim, milhares de pessoas, empresas e grifes que mudaram de fato sua visão e postura nesse sentido.

Outros são como aquela música da Rihanna "you´re only sorry you got caught", ou seja, gente que só mudou porque foi pega no pulo. Mas importante mesmo é a introdução do limite, e a noção de que certas coisas não podem ser ditas publicamente sem consequências. Nesse contexto, os truques e os aproveitadores começam a ser identificados com mais frequência.

Diante de um governo que ataca a cultura, que permite e emite colocações racistas, odiosas, preconceituosas em todos os níveis, esses limites estão sendo testados. Nesse sentido, é importante que a SPFW finque pé e sustente em seu novo espaço de palestras e debates um discurso firme. Que amplie a pauta democrática, que defenda que pessoas não são empresas, que a sociedade precisa cuidar de suas instituições e que a moda não se faz só de oportunistas, que há gente séria e comprometida trabalhando. Porque de fato há.

Queremos que, nas próximas, além de especialistas do mercado, também haja gente do mundo acadêmico, pesquisadores de universidades públicas, psicanalistas, profissionais da saúde, artistas comprometidos com o desenvolvimento da cultura, representantes de todas as esferas da sociedade.

A moda de fato tem uma conexão com o mundo, algo de muito forte que lida com memórias, afetos e modos de identificação muito importantes. E por isso mesmo não pode ficar muito presa no mundo do marketing e rejeitar essa ideia da vida como gestão de si mesmo. Que a nova fase seja, acima de tudo, sobre a complexidade de pensamento que estabelece diálogos amplos, muito além das palavras-chave.

"Precisamos fazer um produto bem feito, que demore para acabar e que possa ser usado por mais tempo. Quando se pensa em fazer uma roupa, tem que se ir além da moda e levar em conta a durabilidade da peça. Isso é ser sustentável

Reinaldo Lourenço, estilista

Rodrigo Moraes - 16.out.2019/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO Rodrigo Moraes - 16.out.2019/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO

Agora é que são eles

  • "Me imponho como homem trans"

    O modelo Sam Porto, 25, faz questão de chegar aos lugares se apresentando como um homem transgênero. "Acho que é importante eu me posicionar para mostrar que pessoas como eu estão no mundo da moda e que merecem respeito", diz ele, recordista de desfiles nesta edição. Na passarela, ele exibe sem medo a cicatriz resultante da retirada das mamas.

    Imagem: Divulgação
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  • "Não tive em quem me espelhar"

    Rita Carreira é gorda e negra. Essas duas características podiam deixá-la muito longe do evento. Assim, entrar para o casting de três desfiles tem gosto e jeito de vitória. "Não era algo comum. Até agora", diz Rita. "É engraçado perceber onde cheguei, porque já ouvi dona de marca dizendo que não me queria como modelo porque eu 'empobreceria' a campanha dela."

    Imagem: Reprodução/Instagram
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  • "Quanto mais racismo, mais me fortaleço"

    A modelo Rayane Brown, 21, é filha de cabeleireiro e empregada doméstica. Nascida em Aracaju, migrou da infância simples para as passarelas. "Só quem veio da favela sabe a difícil realidade. Para mim, não foi diferente." Modelo profissional há pouco mais de um ano, viu sua vida se transformar.

    Imagem: Divulgação
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  • "MInha namorada me convenceu"

    Marcelo Lima passava os dias arrumando mercadorias em um supermercado. Desfilar em passarelas e participar de sessões de fotos não estavam em seus planos. O que mudou sua vida foi um concurso do qualele participou por causa da ex-namorada. "Foi ela quem me convenceu a ser modelo."

    Imagem: Divulgação
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RODRIGO MORAES/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO RODRIGO MORAES/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO
Divulgação

A questão ambiental e a identidade de marca

A gente sabe que está dureza defender a moda. Ela vai na contramão do bom modelo ambiental. É uma das indústrias com problemas gigantes e sérios de precarização do trabalho. E muitas vezes ainda vende uma imagem de sucesso hipócrita na proposta e elitista na prática.

Os problemas de criação são sérios. Há novos estilistas, há novas conquistas de espaço. Mas também há um recuo criativo de imagem e discurso e um avanço excessivo e muitas vezes nocivo da nova estrutura do marketing.

Sim, as campanhas e ações inovadoras (o termo disruptivo em sua atual onda de uso é vazio e cafona) são superimportantes no contexto das marcas.

Mas há limites. A diferença, o traço de identidade de um designer ou da própria marca estão na base da ação da moda, só existe porque nasceu um dia de um conceito. A marca não se cria a partir da "experiência de marca". Mas a partir da marca, a experiência cria meios para atualizar imagens e todo um universo de referências.

Em outros termos, a experiência Chanel só existe e só pode ser renovada através do núcleo Chanel, seus mitos, sua história fundadora. É fato que, pensando assim, não temos nenhuma grife desse porte. É tudo mais novo, menos histórico. Mas devemos pensar no quanto grifes que se consolidavam a passos largos foram mal compreendidas e detonadas por grupos de gestão na década passada.

Houve um período de muita homogeneização da imagem, como se rolasse uma epidemia dessas injeções que deixam todo mundo com o mesmo molde de cara "harmônica". A busca pelo lugar comum das vendas fez com que muitos criadores agissem como meros repetidores de tendências, sem que as vendas de fato se mantivessem em patamares desejáveis. Tudo isso impactou negativamente as últimas edições da SPFW

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