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"Não há superação na Paralimpíada, eles são bons atletas", afirma ativista

Luciana Viegas é ativista do "Vidas Negras com Deficiência Importam" e está no Instagram como @umamaepretaautistafalando Imagem: Arquivo pessoal

Nathália Geraldo

De Universa

26/08/2021 04h00

A ativista Luciana Viegas descobriu que tinha autismo quando o diagnóstico do mesmo transtorno chegou para seu filho, Luiz, em 2018. Foi só depois que a professora investigou sua própria história que resolveu usar com mais liberdade a conta do Instagram que havia criado, Uma Mãe Preta Autista Falando, para ter pontes com outras mulheres negras autistas —e quem mais se interesse por debater capacitismo e direitos dos PCDs.

Há um ano, idealizou o Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), inspirado em grupo semelhante que emergiu após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, em junho de 2020.

Na terça-feira, enquanto rolava o início das Paralimpíadas de Tóquio, Luciana foi autora de um primeiro passo histórico para o movimento. Representou em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) as vozes contrárias ao decreto 10.502, que trata sobre a Política Nacional de Educação Especial.

O decreto prevê que o governo federal, estados e municípios ofereçam "instituições de ensino planejadas" para o atendimento de pessoas com deficiência e atípicas que "não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas" e que "apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos".

A seguir, a ativista e professora explica por que é contra o decreto e explica como as Paralimpíadas são um chamado para revermos nossa perspectiva sobre diversidade na sociedade e inclusão.

Universa - Por que o decreto da Política Nacional de Educação Especial foi alvo de protesto por parte da comunidade de pessoas com deficiência e atípicas?

Luciana Viegas - O decreto vai na contramão de que as pessoas com deficiência estudem e tenham apoio necessário dentro da escola regular. Se falou muito na audiência pública realizada na terça, da qual participei, sobre níveis de deficiência. Já tivemos isso na história, seres humanos colocados em níveis específicos —aconteceu na época de Hitler.

Ao mesmo tempo que o decreto fala de escolas especiais e de clínicas de reabilitação, centros de especialidades e de escolas bilíngues de libras e português, algo que é um grande debate na comunidade surda. Querem colocar a escola bilíngue como solução, por afirmarem que dentro da escola regular falta ensinar libras. Mas falta muita coisa na escola regular.

Para mim, quando começamos a criar espaços de segregação, não se trata o problema na raiz, de que o sistema educacional brasileiro é falido, sucateado.

Sou veementemente contra esse decreto. Escola é lugar de gente. Isso determina o que é a Educação.

Há quem veja o decreto como algo positivo. Pais e responsáveis estão sendo confundidos sobre o real efeito dele?

A principal estratégia de qualquer projeto político de exclusão é falar que o inimigo é o outro, e não quem de fato o é.

Eu tenho dificuldades com a inclusão do meu filho, Luiz, de 4 anos e que é autista, na escola. Tenho que brigar toda semana com professor, com a comunidade escolar, porque não se entende que se há um aluno autista, não dá para pensar só para pessoas que falam. É preciso sair desse sistema, que começa na formação dos professores, capacitista.

Pai e mãe não querem que os filhos sofram. Então, é normal concordar quando ouvem que "pessoas especiais precisam de cuidados especiais". Isso pode enganar muito. E, durante muito tempo, o Estado negou atenção a essas pessoas. Não tinha nada e quem falava com elas eram as instituições e escolas especializadas mesmo, com um olhar médico.

Elas foram aliadas na história do movimento de pessoas com deficiência. Agora, estamos em um momento primordial: ou definimos o que é deficiência a partir da Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência, que diz que tudo bem ter espaços de terapias, mas que não ocupem o lugar da escola, ou não saberemos quais são as intenções dessas escolas, se com um teor afetivo, político ou por causa dos investimentos que esse governo fez nessas instituições... É muito nebuloso.

Ao falar de inclusão de crianças com deficiência, o ministro da Educação Milton Ribeiro disse que não se quer "inclusivismo". O que significa essa palavra?

O que ele fala que é 'inclusivismo' é a defesa ampla da pessoa com deficiência existir nos espaços. É uma palavra recorrente nos debates, atrelada ao falso conceito de que a gente vive no mundo da Lua. De que não vemos a realidade.

Quando o ministro menciona isso, e mistura conceitos de educação inclusiva com segregada —e faz a confusão de forma pensada— é uma cortina de fumaça conceituar que seria ruim uma pessoa com deficiência estar dentro de certos lugares.

O que é o capacitismo? Como as Paralimpíadas podem ajudar nas pautas das pessoas com deficiência?

Atletas brasileiros treinam antes do início das Paralimpíadas de Tóquio Imagem: Ale Cabral/CPB

O capacitismo é uma opressão ou forma de discriminação sofrida pela pessoa com deficiência em função da sua deficiência. Dizer para alguém autista, por exemplo, que 'é retardado', que 'não quer conversar com as pessoas', que 'é antissocial'. Há também o capacitismo estrutural, e parafraseio muito ousadamente o Silvio Almeida, em que a estrutura capitalista se move contra nós.

Espero que a gente consiga acompanhar melhor essa edição das Paralimpíadas para perceber que são atletas monstros e que nada ali é sobre superação da deficiência. São bons porque têm deficiência e porque o jogo é diferenciado para isso.

Não são pessoas 'super-humanas'. E nem toda PCD vai ser assim. São dois extremos, de ser sobrenatural e de não ser ninguém, que não nos deixam estar no lugar mediano, de viver, beber uma cerveja no final de semana, namorar.

Quais são os estereótipos que tentam te colocar?

Os estigmas do racismo me perpassam, sou autista, tenho TDAH e alta habilidade, por esse último, diziam que eu era um gênio, que dava conta de todos os livros... Na verdade, consigo estudar e dou conta de temas complexos, mas, não entendo relações sociais básicas, as intenções das pessoas, fico confusa com a comunicação diária.

Sou desvalidada porque sou mulher, negra, favelada, autista. Tem pessoas que pegam vídeos meus no Instagram, e me questionam a referência das palavras que eu coloco. Outras questionam se sou autista. É um confronto racista e capacistista.

A TV Globo transmitiu em propaganda a frase "Campeões da Vida" para divulgar as Paralimpíadas e foi criticada por ativistas PCDs nas redes sociais e, depois, retirou o slogan. Por que era problemático?

"Campeões da vida" é como se os atletas tivessem deficiências a superar e, depois disso, chegam em determinado lugar. Isso vem de a gente não ler a deficiência como identidade.

Há críticos ao que penso, mas me guio pelo seguinte entendimento, usando meu caso como exemplo: minha diversidade é o autismo, que traz barreiras sensorial, comunicacional e da fala. Só existe limitação porque a sociedade não me deixa acessar determinadas coisas. O que causa deficiência não é a limitação, mas ela em contato com as barreiras.

Luciana Viegas e seu filho, Luiz. Ativista fala sobre política de educação inclusiva, Paralimpíadas e representatividade autista Imagem: Arquivo pessoal

O autismo faz parte do que sou, não preciso superá-lo. Se tivesse uma pílula a cura dele, não tomaria. Nem daria para meu filho.

Por que resolveu criar o movimento Vidas Negras com Deficiência Importam e desde quando ele existe?

Faz um ano, e fui primeiro fui às redes para entender se tinham mais mulheres negras autistas. Sempre fui aliada do movimento de PCDs, fazendo trabalho de base, mas algumas outras mulheres foram chegando pela internet, comecei a estudar mais sobre racismo e capacitismo.

Luciana Viegas é ativista do Vidas Negras com Deficiência Importam, VDNI, movimento ligado a entidades negras de direitos Imagem: Arquivo pessoal

Após a morte de George Floyd, um grupo nos Estados Unidos foi às manifestações como "Black Disabled Lives Matter", e decidimos fazer um aqui. A gente trabalha dentro das favelas, estamos na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, junto com o pessoal do Coletivo Marginal, estamos dentro da Coalização Negra por Direitos, da Rede de Articulação de Resistência e proteção contra o genocídio do povo preto. Além de sermos antirracistas e anticapacitistas, somos um movimento abolicionista penal e antimanicomial. Também abraçamos as pessoas que são usuárias de substâncias.

Em vários movimentos sociais, as mulheres são linha de frente. Como acontece no de pessoas com deficiência?

Ele é muito embranquecido, e sinto que há uma resistência a pessoas negras à frente do movimento, sobretudo uma mulher. Mas, sim, historicamente o movimento de inclusão parte de nós —especialmente pela questão de inclusão escolar.

Acho ainda que temos uma institucionalização grande da luta e homens brancos à frente da narrativa. Pais de autistas que dizem ter 'anjos azuis', mas nós vamos com o movimento de rua, nas favelas e de mulheres negras, porque somos as mais atingidas por essas políticas discutidas.

Por que criou o perfil no Instagram com o nome "Uma mãe preta autista falando"?

Fui muito silenciada. Quando veio meu diagnóstico, quis que mais mulheres negras autistas chegassem até mim. Criamos uma rede de troca, afeto e segura entre as mulheres, que são a maior parte do meu público. De repente, as pessoas estavam me chamando para falar sobre raça e capacitismo porque também se identificavam.

O que acha da representatividade de pessoas atípicas e com deficiência na mídia?

Algumas séries e filmes trazem a realidade de forma diferente, às vezes engraçada e pessoal, que acho legal. Parte esmagadora ainda tem estereótipos reforçados. Sobre pessoas com autismo, é sempre com muito sofrimento da pessoa, da família... E não é assim, na maior parte do tempo. Minha crítica maior é que falta representatividade de pessoas pretas com deficiência. Já faz pouco, a maior parte é de estereótipos e, quando fazem, é só com gente branca. As pessoas negras com deficiência precisam ser vistas.

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