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Repórter de Universa narra dias com covid: "Esperar passar é aterrorizante"

Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Camila Brandalise

De Universa

06/01/2021 04h00

O resultado positivo no exame veio em meados de dezembro. Os amigos já perguntavam: 'Como vai ser seu Natal? E o Ano Novo?'. Eu não tinha resposta. Só queria estar viva depois dos dias de total isolamento que começavam ali.

Mesmo com sintomas considerados leves, o mal-estar e a fadiga me deixaram tão incapacitada a ponto de cansar só por estar em pé lavando a louça do almoço. Como minha família mora em Curitiba, passei esses dias sozinha na minha casa, em São Paulo. Convivi só com a certeza aterrorizante de ter um microorganismo letal circulando pelo meu corpo.

No final do ano, ao assistir aos vídeos de pessoas em festas de Réveillon Brasil afora, me dava um frio na espinha. Mas, confesso, não era de revolta. Batia era uma tristeza imensa, uma pena. Mais ou menos como quando você passa por um sofrimento grande e conhece uma pessoa que está prestes a viver o mesmo.

Queria que acontecesse um milagre e que ninguém se contaminasse ali. Não desejo que ninguém passe pelo que passei. Nem quem está ajudando a disseminar o vírus.

Quando fiz o exame, até eu duvidava que o resultado desse positivo - fiz aquele que enfiam um cotonete imenso no nariz e na garganta. Ouvi, inclusive do médico, que poderia ser centenas de coisas. Achei que o mal-estar e a dor de cabeça forte fossem estresse. Mas eu sabia que tinha algo errado com meu corpo.

'Se for covid, não parece que vai ser um caso grave', diagnosticou o doutor. Não faço parte do grupo de risco e tenho histórico de atleta - é sério. Sou corredora, em 2019, completei uma meia maratona e neste ano iria me preparar para uma prova de 42 km. Me acalmei.

Abri o site do hospital em uma segunda-feira à tarde para ver o resultado. Pronta para contar ao crush que viria jantar comigo naquela noite que, como esperávamos, estava tudo bem comigo. De repente: DETECTADO.

O susto foi tanto que comecei a chorar de medo. Nove meses depois do começo da pandemia no Brasil, tinha chegado a minha vez. Acreditava que, passado tanto tempo, talvez eu nem pegasse mais, estaria já imune. São essas ignorâncias às quais a gente se apega que podem nos colocar em risco.

Passado o pânico inicial, me tranquilizei porque, fisicamente, eu até me sentia melhor, não havia piorado. Era um bom sinal. Estava no sétimo dia desde os primeiros sintomas, eu só precisaria aguentar mais três. Segundo os médicos, é nesse período que os casos costumam se agravar. À noite a fadiga ficou mais forte. Concluí que era resultado do abalo emocional. No outro dia, provavelmente, estaria melhor. Mas não.

Foram mais cinco dias em que me senti muito, muito mal. Pensando neles agora, parecem ter durado um ano. O tempo se arrastava e eu contava hora por hora, comemorando que não tinha piorado e que estava mais perto de melhorar.

'Não tinha fôlego nem para mandar áudio no WhatsApp'

Na manhã após o resultado positivo, fui fazer café e me apoiei na pia. Percebi que não aguentava ficar muito tempo em pé. Já tinha lido relatos desse tipo mas não imaginei que a sensação de cansaço fosse tão pungente. Era como se meu corpo me exigisse ficar sentada ou deitada, se não ele iria reclamar.

Tirei licença do trabalho e pensei que, nesses dias, conseguiria ter algumas ideias para tocar quando voltasse. Mas a fadiga era tanta que eu mal conseguia pensar. E sentia muito medo. Evitava pensar na gravidade do que estava vivendo para não entrar em pânico. Eu só queria que o tempo passasse.

Por quatro noites, ia para a cama às 2h e acordava às 5h e, nessas três horas, despertava algumas vezes.

Não conseguia me entregar ao sono com medo de piorar enquanto dormia. Saía da cama, ia para o sofá e via as séries ou os filmes mais leves e bobos que encontrava. Foi um festival de comédia romântica. Quando algum acabava, eu pensava: 'Ok, que bom, se passaram duas horas e eu não piorei. Vamos para o próximo'.

Não tive febre nem queda na oxigenação. Mas ficava ofegante só de levantar do sofá. Um dia, fui tentar mandar uma mensagem em áudio no WhatsApp para um amigo e, antes de terminar a primeira frase, fiquei sem ar. Tive que parar e respirar fundo. Tentei de novo, desisti. Me apavorei. Pensei: 'Meu Deus, eu não consigo gravar um áudio'.

Nesse dia comecei a pensar num plano de emergência. Para qual hospital vou? Quem eu vou avisar? E se ouvir de uma enfermeira que serei intubada e entrarei em coma induzido? Ainda choro um pouco ao me lembrar.

Sabia que o risco de piorar era pequeno. Mas quando você está com um vírus que já matou quase 200 mil brasileiros no seu corpo e sem ar para completar uma frase, qualquer certeza cai por terra. Meus familiares estão em Curitiba, mas apesar disso me sentia amparada por eles e por amigas queridas que se fizeram muito próximas (Juliana, Andressa, Nath e Ana, essa é pra vocês). Mas era a solidão característica da doença que me congelava.

Camila entrevista a enfermeira Roseneide Tunico para reportagem de Universa Imagem: Avener Prado/UOL

Me recordei da matéria que fiz sobre o trabalho das enfermeiras durante a pandemia. Estive em uma UTI da doença em maio e me veio à mente o olhar de um senhor em um leito, prestes a ser intubado. Marejado, perdido, amedrontado. É bem provável que meu olhar, no sofá da minha casa, fosse parecido com esse.

'Mãe, não quero te assustar, mas pode ser que não dê tudo certo'.

Minha mãe me ligava todos os dias por chamada de vídeo Mandava muitas mensagens para saber como eu estava e várias vezes comentou que queria vir para cá. 'Impossível', eu dizia. Imagina se ela, com 66 anos, pega a doença? Não tinha como correr esse risco. Depois de ter sentido tudo o que senti, um dos meus pensamentos mais recorrentes era o desejo de que ninguém passasse pelo que passei. Muito menos minha mãe.

Um dia, ela disse: 'Você vai ficar bem, vai dar tudo certo'. Fui realista: 'Mãe, não quero te assustar, mas pode ser que não dê. A chance é pequena? É. Mas não dá para descartar que eu posso piorar.' Me surpreendi com a minha coragem.

Perguntei à minha mãe como foi esse período para ela. 'Xinguei um monte o vírus, mas o que eu falava não dá para por no seu texto', brincou, tentando trazer alguma leveza para uma lembrança de um período que nos deixou apavoradas.

'Eu queria muito ir aí, mas não dava, então eu rezava. Me bateu o desespero. É uma sensação de impotência não poder ajudar a filha', falou. 'A todo momento eu pedia para Nossa Senhora te cobrir com o Manto Sagrado. Implorava para ela cuidar de você e, como mãe que é, fizesse o que eu não estava podendo.'

No quinto dia depois do resultado positivo, ou seja, já no 12º dia dos primeiros sintomas, tive a primeira vitória ao conseguir lavar toda a louça de uma vez, apesar de ter cansado um pouco. Ainda me lembro da felicidade que senti no dia. Contei para os amigos e comemorei ao perceber que estava me recuperando.

No final dos 14 dias do ciclo do vírus ainda tive uma dor de garganta forte e precisei tomar corticoides. Cansaço, falta de fôlego e taquicardia seguiram por dezembro inteiro. Hoje, um mês depois dos primeiros sintomas, consigo dizer que finalmente estou voltando a me sentir como era antes da covid.

Meu caso não foi nem de perto dos piores. Como das pessoas que são internadas, que passam semanas intubadas, que se recuperam, mas com sequelas seríssimas. Que morrem. Mas não deixou de ser difícil. Fora o impacto psicológico e as batidas na porta que a ansiedade, o pânico e a depressão dão depois que você passa por uma situação tensa como essa.

Pelas chamadas de vídeo minha mãe tem elogiado a minha boa aparência. 'Está mais corada, a cara está melhor', me disse na última ligação, na segunda-feira. Agora só falta o abraço. Que bom que estou viva e disposta para esperar por ele.

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