Topo

Retratos

Instantâneos de realidade do Brasil e do mundo


"Dominação mundial": por que tem gente com medo da vacina chinesa?

Membro do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo, mostra vacina contra SARS-CoV-2 da Sinovac Imagem: André Lucas - 30.jul.2020/Getty Images

Natália Eiras

Colaboração para Universa

17/08/2020 04h00Atualizada em 21/10/2020 10h27

Quando a vacina Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, em parceria com o laboratório chinês Sinovac, começou a ser testadas em voluntários na capital paulista, em julho, a secretária Aparecida*, 45, sentiu o sangue gelar e tomou uma decisão: "Não tomo essa vacina nem que me paguem".

Aparecida não se encaixa exatamente nos 9% da população brasileira -ou 19 milhões de pessoas- que afirma não desejar tomar uma vacina para conter a doença, segundo dados do Datafolha. A questão dela é com a origem da imunização, não com a vacinação em si. A origem da vacina também gerou uma queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Das mais de 150 vacinas em produção no mundo em busca de imunização contra a Covid, ao menos 6 já chegaram à fase 3, de testes em larga escala em humanos, e, dessas, metade é chinesa.

Apesar de não concordar com a necessidade do isolamento social, Aparecida circula pelas ruas de máscara e álcool em gel. Tem medo de contrair a Covid-19, infecção causada pelo novo coronavírus, mas também teme o produto desenvolvido pelos chineses.

Eles querem dominar tudo. A internet, o 5G e, agora, até a vacinação. Não vou entrar nessa Aparecida*, 45 anos

Você deve conhecer alguém que pense como Aparecida. Esse tipo de pensamento, porém, surge com mais frequência nas conversas durante a refeição, nos comentários de notícias postadas em redes sociais e nos grupos de WhatsApp.

A reportagem abordou alguns perfis que, nas redes, dizem temer a Coronavac e suas compatriotas, mas eles se mostraram ressabiados em explicar seus motivos. A própria secretária não quis mostrar seu rosto ou compartilhar seu sobrenome por medo. O técnico de enfermagem Antônio*, 35, foi outro.

Há evidências de que o novo coronavírus foi criado na China, por que vou tomar a vacina que eles produzem? Antônio*, 35 anos

Quando a reportagem lembra que estudos indicam que o vírus não foi desenvolvido em laboratório, Antônio não quis ampliar seu raciocínio, mas mandou um vídeo que, para ele, mostra que a pandemia é parte de uma conspiração mundial.

Mas de onde vem esse medo? "Para alguns, a China é um país comunista, que tem a bandeira vermelha, que está em uma disputa comercial com os EUA, país cuja influência no Brasil é muito grande", afirma psicanalista Christian Dunker, colunista do UOL. Instalou-se, assim, uma espécie de Guerra Fria da imunização.

Se fosse uma vacina norte-americana [testada no Brasil], não teríamos a mesma reação. Teríamos alguma resistência, mas não tão intensa Christian Dunker, psicanalista

Dunker também afirma que, independentemente da origem do laboratório, a vacinação é vista como um processo muito intrusivo. "É como se o Estado estivesse entrando dentro de seu corpo", fala. "Esta é uma retórica que tem uma boa entrada em nossa subjetividade, por isso campanhas antivacinação conseguem agregar adeptos apesar de ser claramente anticientífica. Temos isso como uma inclinação psíquica."

Gustavo Romero, professor da Universidade de Brasília e coordenador de testes, mostra a vacina da Sinovac Imagem: Andressa Anholete/Getty Images

A busca por um inimigo

Para a psicanalista Vera Iaconelli, identificar um inimigo comum faz com que a gente possa se eximir da culpa. "Em situações muito dramáticas, catastróficas, é de se considerar que os sujeitos procurem respostas. Como é difícil lidar com a imprevisibilidade da vida, os sujeitos tendem a encontrar culpados. Como, no caso do surto de Covid-19, os responsáveis somos nós, humanidade, que estamos invadindo o ecossistema, é difícil lidar com essa culpa tão difusa, em que você também tem sua parcela de responsabilidade."

Ela assinala que essa não é a primeira e nem será a última vez que iremos apontar dedos e demonizar pessoas por causa do desespero, "A humanidade já enfrentou momentos históricos gigantes baseados nisso."

Para Vera, os "chineses são a bola da vez". "O [presidente americano Donald] Trump se apoia muito nisso, e outros líderes seguem o exemplo. Muitas pessoas, na falta de senso crítico, acabam encontrando a resposta no que essas figuras falam."

Tanto Aparecida como Antônio citam, ainda, que não acreditam na "confiabilidade" da imunização desenvolvida pelo Instituto Butantan. "Eles não testaram em mais ninguém e estão nos usando como cobaia", fala a secretária. Além dos 9.000 brasileiros voluntários, a Indonésia também participa da fase de testes.

Um meme muito compartilhado nos grupos que rechaçam a opção chinesa é um em que aparecem zumbis da série de "The Walking Dead" com a seguinte frase: "tomamos a vacina chinesa e estamos nos sentindo muito bem."

E se a chinesa chegar antes?

A fama no Brasil dos produtos chineses, considerados de baixa qualidade por conta do tipo de importação que fizemos durante muito tempo, estende a xenofobia comercial para a produção científica. Junta-se a isso o fato de que ela é saiu na frente em relação aos testes com voluntários no país. "Existe esse medo generalizado da tecnologia, de novidades. Tudo isso contribui para a animosidade contra o medicamento feito pela Sinovac", diz Dunker.

O diretor do Instituto Butantan chegou a prever na semana passada que a vacina esteja disponível para vacinação em massa em dois meses. A Unifesp, que testa no país a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, também cogita uma licença emergencial para aplicação, caso os resultados se mostrem eficazes, mas sem indicar o prazo.

E se a Coronavac se viabilizar antes das outras opções em teste? Após muitos e muitos meses de isolamento social, terá a ciência o poder de vencer a ideologia? "Aí fica difícil. Como, depois de criar toda uma narrativa de eles são culpados de tudo, você vai aceitar algo que vem deles?", reflete Vera Iaconelli. Mas ela pondera:

Se ela [a Coronavac] for efetiva, tiver bons resultados, com certeza boa parte deles vai tomar, não importa de onde ela venha Vera Iaconelli, psicanalista

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

"Dominação mundial": por que tem gente com medo da vacina chinesa? - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade


Retratos