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Fenômeno das redes, terraplanismo perde adeptos e está em crise no mundo

O modelo de 'terra plana' está em declínio Imagem: Getty Images/iStockphoto

Felipe van Deursen

Colaboração para o UOL

26/02/2024 04h00

Houve um tempo em que o formato da Terra já foi assunto sério. Pitágoras, 2,5 mil anos atrás, observou que o formato do terminador, a linha móvel que separa a parte iluminada da parte escura da Lua, evidenciava o formato redondo dela. O matemático grego não recebeu muita atenção, mas dois séculos depois isso mudou.

Aristóteles usou alguns argumentos empíricos e teóricos para mostrar que a Terra não era plana. Explicava, por exemplo, que, se a Terra não fosse esférica, os eclipses lunares, formados pela sombra do planeta na Lua, não teriam o formato que têm.

Astrônomos gregos, indianos e chineses acreditavam na versão achatada, mas os argumentos de filósofos como Aristóteles e, com o tempo, a evolução da ciência, mostraram claramente que o nosso planeta não é um mapa em 2D, mas um globo.

A influência grega pelo mundo árabe e a Europa cristã medieval disseminaram o conceito da Terra redonda. Mesmo em episódios famosos em que a Igreja tentou frear os avanços científicos, que mostraram que o planeta não estava no centro do Universo, não se discutia o formato da Terra, só sua posição.

Mundo 'achatou'

Milênios de conhecimento acumulado voltaram a ser questionados no século 19, quando o conceito da Terra plana voltou a se difundir. O caldeirão de textos bíblicos e teorias que davam os contornos dessa teoria ganharia, no século 21, o tempero das redes sociais.

Fóruns online, canais e perfis dedicados ao terraplanismo, apoio de celebridades e influenciadores dedicados ao tema deram uma nova vida ao movimento. A lenda do basquete americano Shaquille O'Neal mostrou entusiasmo com a teoria. O rapper B.o.B. chegou a criar uma campanha de financiamento coletivo para lançar um satélite a fim de comprovar que a Terra não é redonda.

Quanto aos satélites que orbitam o planeta há décadas e registram em foto e vídeo o planeta (redondo) desde então, é tudo parte de uma trama global que envolve governos, forças armadas e agências espaciais para esconder a verdade plana.

Leandro Batista, criador do canal Inteligência Natural, no YouTube Imagem: Reprodução/Instagram

No ano passado, Leandro Batista, criador do canal Inteligência Natural, no YouTube, fez sua própria campanha pró-Terraplanismo. O perfil havia sido criado em 2017 para promover a teoria. Batista conseguiu que parte dos mais de 150 mil seguidores que ele tinha bancasse uma viagem para a Noruega. O objetivo: comprovar que a Terra é plana, claro. Só que deu tudo errado, dependendo do ponto de vista.

O ex-terraplanista

Ver o fenômeno do sol da meia-noite na Noruega me fez voltar a acreditar na ciência, lembra Leandro.

Como o eixo de rotação da Terra é inclinado em relação ao do Sol, em determinadas épocas do ano o sol nunca se põe no extremo norte ou no extremo sul do planeta. A Terra gira, mas as regiões próximas dos polos ficam iluminadas, mesmo à noite. Leandro teve essa espetacular aula de ciências ao vivo, em pleno verão norueguês.

"Foi um misto de frustração com alívio. Tirei um peso de uma tonelada das costas, é um fardo terrível viver duvidando de tudo e de todos!", diz.

Convencido, ele decidiu contar a seus seguidores. Muitos, obviamente, não gostaram, já que pagaram para ver um dos maiores propagadores do terraplanismo na internet comprovar, de uma vez por todas, sua teoria.

Só que o que eles receberam foi o balde de água gélida: Leandro se expôs, reconheceu o erro com uma humildade rara de se ver nas redes sociais e foi achincalhado pelos mais radicais.

A origem do terraplanismo

Samuel Rowbotham Imagem: Reprodução

A maioria dos mais de 3 mil vídeos que Leandro postou em seu canal são uma extensão da teoria proposta pelo escritor inglês Samuel Rowbotham. Em 1849, ele publicou um livreto chamado "Astronomia Zetética", cujo conteúdo o carimbou como o pai do terraplanismo moderno.

Em pouco mais de 200 páginas cheias de gráficos, cálculos e comparações, o autor deu espaço também para falar de religião. "Se a Terra é um globo em movimento constante, como pôde então Jesus ser levado para o alto de uma montanha e ver, em um instante, todos os reinos do mundo?", escreveu.

Após a morte de Rowbotham, em 1884, seus ensinamentos seguiram vivos na Sociedade Zetética Universal e em sua sucessora, a Sociedade da Terra Plana, criada em 1956. Ambas surgiram no país natal de Isaac Newton e Stephen Hawking, o Reino Unido.

Um dos argumentos mais difundidos por esses grupos diz que a teoria da Terra plana já foi muito mais popular, mas acabou silenciada. Ela seria a versão mais aceita até a época das Grandes Navegações, 2 mil anos depois dos tempos de Pitágoras.

Nos anos 1980, os historiadores da ciência americanos David Lindberg e Ronald Numbers, e, nos 1990, o historiador alemão Klaus Vogel afirmavam que eram pouquíssimos os estudiosos, na Europa medieval, que acreditavam em uma Terra plana. É um mito.

Por exemplo, um mapa que circulava com os textos do escritor romano Macróbio, que viveu no século 5º d.C., mostrava zonas climáticas da Terra, que estava dividida em dois hemisférios. Então, aquela noção de que os navegadores portugueses e espanhóis se lançaram ao mar temendo cair em um precipício infinito é falsa. Eles sempre se basearam em mapas e conceitos de um planeta esférico.

Terraplanismo em crise?

Leandro diz que já está produzindo vídeos para desmentir tudo o que ele postou nos últimos anos. É uma forma de se redimir. "Alguns eu faço sozinho, em outros tenho professores de física como convidados, promovendo debates, a fim de esclarecer os incautos", explica.

Para ele, convencer os incrédulos é uma questão de saber argumentar.

Eclipses lunares, Grandes Navegações, matemática, física: são impossíveis numa Terra plana.

Mas Leandro sabe que muitos terraplanistas simplesmente não querem aceitar nem enxergar os fatos. Aí reside o problema. Pode-se ver esse movimento como uma esquisitice inofensiva da internet, mas ela se prolifera onde o negacionismo impera.

Segundo uma pesquisa da Sociedade Psicológica Americana, as pessoas propensas a acreditar em teorias da conspiração têm uma combinação de traços de personalidade e motivações. Elas confiam com muita convicção em sua própria intuição, têm uma relação de antagonismo e superioridade em relação aos outros e costumam perceber ameaças em seu ambiente.

Muitas vezes, quem acredita em uma tende a seguir outras teorias do tipo. Dessa forma, o terraplanismo pode ser uma porta de entrada para "drogas mais perigosas", como acreditar que vacinas são arriscadas, que todas as eleições são fraudadas ou que a imprensa divulga apenas mentiras. É a sina da pílula vermelha. Como em "Matrix", só os corajosos aceitam tomá-la para conhecer a dolorosa verdade.

O capixaba Eduardo Dias Imagem: Arquivo Pessoal

Eduardo Dias é um outro youtuber brasileiro ex-terraplanista. Em seus vídeos, no canal Sistemático, ele diz que já acreditou também em outra farsa, muito propagada: a de que humanos jamais pisaram na Lua.

Em 2020, quando se mostrou arrependido e resolveu tentar explicar em seus vídeos esse e outros conceitos errados e bastante divulgados, foi perseguido pelos seguidores. Hoje, Eduardo aceitou uma parceria com Leandro e os dois estão tentando levantar uma vaquinha online para assistirem ao sol da meia-noite na Antártida.

"Na Antártida, esse fenômeno é impossível em uma Terra plana", diz Leandro. A dupla está empenhada em implodir o movimento no país.

O terraplanismo está dando seus últimos suspiros no Brasil. É insustentável, acredita.

A própria movimentação de seguidores no canal de Leandro indica que ele pode ser bem-sucedido na missão. Dos 152 mil inscritos no Inteligência Natural, 14 mil deixaram de segui-lo após ele "trair o movimento", como já foi descrita sua desilusão com o terraplanismo.

Se pensarmos que, de uma hora para outra, o canal começou a divulgar um conteúdo que é o oposto de tudo o que ele vinha divulgando, a queda de seguidores poderia ser muito maior. O impressionante não é que Leandro perdeu 10% dos inscritos, mas que 90% deles ainda estão lá, interessados no que ele tem a dizer.

Fenômeno global

As crenças na Terra plana (e as decepções daqueles que levaram a sério demais a teorias antes de aceitar que estavam equivocados) não são um fenômeno brasileiro, mas global - com ênfase em "global".

Em 2018, uma pesquisa nos Estados Unidos indicou que 34% dos millennials no país não acreditam na Terra redonda. Uma outra, menos cataclísmica, de 2022, diz que 10% dos americanos acreditam na Terra plana.

Em 2020, um tópico mobilizou 3,5 mil comentários no fórum Reddit: "Ex-terraplanistas, o que fez vocês se darem conta de que a Terra não é, de fato, plana?". Entre inevitáveis piadas e ofensas, alguns depoimentos surpreendem.

Uma usuária disse que o ex-marido acreditava em qualquer teoria da conspiração que apresentassem a ele, não importavam as evidências do contrário que ela tentava lhe mostrar. "Ele me fez assistir a um documentário de uma hora em que o homem dizia que o mundo é na verdade uma faixa de Möbius [figura matemática semelhante a uma fita com as pontas unidas], e que por isso ninguém cai dele. Terminamos pouco depois disso."

Uma outra também falou que o marido foi tragado por um "buraco negro de vídeos de Terra plana no YouTube", mas que acabou sendo salvo, sem querer, pela política. "Ele descobriu que a maioria dos terraplanistas são trumpistas com visões políticas extremas e estúpidas."

Já um outro confessou que se convenceu com uma explicação bastante usada pelos anti-terraplanistas: os voos diretos entre o Chile e a Austrália. São rotas longas, com mais de 14 horas de duração, mas que, em uma Terra plana, durariam muito mais, a ponto de ser impossível não parar para abastecer, dada a autonomia dos aviões atuais. "Essas pessoas ainda dizem que os vídeos dos voos são falsos e outras coisas decepcionantes assim", escreveu.

Para todos esses ex-terraplanistas, a explicação de seu novo posicionamento está, ironicamente, naquela expressão: "O mundo dá voltas".

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