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OPINIÃO

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Dia das Mães: o que Toriel, de Undertale, nos ensina sobre maternidade

Toriel Undertale Dia das Maes - 16Bits/Start
Toriel Undertale Dia das Maes Imagem: 16Bits/Start

Colunista do UOL

09/05/2021 04h00

Quase seis anos após seu lançamento, Undertale, para muitos jogadores, dispensa apresentações. A produção independente e quase completamente solitária de Toby Fox ao lado da artista Temmie Chang conseguiu um lugar na história dos games ao chamar a atenção para os jogos independentes e fazer-nos pensar em clichês das mecânicas de muitos jogos que, em geral, estávamos habituados a absorver passivamente.

Porém, se hoje tentarmos apresentar e descrever o jogo para quem não o conhece, continuamos com a mesma dificuldade que tínhamos quando o jogo foi lançado. Pela sua própria singularidade e originalidade, Undertale é difícil de descrever. As tentativas que fazemos, em geral, são bastante incompletas. Há dificuldade mesmo em divisar um "tema" geral do jogo, embora possamos perceber várias temáticas ao longo do seu enredo. Talvez seja lícito dizer que Undertale é um jogo sobre como jogamos videogame: o modo como vamos nos entrosando com as mecânicas e nos envolvendo com o enredo de um jogo, sobretudo um RPG. Essa definição (também incompleta) pode ser percebida logo no início, nas ruinas que servem de prólogo e tutorial. Lá, encontramos duas personagens centrais no enredo: um dos grandes antagonistas e uma personagem que, no seu aspecto materno e protetor, encarna os tutorias excessivos de muitos jogos.

Nesta data comemorativa em que, marqueteiramente, nos incitam às compras para presentear nossas mães, quero discutir o aspecto maternal em Undertale. E, ainda que não já tivesse indicado isso, falar em maternidade e Undertale remete qualquer um que experimentou o game à personagem Toriel.

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Um prólogo significativo

A introdução do jogo fala sobre um mundo numa época remota onde monstros e humanos conviviam, até que uma guerra eclodiu e os humanos selaram os monstros no subsolo.

O gameplay começa com o jogador assumindo o controle de uma criança humana que caiu nesse subsolo. Então iniciamos Undertale em dois sentidos: um conto com cenário subterrâneo; e um conto "por baixo do conto": uma história mais complexa sob aquela premissa da guerra entre humanos e monstros vista na introdução.

Somos recebidos por Flowey, monstrinho em forma de flor que, a princípio simpático, usa sua aparência inofensiva e amigável para tentar matar o jogador. Ele se revela um antagonista disposto a provar sua visão de mundo: o velho ultimato de "ou você mata, ou você morre".

O jogador é salvo por Toriel, que afugenta Flowey e nos acolhe. Ela se apresenta como "caretaker" (cuidadora ou zeladora) daquelas ruínas e afirma que frequentemente vem àquele lugar para checar se não caiu nenhum humano e imediatamente se oferece como guia.

A seguir, apresenta vários puzzles que o jogador deveria resolver. Mas, sob pretexto de ensinar, acaba resolvendo-os para o jogador, deixando setas imensas para indicar quais alavancas devemos puxar ou literalmente tomando-o pela mão e guiando-o pelo caminho correto. Desse modo, o jogo encarna nela os tutoriais excessivamente didáticos de alguns jogos. O próprio nome "toriel" talvez seja uma brincadeira com a palavra "tutorial".

Mas o aspecto maternal de Toriel não se limita a apenas isso. Ela também ensina como resolver conflitos pelo diálogo (algo fundamental no jogo) e tenta desenvolver no jogador uma "independência supervisionada", ao pedir que ele atravesse sozinho uma sala, enquanto ela observa escondida atrás de uma coluna. Depois, entrega um celular, pede que o jogador espere por ela antes de prosseguir, e vai embora.

O tempo passa e… ela não volta. O jogador começa a ser dar conta de que ela não vai retornar e, ao seguir em frente, percebe que ali é que começa o verdadeiro tutorial. É preciso resolver puzzles e encontrar monstros por conta própria. Mas, durante o processo, Toriel liga no celular e pergunta de qual ingredientes o jogador gosta, se ele tem alergias, e outras coisas assim. Ele também pode ligar para ela e até chamá-la de mãe.

Por fim, ao chegar na sua casa, ele descobre que ela preparou um quarto para dormir. No dia seguinte, o jogador é surpreendido com uma torta feita com os ingredientes que ela havia mencionado no telefone. Toriel expressa alegria por ter aquela nova companhia, diz querer passar adiante seus conhecimentos e até propõe uma grade curricular! Caso o jogador pergunte quando irá voltar para casa, ela nos diz que ali é a casa dele agora!

Toriel como um sujeito materno

Causam estranhamento essa acolhida tão completa e o fato de a personagem já estar esperando a chegada de um humano. Posteriormente, no enredo, descobre-se que, no passado, Toriel havia perdido dois filhos (um biológico e um adotado) e que o rei dos monstros, Asgore, quer matar qualquer humano que adentre o subterrâneo.

Porém, é perceptível que o aspecto materno de Toriel vai além de uma "síndrome do ninho vazio" ou de uma proteção contra Asgore. Toriel é, antes de tudo, um ser materno, o que difere de meramente ter um filho biológico, porque a maternidade e certos conceitos de formação familiar são intensamente romantizados e fetichizados em nosso meio.

Basta pensar na idealização específica do amor materno e filial usada para nos fazer adquirir mercadorias no Dia das Mães, sob pena de nos sentirmos abominavelmente culpados. A maternidade real relativiza a incondicionalidade do amor materno. Esse amor pode ainda existir, porém o desgaste físico, emocional e hormonal das mães se impõe como realidade. Por exemplo, a depressão pós parto; os inúmeros conflitos que inevitavelmente surgem entre mãe e filhos pelo simples fato de que são humanos (e convivem em um mesmo lar); ou os tristes casos de relações patológicas e abusivas que por vezes acabam nos noticiários, mostrando algumas situações onde o amor maternal parece simplesmente inexistir.

Entretanto, o sujeito materno ultrapassa tudo isso, ainda que se volte a alguém que não foi gerado no seu corpo. Ele implica colocar-se em uma posição maternal em relação ao outro. No ser materno, é distintivo o acolhimento. Receber o outro e servir-lhe de base, nutri-lo e pavimentar o seu caminho. Uma dedicação que tem na saúde, no bem-estar, no desenvolvimento emocional, físico e existencial do outro um fim em si mesmo. A abnegação e o altruísmo parecem absolutos, mas trazem ganhos identitários, sob a forma de propósito, significação da própria existência e amadurecimento.

Esses aspectos são perceptíveis em Toriel. Mas não há ali uma atitude ostensiva de superioridade. Uma relação familiar saudável entre mãe e filho pressupõe também autoridade e hierarquia.

Contra toda autoridade - Reprodução/Web - Reprodução/Web
Contra toda autoridade
Imagem: Reprodução/Web

Porém, autoridade não se confunde com autoritarismo. Há um aspecto de liderança na atitude de Toriel. Mas trata-se de uma líder cuidadora, mestra e guia carinhosa, nunca impositiva.

No conto "Perdoando Deus", de Clarice Lispector, a narradora descobre em si um sentimento maternal pelo mundo, que descreve assim: "Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade [...] assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre." Há muito desse sentimento em Toriel.

Um ponto de tensão

Porém, como o jogador irá a descobrir, sua relação com Toriel não é isenta de conflitos.

Se ele insistir em perguntar como deixar as ruínas em direção ao resto do mundo subterrâneo, Toriel pede que ele volte a esperar, enquanto ela prepara algo. Se ele decidir segui-la, verá que ela desce escadas em direção a um corredor sombrio. E se interceptá-la, ela perguntará se queremos realmente saber como voltar pra casa, e revelará que, ao fim daquele corredor, está o portal que divide aquelas ruinas do resto do submundo.

Toriel quer destruí-lo, então ela pede que o jogador seja "um bom garoto" e volte para o andar de cima. Se você insistir em segui-la, ela reforça o perigo representado por Asgore. Já ao pé do portal, ela percebe que não pode dissuadir o jogador e pede que ele se prove capaz de sobreviver... lutando com ela. Toriel não deixará, sem luta, que você se lance aos perigos do submundo.

A batalha que se segue é intensa, mas o jogador percebe que, ao ter seus pontos de vida reduzidos pelos ataques de Toriel, ela nunca o matará de fato. Caso ele decida poupá-la, ela percebe que ele será infeliz confinado aos limites daquelas ruínas. Com um abraço e um último olhar antes de partir, ela permite que o jogador cruze o portão, encerrando o prólogo do jogo e iniciando a aventura com os seres do submundo.

Essa luta pode ser tomada como uma representação do arquetípico momento de partida, de "deixar o ninho" e viver por si, e do conflito com uma mãe superprotetora que percebe, ao fim, os limites do seu papel materno e a realidade de não ter criado um filho para si mesma.

Porém, em Undertale, poupar um adversário num conflito é uma opção, não um dever. É perfeitamente possível matar Toriel na batalha. E, na verdade, é muito comum que aconteça, pois, numa primeira jogatina, é difícil saber como preservá-la ou perceber que ela, de fato, nunca matará o jogador. Talvez Toriel seja a personagem que mais morra nas jogatinas de Undertale.

Mas o jogo é tão minucioso na observação das consequências dos atos do protagonista que abre a possibilidade de exploração de diversas linhas de enredo diferentes. Se o jogador matá-la, voltar ao quarto e dormir, será despertado por uma voz que, educadamente, dirá que ele deve seguir em frente, pois é o futuro dos humanos e monstros. A luz estará apagada, mesmo que você a tenha deixado acesa antes de dormir. Essa presença fantasmagórica de Toriel demonstra um amor materno que, nos termos do apóstolo Paulo, "tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta"

O amor que permanece mesmo após o matricídio remete a uma antiga e pieguíssima história folclórica (interpretada, inclusive, por Caetano Veloso no antológico álbum coletivo "Tropicália ou Panis et circenses). Um camponês pergunta a sua amada como ele poderia provar seu sentimento. A moça, entre perversa e zombeteira, pede o coração da mãe dele. O rapaz não hesita: encontra a mãe ajoelhada em um oratório, mata a velha e arranca-lhe o coração. Mas, ao corre de volta à moçã, tropeça, cai e quebra uma perna. O coração da mãe, arremessado longe, solta uma voz: "Machucou-se, pobre filho meu? Vem buscar-me, que ainda sou teu."

A história pode ser lida como uma alegoria da necessidade do filho de se libertar de um amor materno sufocante. Talvez o matricídio de Toriel possa ser lido de forma análoga, ou, claro, como o jogador preferir.

Porém, caso o jogador poupe a personagem, essa não será a última vez que irá vê-la.

Maternidade vista como ciclo

O portal que separa a vastidão do submundo da proteção materna de Toriel funciona, ainda que momentaneamente, como um ponto de não-retorno. Ali está a base para seguir em frente e encarar o mundo por si só. Mas, se o jogador não matar nenhum inimigo ao longo do jogo, ao fim reencontra Toriel junto com outros amigos feitos ao longo do enredo. Reconciliados humanos e monstros, e rompida a barreira que isola o submundo, os monstros podem sair, viver na superfície e ver o sol pela primeira vez.

Na superfície, Toriel diz ao "filho" que ele tem um lugar para voltar e pergunta o que irá fazer. Surge então a opção de ficar com Toriel. Se essa for a decisão, ela diz que o protagonista é "uma criança engraçada", porque, se tivesse tomado a mesma decisão um pouco mais cedo, ainda nas ruinas, todo o enredo não teria acontecido. Mas ela considera positivo que o jogador tenha levado tanto tempo para mudar de ideia.

Há aqui um movimento dialético. O início inocente, quando o jogador se entrega sem opção ao carinho e à tutela de Toriel, é uma tese. O que vem depois (abandoná-la para desbravar o mundo) é a antítese. Por fim, quando toda a vivência do enredo o amadurece e ele restabelece a relação filial, surge a síntese.

Isso diz algo do aspecto cíclico da maternidade: é só depois de encarar o mundo que um filho consegue entender melhor quem sua mãe é e tudo que fez por ele. É uma reaproximação temperada pela distância e pelo amadurecimento; uma compreensão muitas vezes impulsionada pela criação de filhos próprios. O ciclo se fecha, mas vai além: os filhos tendem a ultrapassar a vida das mães, produzindo vida por si mesmos - algo que poderia até ter sido explorado em Undertale. (Quem sabe em um Undertale 2? Melhor não.)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL