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Silvio de Abreu lembra criação de personagem que revelou Aracy para comédia

Aracy Balabanian como a Dona Armênia de "Rainha da Sucata" (TV Globo) - Reprodução/Nelson Di Rago/Memória Globo
Aracy Balabanian como a Dona Armênia de "Rainha da Sucata" (TV Globo) Imagem: Reprodução/Nelson Di Rago/Memória Globo

Cristina Padiglione

Colaboração para Splash, em São Paulo

08/08/2023 04h00

Alvo da memória popular mais recente de Aracy Balabanian, Cassandra, sua personagem no seriado "Sai de Baixo", foi a imagem mais destacada sobre a trajetória da atriz nesta segunda-feira (7), quando morreu, aos 83 anos. Mas a sogra de Caco Antibes, em boa parte responsável pelo efeito alcançado por Miguel Falabella em cena, talvez nem fosse papel pensado para a atriz se Dona Armênia não tivesse atravessado o seu caminho seis anos antes.

Até se mostrar como aquela mãe de três marmanjos que ela chamava de "filhinhas" na novela "Rainha da Sucata" (1990), Aracy era sobretudo reconhecida como uma grande atriz dramática. Embora gostasse de comédia, como lembra o autor Silvio de Abreu em depoimento exclusivo a Splash, o seu nome esteve desde cedo associado a grandes dramas e não passava pelo radar de diretores e autores que trabalhavam no campo do riso.

Abreu revela mais: a personagem que ganhou spin-off em "Deus nos Acuda" (1993), outra novela sua, era originalmente uma italiana e havia sido escrita, na verdade, para Nair Bello, que não pôde fazer o trabalho naquele momento.

Diretor do núcleo de dramaturgia da Globo entre 2013 e 2020, o dramaturgo conta ainda que procurou Aracy para visitá-la na última semana, mas ela disse que não estava bem e preferia não receber visitas.

Eis o que nos conta o criador de Dona Armênia, autor de "Rainha da Sucata", "Deus nos Acuda" e também "A Próxima Vítima" e "Passione", obras suas onde a atriz marcou posição trafegando do drama à comédia.

"Aluna promissora"

Silvio de Abreu: "Eu conheci a Aracy em 1961, na Escola de Artes Dramáticas, e fomos amigos daquela época até agora. Foi uma amizade que durou mais de 60 anos. Quando eu fiz Escola de Artes Dramáticas, ela era a aluna mais promissora, todo mundo apostava que ela seria uma nova Cacilda Becker, até houve críticos como o Sábato Magaldi e o Décio de Almeida Prado que exaltaram muito o talento dela, e realmente ela não decepcionou quando entrou para a vida profissional.

Ela fez um espetáculo no Theatro Municipal, 'Antígona', do Sófocles, eu trabalhei também no espetáculo como ator, junto com ela. Ela fez várias outras peças depois, 'Depois da Queda', do Arthur Miller, 'Marat/Sadi', do Peter Weiss, várias, sempre com grande sucesso, até que ela foi convidada pra ir pra televisão e tudo aconteceu mais ou menos ao mesmo tempo", enalteceu.

Na TV

Silvio de Abreu: "Enfim, ela foi pra Tupi, fez uma novela 'Um Rosto Perdido', e daí pra frente ela virou uma estrela de televisão, mas nunca deixou de fazer teatro, sempre continuou a carreira no teatro e na televisão, sempre fazendo personagens diferenciados e tudo, mas ela nunca tinha feito comédia, apesar de eu saber que ela era uma grande fã de comédia, de a gente conversar muito sobre comédia, e de eu saber da vontade dela de fazer comédia. Aí chegamos à Dona Armênia."

Dona Armênia nasceu italiana

Silvio de Abreu: "Eu estava fazendo a sinopse da novela 'Rainha da Sucata' e eu tinha uma personagem que era uma mãe que tinha três filhos. E nessa época, a gente tinha um problema no Brasil de inflação e a gente vivia nos bancos tirando dinheiro, botando dinheiro, colocando aqui e ali pra não perder dinheiro, porque o dinheiro desvalorizava da noite para o dia. Então, eu fiz um personagem baseado nisso.

Era uma mãe que era uma grande financista doméstica, ela sabia lidar com dinheiro, e os filhos eram três idiotas que não sabiam nada de nada. Então eles ficavam em casa fazendo o serviço doméstico e a mãe ia pro banco pra ficar administrando o dinheiro.

Esse personagem eu fiz pra Nair Bello. Ela se chamava Dona Giovana, mas Nair Bello não podia fazer a novela porque ela ainda estava contratada pelo SBT e o contrato não terminou a tempo de ela ir pra Globo.

Então eu fiquei com essa personagem sem ter uma atriz de quem eu gostasse pra fazer. E me lembrei da Aracy. Eu falei: 'Aracy nunca fez comédia, mas eu sei que ela gosta de fazer comédia, quem sabe ela tenta encarar esse desafio, né?' E ela já tinha passado o tempo de fazer as mocinhas sofredoras, já estava fazendo as mulheres mais maduras, então eu achei que ela ser mãe de três caras grandões, homens feitos, ia ser bom pra ela, ia ser bom pra carreira dela.

E aí eu telefonei pra ela, expliquei o problema. [E ela respondeu] 'Eu adoraria fazer, sim, a gente se dá bem, eu gosto do que você escreve, você gosta do que eu faço, enfim.' 'Mas eu não quero você fazendo italiana', eu falei, 'porque vai ficar uma coisa meio esquisita, não te vejo assim. Vamos pensar em alguém'. Eu estava pensando na [bailarina] Marika Gidali, que é uma grande amiga nossa, e troca o gênero quando fala, ela troca o masculino pelo feminino. Hoje nem tanto, mas na época, início dos anos 90, ela ainda falava assim.

Então eu falei: 'Eu queria uma pessoa que fizesse essa troca, pra ela chamar os filhos, que fazem trabalha doméstico, ficaria engraçado se em vez de ela chamar de filhinhos, chamasse de 'filhinhas'. Mas a Mari é húngara. 'Vamos fazer uma húngara?', ela falou. Falei: 'Mas você é armênia, não é?' 'Sim, sou armênia'. 'E o armênio também faz essa troca de gênero?'

Ela disse: 'Faz, isso é muito comum entre armênios'. 'Então vamos fazer uma armênia, pra ficar bom, você conhece bem, você conviveu com esse pessoal todo, então dá pra você fazer uma.'"

E aí, em vez de ela chamar Dona Giovana, ela passou a ser chamar Dona Armênia Giovani, porque ela era casada com um italiano, os filhos [Gerson Brener, Marcello Novaes e Jandir Ferrari], aí eu não fugi da minha raiz paulista e pude colocar tudo. O personagem foi concebido assim.

O que eu queria? Eu queria uma mulher que usasse peruca, e ela topou usar peruca, porque tinha uma piada com relação a isso. Queria que ela fizesse a troca de gêneros, e ela fazia superbem. E queria uma atriz que fosse capaz de encarar esse personagem, que é quase farsesco, mas é extremamente humano. Então é muito difícil de fazer dentro de uma chave realista. E ela topou e fez maravilhosamente bem e foi um enorme sucesso, ela adorou fazer, deu um novo impulso pra carreira dela, foi bom pra todo mundo, ficamos superfelizes."

Dercy desaconselhou volta de Armênia

Silvio de Abreu: "Dois anos depois, eu fui fazer uma outra novela, 'Deus nos Acuda', e eu precisava de um personagem que era pra fazer a dona de um prédio, uma mulher quase com as mesmas características da Dona Armênia. E eu pensei: 'Bom, já que ela tem as mesmas características da Dona Armênia, e a Dona Armênia é minha criação, nada me impede de usá-la novamente. O raciocínio foi simples, e ela topou fazer de novo, foi muito bom.

Ela contava até uma história divertida, da Dercy Gonçalves, que estava na novela e teria dito pra ela: 'Ah, vocês não devem fazer isso, porque sucesso a gente só faz uma vez, você vai repetir e não vai dar certo'. Mas deu supercerto e ela contava sempre que Dercy mandou pra ela um buquê de flores dizendo: 'Eu estava enganada: a dona Armênia é um sucesso eterno'. E realmente foi."

Questionado se esse teria sido o primeiro caso de spin-off de personagem de novelas brasileiras, o autor diz não saber.

Silvio de Abreu: "Eu não sei se foi a primeira vez que isso foi feito, mas eu fiz pra poder usar novamente uma personagem, que eu adorava, uma atriz que eu adorava e pra poder continuar essa saga da dona Armênia, que foi um enorme sucesso."

"Além disso", continua, "nós fizemos depois, aí um personagem bastante diferente, que foi a Filomena Ferreto de 'A Próxima Vítima', uma italiana mais a sério, bem melodramática, mas quase uma trágica, pela postura dela diante daquela família.

E o último trabalho que fizemos juntos foi a Dona Gema, também uma italiana, que morava na Itália, que era irmã do personagem do Tony Ramos, que o havia criado na Itália, e tinha um conflito muito grande com a Fernanda Montenegro, que era a mãe dele aqui no Brasil.

E eu pude fazer uma coisa que eu sempre quis fazer, que eram cenas entre Fernanda Montenegro e Aracy Balabanian, duas extraordinárias atrizes. Eu queria saber qual seria esse resultado, e o resultado foi maravilhoso", encerra Abreu.