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Existe Amor

Tem gente que não acredita em amor, mas que ele existe, existe


Na saúde e na doença: Projota narra romance que começou na hemodiálise

De Splash, em São Paulo

11/11/2021 04h00Atualizada em 17/11/2021 18h14

O jornalista Hugo Montarroyos, 46 anos, estava no pior momento de sua vida, fazendo hemodiálise e paralisado pela depressão, quando conheceu a professora Maria do Carmo de Alencar, 53 anos. A partir daí, Hugo foi "da escuridão para a vida, da inércia para o amor" e conseguiu ainda transformar a forma como encarava seu problema de saúde. A história de amor entre Hugo e Carminha começou durante a doença e foi selada por dois transplantes.

Projota existe amor  - Arquivo pessoal / Arte UOL - Arquivo pessoal / Arte UOL
O rapper Projota narra o terceiro episódio do podcast 'Existe Amor'
Imagem: Arquivo pessoal / Arte UOL

A história do episódio "Existe Amor: na saúde e na doença", publicada nesta quinta (11), é interpretada pelo rapper Projota. O músico dá vida a esse romance real que, segundo Hugo, seria difícil de acreditar ainda que fosse contado em um filme.

Você pode ouvir o programa na íntegra no arquivo acima.

Este é o terceiro dos seis episódios desta temporada de "Existe Amor", lançados sempre às quintas-feiras. São casos reais, apurados pela reportagem de Splash e interpretados por artistas, que mostram muitas formas de amor.

Além de Projota, participam do projeto as atrizes Helena Ranaldi, Neusa Borges, Suely Franco e Aretha Sadick e a atriz e apresentadora Adriane Galisteu. A música de abertura é uma adaptação de "Não Existe Amor em SP", de Criolo. A apresentação é da jornalista Débora Miranda.

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Você pode escutar o episódio acima ou ler o roteiro na íntegra, abaixo. O programa está disponível no UOL, no Youtube, no Spotify, na Apple Podcasts, no Google Podcasts, na Amazon Music e em todas as plataformas de podcast.

Episódio 3: Existe Amor na saúde e na doença

"Quando eu fui socorrido, já estava nas últimas. Lembro que por três vezes tive a sensação de que, se dormisse, eu morreria. Passei três dias na UTI entre a vida e a morte. A doença renal crônica é muito silenciosa e, àquela altura, eu já precisava de transplante. A solução para a minha vida era fazer hemodiálise e entrar na fila por um novo rim.

hugo episódio 3 existe amor - Arquivo pessoal / Arte UOL - Arquivo pessoal / Arte UOL
Hugo começou a fazer hemodiálise em 2011
Imagem: Arquivo pessoal / Arte UOL

A verdade é que eu não queria ter que passar por nada disso, claro. Mas essa história de quase morte me aproximou ainda mais da vida, quando eu me apaixonei por uma pessoa que estava na mesma situação que eu. Com ela, eu saí da escuridão e passei a viver de verdade.

Voltando para onde tudo isso começou... Com 35 anos, eu sentia que estava no auge. Tinha acabado de lançar um livro, que foi super bem recebido. Eu sofria com problema de pressão, mas tomava remédio, estava tudo controlado. De uma hora para outra, a minha saúde ficou muito ruim. Passei dias em casa, sem conseguir me levantar da cama, sem comer, branco que nem papel.

Minha mãe insistia para eu ir para o hospital, mas eu não queria. Foi isso por alguns dias, até que ela rodou a baiana, deu o maior escândalo aqui em casa. Uma vizinha me socorreu e foi quando eu cheguei ao hospital. Semimorto.

Mas eu demorei para entender a gravidade da situação. Via tudo como "encheção", não queria fazer nada, entrei num processo de negação.

Hugo e Carminha episódio 3 Existe Amor - Arquivo pessoal / Arte UOL - Arquivo pessoal / Arte UOL
Hugo já fazia hemodiálise há cinco anos quando viu Carminha pela primeira vez
Imagem: Arquivo pessoal / Arte UOL

Comecei a fazer hemodiálise em 2011 e entrei na fila do transplante em 2012. Nessa época, as cirurgias ainda eram muito complicadas, e as sequelas eram grandes. Eu escutava casos de gente que tinha feito a operação e não tinha dado certo. Que teve de ficar três meses internado, emagreceu 30 quilos, ficou com depressão. Eu me sentia apavorado!

Acabei entrando na fila muito mais por um desejo dos meus pais, do que pelo meu, mesmo. Botei na minha cabeça que eles não mereciam enterrar um filho. Tive muita pena de mim. Fui do céu ao inferno.

A hemodiálise para a vida do paciente, e eu encarava o tratamento muito mal. Era muito pesado para mim. Além da parte física, tinha a emocional também. É inevitável entrar em depressão. A vida muda do dia para a noite, da pior maneira possível. Por dois anos e meio, eu não vivi: eu literalmente sobrevivi.

Eu não me interessava por nada, não queria saber de nada. A coisa que mais gosto de fazer é ler e escrever, mas levei muito tempo a me interessar pela leitura de novo. Os jornais acumulavam em casa. Passei a ver novela. Sabe quando você quer desligar o cérebro? Eu queria literalmente descarregar a minha cabeça. Não via sentido em nada: "Para que vou ver um filme?", "Para que vou passear na praia?". Era assim que eu pensava.

Fisicamente até que me dei bem, tive pouquíssimas ocorrências. O fato de eu ser jovem me ajudou. Mas eu encarava aquilo ali como o terror da minha vida. Eu comemorava quando não tinha que ir à hemodiálise. Às terças, quintas e aos finais de semana, acordava e sabia: "Ufa, hoje não tem! Hoje não vai ter duas agulhas enfiadas em mim".

Com o tempo, eu fui criando meu ritual para a hemodiálise. Para quem não sabe como é, eu explico: a clínica onde eu ia tinha duas salas, com 16 máquinas em cada uma. A sessão durava quatro horas. A televisão ficava sempre ligada na Globo, mas só dava para ouvir com fone. A minha opção, então, era livro. Depois do período de negação, aproveitei esse período para ler muito, estava sempre com um livro na mão.

Hugo e Carminha episódio 3 Existe Amor  - Arquivo pessoal / Arte UOL - Arquivo pessoal / Arte UOL
Hugo convidou Carminha para sair pela primeira vez em 2016
Imagem: Arquivo pessoal / Arte UOL

Eu já fazia hemodiálise tinha uns cinco anos quando eu vi a Carminha pela primeira vez. Eu pensei: 'Nossa!'. O olhinho chegou a brilhar! E era uma sensação meio doida! Fiquei feliz de entrar ali uma pessoa tão bonita, que parecia ser tão legal. E, ao mesmo tempo, que pena né? Porque era uma pessoa nova, jovem, bonita, que teria que passar por aquele processo também.

O meu horário na hemodiálise era das 10h às 14h, e o dela, das 14h até as 18h. Comecei a puxar uns assuntos bobos. Ela entrava quando eu já estava saindo, então era 'oi, tchau, tudo bem'. Não tinha nenhuma proximidade. Além disso, ela usava um anel muito parecido com uma aliança. Pensei: 'Poxa, já sou renal crônico, já estou cheio de problema. Não vou me meter com gente casada'. E meio que deixei de lado.

Só que, como as informações vazam ali, acabei descobrindo que ela era solteira. Na verdade, divorciada. Aquele anel não era o que eu achava que era. Fiquei sabendo o nome e, para tentar ter uma proximidade maior, fui atrás dela no Facebook, adicionei e mandei uma mensagem privada dizendo: 'Meu nome é Hugo! Somos colegas de hemodiálise. Estou adicionando você para a gente trocar ideia!'. Ela aceitou a solicitação, mas não respondeu a mensagem. Pensei: 'Ah, não está nem aí. Então deixa para lá né? Paciência!'.

Um dia estava em casa vendo televisão e, para a minha surpresa, ela me chamou no privado. Aí começamos a manter um diálogo. Teve um dia em que ela precisou mudar o horário da hemodiálise, aí aproveitei e sentei junto dela para pescar mais algumas informações. Descobri onde ela morava, confirmei que ela era divorciada, aquela coisa toda.

Relacionamento, a essa altura, era uma coisa que já não me passava mais pela cabeça, eu tinha desistido. Tinha me envolvido anteriormente e foi muito difícil. As minhas questões atrapalharam muito o relacionamento. Por causa da doença, eu tinha uma série de limitações alimentares, tinha uma dieta restrita, só podia tomar um litro de líquido por dia. Isso acabou atrapalhando, porque ela era uma pessoa saudável, que queria fazer os programas saudáveis comigo. E eu não podia, ou nem sempre estava a fim. Eu ficava muito debilitado fisicamente.

Por isso eu estava lidando com essa nova situação com muito cuidado. Repetia para mim mesmo: 'Não viaja, de repente não é nada disso!'. Soube depois que foi o meu hábito de ler que chamou a atenção dela na hemodiálise. Que ela pensou: 'Opa, tem gente inteligente aqui!'. Então, começamos a conversar com um pouco mais de frequência e a trocar mensagens.

Aí criei coragem e convidei ela para tomar um café. Não me esqueço nunca: era dia 24 de maio de 2016. É engraçado, porque eu tinha uma ideia meio fantasiosa dela. Ela é muito elegante, tem o porte muito bonito, aquele olho que você não sabe se é azul ou se é verde, que muda conforme a cor da camisa.

A gente tinha muito interesse em comum. Só no final desse café a gente ficou. Tive uma sensação muito boa, que eu não tinha tido em outros relacionamentos: 'Caramba! É a pessoa certa! Estou sossegado!'. E é muito estranho você começar um relacionamento sossegado, para mim era uma novidade. Acho que como a gente já estava em uma situação muito extrema, a gente deixou de lado toda aquela coisa que envolve joguinho de sedução, sabe? A gente não teve o menor pudor em ligar quando estava com saudade, em mandar mensagem quando queria conversar. Ficou muito claro, desde o começo, que ia ser um relacionamento forte, porque bateu mesmo na hora! E começamos a namorar!

Deu liga muito cedo. Foi uma sensação que nunca tive antes, de paz. Era uma coisa muito leve. Em cinco anos de relacionamento, eu conto nos dedos as brigas que a gente teve. E não foi nem briga direito. O fato de a gente estar na mesma situação ajudou muito, porque a gente entendia as limitações um do outro.

O problema de saúde dela era diferente do meu. O dela era congênito, hereditário. Ela tinha rins policísticos. Fazia um tratamento que se chama conservador, que é quando a pessoa não precisa de hemodiálise, mas respeita uma série de restrições, tanto alimentar, quanto de líquido. Por exemplo: se a gente tomasse água de côco, a gente morria. É um negócio louco isso! Porque é o alimento com maior quantidade de potássio que existe, e a gente não pode consumir potássio. E carambola, que é uma fruta típica daqui, a gente também não podia comer, porque 'embarcava' na mesma hora. Ela conseguiu segurar no tratamento conservador uns quatro ou cinco anos, antes de entrar na hemodiálise.

A gente dava muita força um para o outro. Eu era muito centrado na questão da hemodiálise e, quando comecei a namorar a Carminha, ela me tirou desse estágio de letargia, porque ela encarava aquilo como apenas mais uma coisa da vida. Não a única coisa. Ela me fez enxergar a hemodiálise de forma diferente e aquilo passou a ter menos peso para mim. Embora ela tivesse mais problemas do que eu, levava aquilo tudo com muita leveza.

Carminha tinha certeza de que o transplante dela ia chegar, que ia ser um sucesso e ia dar tudo certo. De fato, isso aconteceu e foi mágico para mim. Ela entrou na hemodiálise em dezembro de 2015, passou pouco mais de um ano e, em fevereiro de 2017, já foi chamada para o transplante. Aquilo foi assustador! Só que ela encarou numa boa. Eu fiquei morrendo de medo, e ela estava lá como se estivesse passeando.

Foi muito importante para mim ver aquilo! Primeiro comprovei uma certeza que eu já tinha: o quanto eu amava ela, porque fiquei desesperado quando ela foi fazer a cirurgia. Fiquei maluco! Mas foi um sucesso, durou só uma hora e pouquinho. E ela passou só uns 3 ou 4 dias na UTI, depois já foi para a enfermaria.

Ela passou três meses se recuperando. Eu brinco que foi o treinamento da gente para a pandemia. Porque fica muito fragilizado quando faz o transplante, a imunidade vai lá para baixo, tem que ficar de máscara o tempo todo e só sai de casa para fazer as consultas e os exames. Eu meio que cuidei dela nesse processo, ajudei, vi como funcionava a coisa. Foi o meu estágio para perder o medo do transplante.

A Carminha é kardecista, ou pelo menos muito simpática ao kardecismo. E eu sou aquele ateu covarde. Nunca tive nenhuma fé! E ela me chamou para uma palestra no centro espírita que ela ia. Eu tenho muitos pesadelos desde a minha infância. Ela me disse: "Vamos lá para ver essa questão dos seus pesadelos, para ver se melhora. Não vai te fazer mal nenhum". E foi muito engraçado, porque cheguei lá nesse centro, passei por uma entrevista e contei que eu era renal crônico, que estava fazendo hemodiálise e na fila do transplante. Eles me encaminharam para um tratamento chamado desobsessão, que o nome é pesado, mas é uma coisa muito simples: você escuta uma palestrinha de meia hora, toma um passe individual, água fluidificada e vai para casa.

Passei seis meses fazendo esse tratamento, e eu tive alta em uma terça-feira. No domingo da mesma semana fui chamado para o transplante. Lembro que, a caminho de casa, antes dessa ligação que mudou a minha vida, a gente pegou todos os semáforos abertos. Uma coisa que nunca tinha acontecido antes e nem aconteceu de novo depois. Carminha me disse: "Caramba, a gente vai ter uma notícia muito boa!" Cheguei, liguei a TV, terminei de ver um jogo do Corinthians contra o Grêmio, em que o Cássio pegou um pênalti e, de repente, o telefone tocou.

Era uma médica dizendo: "Queria saber se você está bem, porque chegou uma doação para você e já é certa que é sua!". É muito difícil chegar um órgão que seja cem por cento compatível, geneticamente somos todos muito diferentes. Esse era como se eu tivesse um irmão gêmeo, um clone por aí e não soubesse. Eu fiquei anestesiado. Como sou medroso, tanto a minha mãe quanto a Carminha acharam que eu ia fugir na hora H [risos]. Tenho esse histórico. Mas fui para lá, fiz os exames, tive que passar por uma sessão de hemodiálise para baixar a minha taxa de potássio e fui internado. Eu estava nervoso, e a Carminha ficou me acalmando. Acabou dando tudo certo, e o transplante uniu ainda mais a gente.

É engraçado que nunca tive essa sensação na vida. A questão amorosa era um ponto que já tinha descartado. Eu já tinha decidido que ia ser aquele clichê do cara que ia comprar uma samambaia e um cachorro e ia ser feliz para sempre. Eu meio que entrei

em um automático de viver um dia de cada vez. Me lembro da minha mãe planejando: "Hugo, o que você quer fazer no seu aniversário?". Eu pensava: 'Caramba! Não sei nem se vou estar vivo amanhã, quanto mais pensar no aniversário!?. Eu não projetava mais o futuro. A Carminha me devolveu isso tudo!

Com a Carminha, a hemodiálise passou a ser apenas mais um fator da minha vida. Eu não me definia mais como renal crônico. Eu era o Hugo, que namorava com a Carminha, que tinha o gosto assim assado, que era jornalista e que também era renal crônico. Antes, a pirâmide era invertida. Não sei se foi sorte, dádiva, benção, mas foi fundamental para mim encontrar o amor da minha vida, justamente em um ambiente que eu achava que era o pior que existia.

Depois do transplante, isso ficou ainda melhor. Hoje a gente só toma remédios e faz exames trimestrais, para conferir como está a função renal. E eu passei a valorizar a coisa mais simples do mundo, que é beber a quantidade de líquido que eu quiser. Isso foi libertador. Eu era aquela pessoa que ficava assistindo um filme e tinha inveja das pessoas, quando via elas bebendo água. Já imaginou? É algo impensável para quem não tem esse problema...

Passei a ver a vida pelos olhos da Carminha! Além de me apaixonar e me envolver completamente, ela me ensinou outra forma de encarar aquela situação. Eu era muito negativo, e ela sempre foi positiva. Fui aprendendo? Com a Carminha, eu saí da escuridão para a vida, da inércia para o amor. Eu comecei a viver de verdade, e não apenas a me manter vivo porque meus pais não mereciam enterrar um filho. Meu pensamento, quando ia à hemodiálise, era: 'Estou aqui para ficar bem, para construir uma vida!'.

Foi e continua sendo surreal.

Se eu visse isso em um filme, eu ia dizer: 'Pô, esse roteirista aí está de brincadeira! Está querendo que eu acredite em uma história dessas?'. Pois, é. Essa é a minha história".

O episódio 3 do podcast "Existe Amor" tem interpretação de Projota. Música de abertura: Criolo. Reportagem e roteiro: Débora Miranda. Produção: Juliana Machado e Simone Felizardo. Desenho de som e montagem: João Pedro Pinheiro. Design: Carol Malavolta. Motion design: Carla Borges. Direção de arte: Gisele Pungan e René Cardillo. Coordenação: Débora Miranda e Juliana Carpanez. Gerentes de conteúdo: Antoine Morel e Alexandre Gimenez. Diretor de conteúdo UOL: Murilo Garavello. Agradecimento: Arthur Cruvinel.