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Ícone do Carnaval, Alberto Pitta quer 'encontro dos contrários' em 2022

Aurélio Nunes

Colaboração para o UOL, de Salvador

26/08/2021 04h00

O futuro do Carnaval no Brasil ainda não tem destino certo, mas Alberto Pitta, 60, já definiu o tema para o Cortejo Afro, um dos mais badalados da Bahia, no ano que vem: "Asas da Liberdade. É tudo o que precisamos". A escolha não se limita às restrições impostas pela pandemia, mas tem um caráter político que, segundo ele, refere-se às experiências autoritárias mais recentes vividas pelas populações de países como o Afeganistão, o Haiti, e o próprio Brasil.

O Carnaval é para isso também. É o encontro dos contrários, onde você termina escalando fronteiras invisíveis para dar o seu recado
Alberto Pitta, artista plástico

Aos 60 anos, o artista plástico é um dos participantes do programa Preto à Porter, dirigida por Rodrigo Pitta, em parceria com MOV, a produtora de vídeos do UOL. Sua trajetória e memórias se entrelaçam pelas histórias do carnaval baiano, revivendo momentos icônicos de blocos como Apaches do Tororó, Commanche do Pelô, Muzenza, Malê Debalê, entre outros.

Com tanta experiência, ele diz não querer ser pego de surpresa nas festividades e levar às ruas a essência do Cortejo no ano que vem. "Eu acredito que vai ter Carnaval, só não sei que modelo. Não importa! Tudo o que sabemos é que o Cortejo Afro não vai se sujeitar ao papel de esfriar o sol pra classe média, se apresentar mais tarde. Não vamos participar sendo os palhaços da festa", avisa.

As críticas de Pitta são para o Comcar (Conselho Municipal do Carnaval), órgão responsável pela definição da ordem dos desfiles nos circuitos oficiais da folia em Salvador (BA), frequentemente contestada por destinar aos afoxés e blocos afro os horários mais quentes do dia e mais vazios da madrugada. "Não fazemos carnaval pra se encher de dinheiro e comprar lixo americano em Miami [EUA]", dispara.

Antes de botar o seu bloco na rua, Pitta também pretende levantar esse debate em outro espaço: o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), onde negocia sua exposição "Em tempos de cárcere", com curadoria de Vik Muniz (Lixo Extraordinário), contendo 23 telas pintadas em serigrafia.

Tradição

O artista plástico, pioneiro das estamparias africanas, considera que o Carnaval é mais do que um espaço de afirmação de seu trabalho individual, é uma expressão da cultura de seu povo: o povo negro, o povo da periferia, o povo de santo de sua mãe biológica, mãe Santinha, yalorixá do Terreiro Ilê Asé Oyá, falecida em 2015, aos 90 anos.

O trabalho de bordadeira, usado, entre outras finalidades, para confeccionar os estandartes das escolas públicas do bairro de Pirajá, representou o que Pitta chama de sua primeira experiência estética. Não à toa, criar e estampar os tecidos da forma mais criativa e original possível é seu ofício há mais de 40 anos. No seu currículo constam exposições na Alemanha, Angola, EUA, França e Inglaterra.

Em 2020, mesmo sem poder levar o Cortejo Afro às ruas, Pitta passou a pandemia debruçado sobre o Carnaval: aproveitou o tempo que nunca teria tido em condições normais de pressão e temperatura para dedicar-se à escrita de seu primeiro livro: Histórias Contadas em Tecidos - O Carnaval Negro Baiano.

O livro é ilustrado com fotos e estampas de blocos como Apaches do Tororó, Commanche do Pelô e Cacique do Garcia, além de blocos afro como Ilê Aiyê, Muzenza, Malê Debalê, Olodum, e afoxés como Badauê e Filhos de Ghandi. Por meio dessas e de outras agremiações, Pitta conta mais de 50 anos de trajetória do Carnaval da Bahia.

Resgate da memória

Como folião, ele também testemunhou eventos históricos como a invasão dos Apaches do Tororó ao bloco Lá Vêm Elas, em 1977. O Apaches era um bloco misto, majoritariamente formado por homens negros e periféricos. Alguns deles se infiltraram em um bloco exclusivamente feminino, branco e de classe média. Um escândalo que, à época, rendeu uma verdadeira perseguição policial a tudo quanto era folião vestido de vermelho, cor usada pelo Apaches.

Pitta - Reprodução/UOL - Reprodução/UOL
Alberto Pitta, artista plástico criador do Bloco Afro em cena da série Preto à Porter, de MOV do UOL
Imagem: Reprodução/UOL

"O carnaval acabou mais cedo, a cidade virou um caos, mas aquilo era tudo o que a gente queria: era o cinema na rua", compara. A história teve repercussão no carnaval do ano seguinte, em que o Apaches chegou a ser ameaçado de não desfilar. "Quando finalmente foi liberado, o bloco decidiu estrategicamente sair de azul: o mesmo azul do uniforme da Sétima Cavalaria do general Custer, aniquilada por uma coalizão entre as tribos indígenas sioux e cheyenne", lembra Pitta.

O uso de nomes como apaches, siux e cheyennes são influências do cinema western dos EUA. Naquela época, as produções cinematográficas de faroeste que eram muito famosas e exibidas nos cinemas de rua soteropolitanos - alguns curiosamente batizados com nomes indígenas do Brasil - como o Cine Tupi e o Cine Teatro Guarani (hoje rebatizado de Sala Glauber Rocha).

Em outras tantas histórias, Pitta assume o papel de protagonista. Por 15 anos, ele atuou como diretor artístico do Olodum, entre os anos 1980 e 1990. O período coincide com o momento de maior efervescência do bloco, que compreende desde a explosão do hit Faraó, às gravações de canções com os astros internacionais Paul Simon (Obvious Child) e Michael Jackson (They don't care about us).

"Naquela época o Olodum já estava pensando muito na questão mercadológica e preferiu deixar as fantasias tradicionais com os turbantes e panos da costa para aderir ao simples abadá. O abadá é uma questão de mercado e eu particularmente não me interessei pela proposta", diz Pitta, explicando os motivos que o levaram a deixar o Olodum para fundar o Cortejo Afro, em 1998.

Passadas pouco mais de duas décadas, Pitta fez do Cortejo uma espécie de referência da classe artística, atraindo para seus desfiles no circuito do carnaval e ensaios de segunda-feira à noite na Praça Quincas Berro D'água a presença de celebridades como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Regina Casé, Marienne de Castro e Naomi Campbell, entre outras.

Ao lado de João Jorge, do Olodum, e de Vovô do Ilê, Pitta é um caso raro de "não-cantor" que transformou-se em autoridade da cultura e do carnaval baiano. Ele se define como um carnavalesco de um bloco que atrai celebridades da música, mas que não se atrela a elas, o que considera fundamental para a sobrevivência do Cortejo Afro. "Hoje, o sujeito vai para um bloco que ele não sabe nem o nome, só conhece o artista que está à frente dele", critica.

Cordeiros cordiais

No Cortejo, Pitta coloca seu senso estético a serviço da militância política, como quando passou a fantasiar não apenas os integrantes da bateria e das alas do bloco, como também os cordeiros, pessoas contratadas para segurar as cordas que envolvem os blocos - geralmente por um valor irrisório.

Os cordeiros separam os foliões que pagam pra desfilar com abadás dos que não pagam, a chamada ala pipoca. No Carnaval de 2006, o Cortejo fantasiou todos os seus 400 cordeiros. Na fantasia, Pitta estampou a expressão Homens Cordiais, referência ao clássico Casagrande e Senzala, de Gilberto Freyre.

"No ano seguinte, Daniela Mercury saiu com os cordeiros do Crocodilo vestidos com camisas de seleções de futebol, o efeito estético valeu, se espraiou e ajudou inclusive a coibir a violência policial contra os cordeiros. A polícia tem vergonha de bater em quem está bem vestido", fustiga.

Para Pitta, as cordas podem ter representações distintas, a depender do bloco carnavalesco: nos blocos afros e afoxés, que não precisam de segurança, tem função de manter a corda em pé; já nos blocos convencionais, representam "a favela protegendo a classe média".

"Teve um ano que eu fui convidado por Carlinhos Brown pra criar os abadás da Timbalada. Eu disse que por abadá eu não me interessava, mas que gostaria muito de poder criar as fantasias dos cordeiros. O resultado foi tão bacana que muita gente de dentro do bloco pagou pra trocar de fantasia com os cordeiros", diz. "Brown reclamou, disse que eu arrumei um problema danado pra ele", conta, aos risos.