Thiago Stivaletti

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Opinião

Com Bonner e Poeta no Sul, Globo corre pra compensar 'umbigo carioca'

"O Jornal Nacional começa agora, com William Bonner diretamente de Porto Alegre", anunciou Ana Luiza Guimarães sozinha na bancada do maior jornal do país, enquanto o apresentador do maior jornal do país quebrava o protocolo e entrava de Porto Alegre sem terno e gravata, de camiseta cinza, tendo ao fundo uma rua inundada da capital gaúcha. Bonner não saía da bancada do JN desde dezembro de 2022, quando cobriu de Brasília a posse de Lula.

"A partir de hoje, o desastre que os brasileiros viram se avolumando desde a semana passada passa a ser apresentado pelo Jornal Nacional aqui, onde os fatos estão se desenrolando. Porque, ao contrário de outras tragédias climáticas que nós já testemunhamos, esta, ao longo dos dias, foi piorando em vez de melhorar. (...) Nós todos viemos aqui para prestar nossa solidariedade ao povo gaúcho."

Bonner tentou justificar com critérios jornalísticos sua presença no Sul para cobrir uma tragédia que já soma 90 mortos enquanto escrevo. Mas contou meia verdade. Sua viagem ao Sul também visou limpar a imagem da Globo, que apanhou muito nas redes sociais desde sábado, quando Hélter Duarte e Ana Paula Araújo encerraram o JN aos risos, num tom leve, após uma reportagem sobre o show da Madonna que a emissora exibiria logo mais.

No domingo, a equipe do "Fantástico" tomou uma bronca por dedicar mais tempo ao evento da rainha do pop em Copacabana do que à tragédia no Sul.

O esforço foi grande. Na noite de segunda, o JN dedicou 45 dos seus 54 minutos (84% do tempo) à tragédia. Bonner entrevistou ao vivo o governador do Estado, Eduardo Leite. E nem uma palavra sobre o show de Copacabana dois dias antes.

Patrícia Poeta apresenta o "Encontro" direto de Porto Alegre desde a última segunda
Patrícia Poeta apresenta o "Encontro" direto de Porto Alegre desde a última segunda Imagem: Reprodução / Internet

Patrícia Poeta, que é gaúcha de São Jerônimo, cidade também castigada pelas chuvas, abriu o "Encontro" de segunda-feira direto do Rio Grande do Sul, depois de encerrar o programa da sexta-feira com um figurino à la Madonna. A apresentadora desceu no aeroporto de Florianópolis e viajou sete horas de carro até Porto Alegre.

O programa matutino, que tem um perfil de variedades e entretenimento, se transformou em mais um telejornal, com Patrícia de correspondente em Porto Alegre, abatida, mas menos emocionada do que poderia, chamando repórteres locais, sem convidados no estúdio. Ana Paula Araújo demonstrou mais emoção no "Bom dia, Brasil", repercutindo bem ao abraçar comovida um padre que perdeu tudo na tragédia enquanto tentava ajudar outras vítimas. Pra terminar, o "Profissão Repórter" desta terça, que teria como tema o show de Madonna, teve sua exibição na grade cancelada para não dar mais munição aos críticos.

O atraso na cobertura da tragédia gaúcha toca em pontos delicados para a Globo. A emissora sempre foi acusada de excesso de "umbigo carioca", dando mais destaque a tudo o que acontece na Cidade Maravilhosa. Existem outros precedentes, como a pouca cobertura à morte num acidente de carro de Cristiano Araújo, astro do sertanejo goiano, em 2015 - enquanto as redes repercutiram à exaustão a morte do ídolo, a emissora deixou a desejar.

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Desta vez, o reforço na cobertura do show de Madonna pegou mal porque ainda tinha um forte elemento autopromocional, já que a emissora investiu bastante na transmissão do show na TV aberta e no Globoplay.

Soma-se a isso o fato de que Record e SBT há muitos anos têm uma forte cobertura local em seus telejornais e principalmente nos programas matutinos. Cada praça vê uma cota de matérias e reportagens locais que têm forte apelo ao morador de cada estado. A Globo ainda privilegia um conteúdo nacional, com os mesmos convidados e reportagens sendo exibidos para o Brasil inteiro no "Encontro" e no "Mais Você".

Por fim, uma tragédia desse tamanho trouxe de volta, pela primeira vez, a força da polarização política. Brasileiros mais conservadores e religiosos encheram as redes de comentários em solidariedade às vítimas no Sul e, num discurso distorcido, associaram à tragédia ao show de Madonna, criticando, por exemplo, o fato de a cantora não ter mencionado a tragédia em suas falas durante o show.

Esse grupo não embarcou na histeria que tomou a Globo e a internet desde que Madonna chegou ao Rio; condenou com veemência o "show de baixaria" que ela apresentou ao lado de Anitta e Pabllo Vittar; e meteu o pau na Globo pela demora e suavidade na cobertura da tragédia em seus primeiros dias.

Ora, um show no Rio agendado há mais de um mês não tem nada a ver com a tragédia inesperada e imprevista no Sul. Será? No discurso frenético e histérico das redes, tudo pode ser juntado numa mesma frase ou num mesmo meme. Tempos loucos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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