Modelo: Guilherme Zamarioli

O garçom sai com a bandeja na mão, prato finalizado e sorriso no rosto. Nem parece que acabou de deixar um cenário de guerra: o chef se esbaforindo porque o cozinheiro não fez tudo a tempo. Um corre-corre tenso.

Pressões por agilidade e perfeição fazem tão parte do ambiente quente dos restaurantes quanto o prato do dia. Erros não são tolerados. Assédios, humilhações e agressões são constantes.

Mas há luz ao fim da cozinha. Nos últimos tempos, denúncias vêm descascando um verniz que a própria indústria do entretenimento ajudou a pintar. Efeitos devastadores na saúde mental de cozinheiros vieram à tona.

Agora com as luzes acesas pelo lado de dentro, o setor olha para a frente e quer se redimir. O prato está servido.

'Não é aceitável trabalhar com medo'

Depoimento de Felipe Iema, ex-cozinheiro

A pior experiência foi quando vi um chef jogar uma tigela de batata frita no peito de um cozinheiro porque aquilo não o agradou. Vi fornos explodindo na cara de companheiros, todos os tipos de humilhação. Muito comportamento arrogante.

Comecei a estagiar em um buffet em 2004. Trabalhei em hotéis e restaurantes. Fiquei quase dez anos na cozinha. No início, tinha medo de encontrar o chef no serviço e alguma coisa não correr bem. Como era inexperiente, achava que isso era normal.

O tempo passa e você pensa que é inaceitável trabalhar com medo todos os dias. Salários horrorosos, folgas mínimas, dores de tanto ficar de pé e carregar peso, braço com queimaduras. Mas tudo isso passaria se não fosse o ambiente pesado.

Quando minha filha nasceu, eu nunca estava em casa. Meu relacionamento terminou, acabei me separando e joguei a culpa na cozinha. Percebi que nunca tinha finais de semana. A ansiedade se tornou insustentável.

Existe uma ideia de que o chef tem que ser grosso, berrar. Meio na onda do chef britânico Gordon Ramsay e desses reality shows em que a motivação é só essa: humilhar o cozinheiro.

Felipe Iema, que hoje trabalha com alimentos e bebidas, mas "do lado de cá do balcão, onde dá para ter uma vida sã".

'O chef jogou a comida no teto'

Depoimento de Carolina*, cozinheira e empreendedora gastronômica

Ser mulher na cozinha não é fácil. O assédio é gigante e de várias formas: esbarrões, falas machistas, "encostar" demais, ser chamada para sair por um chef que pune se você não vai. Um chef já me disse que queria me bater quando viu um erro meu.

Já tive chef jogando molho no teto e mandando o funcionário da pia limpar depois. Já comi muita comida horrível de funcionário trabalhando em restaurante muito bom. Nunca tive hora extra paga na minha vida.

A cozinha é uma panela de pressão. Um ambiente de ego alto. Você trabalha em pé o dia todo, no calor, na pressão. Tudo acaba ficando mais intenso dentro desse ambiente. Infelizmente, conheço bastante gente que deixou a cozinha por isso.

Hoje tento fazer o oposto do que vi, guardei e aprendi. Isso custa. É mais fácil gritar que conversar, deixar a raiva bater do que se conter. Mas vale a pena. A exigência não precisa andar de mãos dadas com o desrespeito.

*O nome foi trocado por pedido da entrevistada.

Vi restaurantes que pregam sustentabilidade do alimento ignorando a sustentabilidade das relações e de um ambiente de trabalho também saudáveis. Por que a maneira como o gado é criado pra você importa mais do que como você trata quem está na sua cozinha?

Carolina, que hoje comanda a própria cozinha.

Assédio moral chegou ao cinema

Em meio à escalada de denúncias em restaurantes, uma nova leva de produções vem levando essa realidade ácida às telas. E uma das mais incensadas é a série "O Urso", lançada em 2022 pelo Hulu (disponível no Brasil pelo Star+).

A história gira em torno de Carmy (Jeremy Allen White, vencedor do Globo de Ouro), um chef bem-sucedido que precisa regressar à cidade natal para cuidar de uma lanchonete após a morte do irmão.

O que se vê são funcionários viciados, lesões, gritaria, assédio, masculinidade tóxica e excesso de trabalho. Com a crueza de um reality show, a narrativa destrincha um negócio endividado e totalmente mergulhado no caos.

Já no recente filme "O Menu" (2022), o chef protagonista leva isso ao limite ao expor os clientes a uma experiência violenta e sanguinária. Uma sátira precisa aos comportamentos tóxicos das cozinhas.

Outros filmes, como "Burnt, Pegando Fogo" (2015) ou "Chef" (2014), também lançaram luz sobre esse "menu de burnouts", um submundo de pressão e stress profundos.

Uma questão de saúde mental

"Sofro de ansiedade e medo", confessa Richie, um dos personagens de "O Urso". "E quem não?", responde o chef Carmy. O assunto se tornou tão sério a ponto de pesquisas tentarem entender como essa alta voltagem pode afetar a saúde de profissionais. E os resultados são sintomáticos.

74% dos cozinheiros pesquisados disseram ter problemas físicos e mentais derivados do estresse, segundo o estudo "No Ponto de Ebulição: Abordando o Bem-estar Mental em Cozinhas Profissionais", de 2019. Pior: a pandemia fez o caldo engrossar.

Cozinheiros que nunca tiveram problemas de saúde mental começaram a ter preocupações constantes.
Merly Kammerling, chef fundadora da Me, Myself in Mind, que dá workshops de conscientização sobre saúde mental na gastronomia

O fato de a cultura gastronômica ter sido construída em torno da figura do cozinheiro durão só piorou um cardápio que já era ruim. A vulnerabilidade é constantemente condenada no meio, muitas vezes por chefs de temperamento explosivo glamourizados na TV.

Antes da fama

Chefs renomados relembram casos de humilhações em cozinhas no início de carreira

Jefferson Rueda

"Trabalhei em uma cozinha onde o chef deslizava a frigideira quente pelo chão só para mostrar como ele estava ainda coberto de gordura. O metal fumegante queimava os tornozelos dos 'pias' [nome dado aos lavadores de louça]. Antes, esses comportamentos eram considerados comuns, nunca questionados. Ainda bem que a cozinha profissional tem mudado muito nesse sentido."

Rafa Costa e Silva

"Trabalhei em Nova York e depois na Espanha, onde chegava a fazer 17 horas por dia. Tínhamos reunião às 9h: todos enfileirados, com a dólmã passada, barba feita. Fazíamos o almoço das 12h às 17h. Depois de uma hora de intervalo, voltávamos para servir o jantar, que poderia acabar à 1h. Era jovem. Queria me provar. Via aquilo como realização."

'A cozinha me causou depressão'

Depoimento de Julián Otero*, cozinheiro do Mugaritz

No meu primeiro trabalho, o ajudante de cozinha se dedicava a bater nos tornozelos das pessoas com a biqueira de aço dos sapatos quando um trabalhador fazia algo que não estava dentro dos critérios de qualidade.

O chef era mais afável, mas passava o tempo fazendo piadas sexistas com as mulheres e piadas racistas com os outros. Agressões verbais ou físicas sempre foram presentes, tornando aquele local um campo de batalha.

Veio minha primeira crise. Um dia eu me levantei da cama chorando sem querer ir trabalhar.

Mudei de trabalho, alguns hábitos foram embora e outros não. Só percebi tudo isso anos depois, quando consegui ajuda profissional e descobri que o que eu sentia era depressão. Era uma doença.

As cozinhas têm muitas arestas, e nelas se suportou o insuportável: horas intermináveis, salários precários e hierarquias medievais.

A esse fato se soma a pressão exercida por usuários anônimos da rede, guias, listas, influenciadores, críticos e até colegas de trabalho, a ponto de você sentir que seu valor é determinado por todas aquelas vozes.

*Trecho de texto publicado pelo chef no site espanhol Hule y Mantel, com direitos concedidos a Nossa.

O calvário de Bourdain

Casos recentes de suicídio, como os do chef Marcel Keff e do apresentador Anthony Bourdain —fora tantos outros "invisíveis"— tornaram a importante discussão sobre saúde mental de cozinheiros ainda mais urgente.

Bourdain já teve os fantasmas e conflitos internos esquadrinhados em livros e relatos, como o de "Down and Out in Paradise", biografia não autorizada lançada em outubro nos EUA, ainda sem edição brasileira.

O livro narra de forma crua e angustiante os dias anteriores à morte dele em 2018, em um quarto de hotel na França. "Estou sozinho e vivendo em constante incerteza", teria escrito.

Bourdain, que viajava o mundo para conhecer sabores na "melhor profissão do mundo", nunca foi o único a sofrer nas cozinhas.

Em busca de mudanças

Por todo mundo, organizações e grupos de apoio tentam ajudar vítimas de traumas e ansiedade causados pela pressão da gastronomia. Conheça alguns:

  • Ânima (Brasil)

    O grupo de ensino cria parcerias entre alunos de gastronomia e empresas para fornecer experiências reais em cozinhas profissionais e para que eles se preparem para o mercado.

  • Pilot Light (Inglaterra)

    Iniciativas pioneira criadas para dar apoio psicológico ao setor. O cofundador Andrew Clarke foi um dos primeiros chefs a vir a público para compartilhar problemas ligados a saúde mental.

  • Nós, As Pessoas (Portugal)

    Tem parceria com um grupo de psicólogos para a criação de vídeos e oficinas que permitam a líderes e donos de restaurantes lidar melhor com suas equipes. Também oferece sessões gratuitas de terapia.

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