A vez do Batista

O paraibano veste o chapéu de chef e firma sociedade com seu parceiro há 39 anos, Claude Troisgros

Gabrielli Menezes De Nossa Lucas Seixas/UOL

Braço direito do chef-televisivo Claude Troisgros, João Batista Barbosa de Souza, 56, ficou conhecido como Batista, ou "Batiste", como costuma dizer o amigo, com o sotaque carregado.

Natural da Paraíba, ele conheceu seu mentor francês quando chegou ao Rio de Janeiro, aos 17 anos. Ao longo de quase quatro décadas, os dois firmaram uma parceria de cozinha, de programas de TV e de vida.

Este mês, a dupla se prepara para dar mais passos importantes: estrear a terceira temporada de "Mestres do Sabor", que vai ao ar na Globo na quinta (6), e inaugurar um restaurante.

O nome do novo estabelecimento vai direto ao ponto: essa é a vez Do Batista. Enquanto Claude entra como sócio, o cozinheiro será chef na casa que dispensa estrangeirismos no letreiro e no cardápio.

Os clientes que forem ao espaço, instalado no Taste Lab, espécie de praça de alimentação chique do Norte Shopping, no Rio de Janeiro, vão desfrutar simultaneamente de pratos brasileiros e da simpatia do paraibano que ganhou não só o coração do chef francês, como dos cariocas e de todo o país.

Nasce o fiel escudeiro

Aos 17 anos, João Batista saiu de Gurinhém, município de 14.000 habitantes na Paraíba, rumo ao Rio. A motivação era a mesma de muitos nordestinos que faziam o trajeto: conquistar oportunidades de trabalho no Sudeste.

Ele fez bico como estoquista de loja e ajudante de pedreiro antes de chegar ao Roanne, primeira casa de Claude no Rio, e perguntar se tinha vaga. "Em restaurante, restaurante, eu nunca trabalhei, mas já ajudei muito minha mãe e minha avó que cozinhavam na Paraíba", disse à época ao francês, que respondeu: "pode vir".

Batista relembra:

Eu era um paraibinha de menor, pesava 38 quilos e só tinha cabeça. Falei que ia passar 15 dias e voltar para a minha casa, mas estou há 39 anos"

Muita coisa rolou enquanto foi de lavador de prato a fiel escudeiro do chef. Afinal, como eles mesmos colocam, a relação é tipo casamento. Claude tenta explicar a conexão dos dois:

"Ele foi o primeiro funcionário e cresceu na empresa. São muitos anos de confiança. É só eu olhar no olho dele que ele sabe o que quero dizer".

Dos serviços gerais, Batista passou a ser assistente de cozinha e a executar funções que havia aprendido com a sua avó, Corina, que mantinha na Paraíba um restaurante para caminhoneiros. "Meu jeito para cozinha estava no sangue. Me destaquei bem".

Ele logo foi para as entradas, os legumes, os peixes e as carnes até ficar oito anos nas sobremesas. Na década de 90, Claude foi para Nova York abrir uma filial do restaurante CT e sugeriu que Batista se responsabilizasse pela cozinha do Olympe.

Como um nordestino iria assumir? A casa tinha duas estrelas pelo Guia Quatro Rodas. Felizmente, quando fiquei sozinho, ganhamos mais uma"

O voo solo durou seis anos. Com a volta de Claude, Batista perdeu a posição de chef, mas ganhou de vez confiança do mestre ao demonstrar, na prática, que os anos sob a batuta do francês haviam transformado o menino matuto num bravo cozinheiro. "O que Claude me ensinou na cozinha foi tudo".

Gshow/ Samuel Kobayashi

Claude responde

Qual o momento mais engraçado que viveram juntos?

Tantos anos lado a lado renderam aos amigos uma série de histórias para contar. No início do restaurante Claude Troisgros, eles compravam peixe toda terça e quinta no Mercado São Pedro, em Niterói. O estabelecimento fechava às 2 horas e os dois precisavam esperar até 4h30 para fazer a viagem. Claude conta:

"A gente ia com a minha Belina velha que tinha uns buracos do tamanho de melões. O Batista dizia que parecia o carro de Os Flintstones". Pois um dia, a Belina quebrou no meio da ponte Rio-Niterói. E lá foi Batista empurrar o carro enquanto Claude tentava dar partida. "Nem eu nem ele reclamávamos. Fazíamos aquilo com alegria. Nossa amizade começou no trabalho duro".

Quando a empresa iniciou os serviços de catering em eventos, a dupla enfrentou outra cilada. Depois de ajustarem os preparativos de um casamento, chegaram ao hotel exaustos e se depararam com um só quarto e uma única cama de solteiro. Com um "frio de lascar", não teve jeito: cada um virou a cabeça para um dos lados. Dormiram juntinhos.

A história preferida do Claude, ele compartilhou com Nossa em áudio. Para escutar, aperte o play.

Parceria afiada: na TV e no mundo

Em 2005, Claude Troisgros estreou no GNT e se projetou em cadeia nacional. No programa "Menu Confiança", o chef tinha a missão de preparar as receitas de harmonização propostas pelo jornalista e especialista em vinhos Renato Machado.

Batista dava o suporte necessário sempre fora do enquadramento da câmera. Quer dizer... Isso só na teoria. Na prática, o cozinheiro às vezes dava um jeitinho de aparecer.

"Eu tinha que enviar os pratos para eles junto com biscoito de polvilho, que era para neutralizar o paladar dos sabores dos vinhos. Eu mandava os pratos, mas às vezes não o biscoito. Na hora, o Claude me chamava e, aí sim, eu levava. Era uma brincadeira. Eu não sou besta, falava para ele: tem que me chamar".

Foi assim que o paraibano deu as caras e, em 2009, foi escalado com Claude para ocupar a cozinha televisionada do "Que Marravilha!", série do GNT em que a dupla pra lá de afiada cativou o público com harmonia e humildade.

Ao longo de 23 temporadas e doze anos (até agora), Batista viu famílias desafiando Claude a preparar pratos de afeto, chatos para comer se deliciarem com as receitas feitas por eles e chefinhos em tamanho míni desenrolando nas panelas melhor que vários marmanjos.

"Me identifiquei muito com o 'Que Marravilha! Chefinhos'. Foi um teste para o meu coração".

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

Quando cheguei no Rio, não sabia nem que ia ser chef de cozinha. Imagina só trabalhar em televisão!?

Batista

Entre os momentos marcantes à frente das câmeras está a temporada gravada em Nova York, em 2016. "Foi a primeira vez que ele saiu do Brasil. Teve que fazer passaporte e visto. Ficamos uma semana descobrindo grandes restaurantes. Ele ficou abismado com a cidade. Foi surreal", diz Claude.

Na ocasião internacional, Batista foi reconhecido no hotel e na rua. A memória que ele grudou na cabeça teve como palco a Times Square.

Tinham telões lindos, passando várias coisas. Uma hora, mostraram eu e o Claude. Quando vi, chorei muito. Veio toda a lembrança da Paraíba, da minha cidade. Foi coisa de arrepiar. É uma lembrança que nunca vai sair de mim"

O programa também deu a Batista a oportunidade de apresentar o amigo para a família. "Pude mostrar de onde eu vim. Na época, Gurinhém tinha crescido um pouco, mas o programa atraiu turistas".

Como se não bastasse a expressiva trajetória no GNT, eles estrearam como apresentadores da Globo, em 2019, no "Mestres do Sabor", reality show de culinária criado para competir com o "MasterChef", da Band.

"No início, me assustei. O cenário era completamente diferente: enorme e com muitas câmeras".

Junto à atriz Monique Alfradique e aos chefs José Avillez, Kátia Barbosa e Leo Paixão, a dupla se encaminha para o lançamento da terceira temporada.

Na visão de outros chefs

Arquivo pessoal

Emmannuel Bassoleil, chef do Hotel Unique

Cheguei da França em 1987. Claude me apresentou o Batista como uma pessoa querida e de confiança. Quem não conhece a dupla pode até desconfiar, achar que é um fenômeno de TV, mas o sucesso que eles têm não é à toa. É uma história que corre por quase 40 anos com muito respeito e trabalho. Independente das tempestades, eles sempre estiveram juntos no mesmo barco.

Reprodução Instagram

Katia Barbosa, chef do Aconchego Carioca

Foi engraçado quando passeamos de VLT após uma sessão de fotos. Levou duas estações para as pessoas o reconhecerem. Foi insano estar com ele no vagão cheio. Queriam abraçar, fazer foto... Eu falei: "Batista, a gente tem que sair daqui senão o VLT vai virar". Saímos correndo e coloquei ele num Uber. Foi muito gostoso perceber que o Batista é querido pelas pessoas.

Arquivo Pessoal

Jessica Trindade, chef do Chez Claude

Comecei na empresa como estagiária, há quatorze anos. Conheci o Batista no primeiro evento que fui. Ele é um grande cozinheiro com uma característica marcante: a lealdade a quem ama. É normal eu ligar para ele pedindo socorro nas receitas mais antigas. Ele me orienta. Não explica em gramaturas, e sim com os sentimentos. Esse é o verdadeiro espírito da cozinha.

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

De onde vim, para onde vou

Sem o dólmã e o microfone, Batista é João, um cara simples, agregador, muito ligado às origens que ficaram no Nordeste e à família que construiu no Rio, mais precisamente na Rocinha.

Ao sair de casa, em 1982, foi recebido pelo tio na maior favela do Brasil. Morou de favor por seis meses até comprar um "barraco", aos poucos transformado no lar onde criou três filhos com a primeira esposa.

Com a separação, mudou-se para um apartamento de Claude em Botafogo. Em seis meses, comprou outra casa. Na Rocinha, é claro.

Botafogo não era lugar para mim. A Rocinha parece uma cidade à parte do Rio de Janeiro. Tem tudo e todo mundo me conhece. Gosto de chegar do trabalho, bater um papo e tomar uma cervejinha com os amigos que construí lá"

No tempo livre, Batista gosta de passear pelo bairro com o filho caçula, Bernardo, de três anos, e a sua atual mulher, além de receber a vizinhança com comida brasileira. "Em casa, gosto de coisas simples, de comida nordestina..."

O meu caviar é a farinha de mandioca"

Sempre que pode, ele viaja para o sítio na Bahia, onde cultiva frutas e legumes nativos, e para Gurinhém. Assim, dá para matar a saudade da mãe, Eunice, espectadora devotada que gosta de fazer chamadas de vídeo de duas a três vezes por dia.

Esse forte elo com a família faz Batista se manter autêntico e ansiar o momento de voltar para onde veio. "Eu só falo da Paraíba. Enterrei meu umbigo lá".

Quer um programa só seu?

Claro que não. Eu e Claude somos uma dupla. São 39 anos juntos. Não separa mais. É amor infinito.

Deu para ficar rico?

Ainda não. Eu tenho dinheiro para viver a vida mais ou menos, mas rico, não.

O que espera do futuro?

Voltar para a minha terra e viver num sítio andando a cavalo e correndo vaquejada.

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

Sonho finalmente realizado

A nova operação Do Batista consolida a ideia que existe há anos nas cabeças de Claude e Batista. Pela pandemia, porém, o projeto sofreu um bocado de transformações em 2020.

As obras começaram no início do ano passado, "mas veio a pandemia e parou tudo. Já estávamos com os cardápios prontos", diz Batista. Diante do imprevisto, Claude propôs ao amigo colocar o menu para jogo em sistema de delivery. "Eu disse: bora!", conta o cozinheiro.

Em junho, o Do Batista entrou em aplicativos de entrega e passou a entregar aos cariocas pratos como estrogonofe e feijoada. O sucesso foi instantâneo. Hoje, são dois pontos de distribuição na capital fluminense mais um em São Paulo, no imóvel vizinho ao Chez Claude, aberto no Itaim Bibi em setembro. "No Rio, vendemos cerca de 600 pratos por dia".

Naturalmente, a expectativa de ver a versão offline da marca em pleno funcionamento está alta. "Tínhamos esse sonho e está acontecendo agora. Ele merece muito e eu me sinto realizado em fazer isso com ele", diz Claude.

Batista levou brasilidade à alma e aos estabelecimentos de Claude, mas tocar uma casa que une receitas populares em todo o país e pratos típicos do Nordeste é inédito para ambos.

Quando questionado o que mais terá de especial na casa, o paraibano é enfático: "Eu e o Claude".

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL
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