Se tem Copa, tem Canuto

Márcio Canuto largou cargo de direção para ser repórter na Globo e se firmar como rosto da torcida brasileira

Beatriz Cesarini e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Reinaldo Canato e Yasmin Ayumi / Arte UOL

"Caps Lock humano" e "inimigo da tristeza" são dois dos mais realistas rótulos atribuídos ao jornalista Márcio Canuto desde que seu rosto começou a estampar as reportagens sobre torcidas em Copas do Mundo. O jeito irreverente, na contramão do jeitão Globo de jornalismo, tomou conta da televisão e fez dele próprio um meme numa época em que o termo nem existia. Márcio é intensidade pura. Dentro e fora da telinha.

Canuto gosta de gente. É um amante do ao vivo e do inesperado, curte mesmo é ser recebido com as mais singelas reações do povo. Já foi mordido, derrubado e -isso sempre- agarrado. Aos 53 anos, largou um cargo de direção e três décadas de estabilidade na afiliada da TV Globo em Alagoas para começar do zero. "Cheguei para o SPTV e fui cobrir o que ninguém queria: buraco", ri.

Só que a experiência no esporte permitiu que ele não ficasse distante do futebol e da torcida brasileira por muito tempo. Experiente -aos 20 anos, Canuto cobriu sua primeira eliminatória de Copa do Mundo e conquistou o coração de João Saldanha-, quase trinta anos depois voltou aos braços do povo em participações especiais em mundiais.

O contrato com a Globo terminou no fim de 2019, por opção do próprio Márcio. Aos 74 anos, ele acreditava ter trabalhado demais, quase duas décadas sem um fim de semana completo de folga. Estava na hora de começar a viajar. A pandemia de coronavírus, no entanto, adiou o plano, e fez com que o enérgico Márcio Canuto decidisse voltar à ativa. Hoje, ele faz trabalhos pontuais, num esquema de tempo que o permite cuidar da esposa, Líbia, na fase final de tratamento para um câncer.

Canuto acorda gritando bom dia e desejando a ela os melhores pensamentos. Se Líbia acorda um pouco desanimada, ele a bota pra cima. "Às vezes cansa esse jeito dele. É o tempo todo assim", brinca a esposa. O amor dos dois é o que carrega a inesgotável bateria de Canuto. "Essa é minha mulér. O amor da minha vida".

Arte UOL / Raul Spinassé / Folhapress

A TV e a Copa

A partir do dia 20 de novembro, o mundo inteiro estará com os olhares voltados para a Copa do Mundo, que será realizada no Qatar. A maioria dos brasileiros acompanhará o maior evento de futebol do universo pela televisão.

É justamente esse aparelho que, ao longo dos anos, moldou a forma de o brasileiro torcer. Nesta série, o UOL Esporte relembra e conta a história de grandes momentos da televisão brasileira em Copas do Mundo, desde personagens icônicos e imprescindíveis no Mundial a simples frases que todos entoamos ao longo dos anos.

"Não muda o cara"

Márcio Canuto recebeu o UOL em sua casa em São Paulo. Nesta entrevista, ele relembra as tantas histórias de mais de 50 anos de carreira, que começou no esporte e ainda não terminou.

Ainda quando estava na TV Gazeta de Alagoas, afiliada da Globo no estado, Canuto já aparecia vez ou outra nas telinhas do eixo Rio-São Paulo. O jeitão descontraído e único do jornalista chamou a atenção do diretor da TV Globo Amauri Soares, a quem Canuto considera um cara à frente do seu tempo.

Amauri contratou Canuto para ser repórter do jornal local paulista SPTV, há 23 anos. Para assumir a função, o jornalista abriu mão de uma estabilidade de 30 anos e de um cargo de direção na editoria de esporte da filial alagoana. Ele começaria do zero, numa função geralmente atribuída a profissionais recém-chegados: o jornalismo comunitário.

"Fui movido por esse desafio. 'Deu certo no esporte, será que vai dar certo lá?' Eu me questionava. Seria a reformulação do jornalismo comunitário. Não era só registrar o buraco que tinha na rua, era contar a história do buraco e cobrar das autoridades a solução do problema. E deu muito certo", diz Canuto.

"A recomendação da chefia da Globo, quando me contrataram, foi que não me mudassem. Que meu jeito continuasse o mesmo, porque eles gostavam disso. Disseram que, se conseguissem melhorar minha dicção, que é péssima, tudo bem. Mas, no resto, não era para mexer."

O jornalista acredita, ainda, que foi esse jeito o que conquistou a chefia da Globo. "Imagine se eu, grande, bigodudo e careca viesse pedir um emprego em São Paulo. Acha que me dariam uma chance?".

O jeitão de Canuto sempre passou longe do que o telespectador está habituado a ver nos jornais da Globo. O tal jeito Globo de jornalismo -aquela pegada mais séria, noticiosa- não moldou Márcio Canuto.

João Saldanha, o amigo genial

Canuto considera sua vida "muito acidental", e diz que é preciso aproveitar esses acidentes. Aos 20 anos, ele foi enviado para a cobertura das Eliminatórias da Copa do Mundo, em 1969, pela TV Gazeta de Alagoas.

No começo, sequer foi acompanhado por um fotógrafo. Quando acabavam os treinos, buscava na agência parceira as fotos que os jornais não tinham usado para ilustrar seus textos, escritos a duras penas durante as madrugadas. Quando o dia amanhecia, um correspondente buscava os textos no apartamento em que Canuto estava hospedado e levava até o jornal alagoano, de avião. "A notícia de hoje sairia depois de amanhã e ainda seria novidade".

Até que, antes de um jogo contra a seleção sergipana, que aconteceu em Sergipe, Canuto viu João Saldanha caminhando ao lado do médico da seleção. Grudou nos dois, foi conversando, passeando, à beira do Rio Sergipe. Até que Saldanha, ele conta, indagou: "Menino, tu trabalha demais, hein?. Eu acordo, tu dá bom dia. Eu vou dormir, tu dá boa noite. Vou lhe recompensar. Vou lhe dar um furo".

"Eu não acreditei naquilo, e ele deu mesmo. Contou que convocaria um goleiro de Alagoas, o Lula, do Corinthians que substituiria o contundido Cláudio, do Santos. Dei o furo. Naquela época, demorava 40 minutos para avisar à redação. Eram só três linhas para o Nordeste todo, você se inscrevia, pegava ficha. Demorei, mas dei o furo, e isso incomodou outros jornalistas. Um deles, durante a coletiva, provocou o técnico. Disse: 'Saldanha, dizem que você fala demais'. E ele respondeu: 'É bom que eu saiba, porque para sua rádio não dou mais uma palavra'. Isso era João Saldanha. Ele era genial."

Do furo ao altar

Canuto descreve o encontro com Saldanha como uma sintonia de almas. O homem modesto, cheio da grana mas que se satisfazia com uma camisa polo, uma calça jeans e dois fuscas -se um quebrasse, o outro estava à espera- chegou a abdicar de um cheque de 5 mil dólares porque estava com preguiça de escrever 30 linhas de um artigo. "Ele era completamente desprovido".

A conexão logo virou amizade, e Canuto convidou João Saldanha para ser padrinho de seu casamento, que aconteceu no estádio Rei Pelé, o Trapichão.

O treinador ainda passou um revéillon na casa da família de Canuto. Eram nove irmãos, "todos que nem eu", diz o jornalista. "Falam alto, gritam, abraçam todo mundo. É uma confusão".

"Eu estava apreensivo, fiquei com medo de o Saldanha sair correndo. Mas ele amou. Amou tanto que, no ano seguinte, quis voltar para a virada. Virou família. No último dia de vida dele, ele escreveu no Jornal do Brasil algo sobre mim que não tinha nada a ver com a reportagem. Ele disse algo como 'precisamos ver mais o Márcio Canuto'. Foi a despedida dele."

Lugar de Canuto é no meio do povo

Esse clima, esse jeito dos nove irmãos que conquistou João Saldanha, é o que fez Márcio Canuto se destacar num espaço que não é dos mais mais cobiçados pelos repórteres: os braços do povo. Depois de 1969, Canuto voltou às Copas do Mundo em 1986, onde fincou sua marca.

"Normalmente, o repórter tem medo de ficar no meio do povo, e eu entendo. Só que eu gosto disso. É algo que me estimula, a troca de energia, as coisas inusitadas que envolvem o ao vivo. Eu amo o inesperado, o imprevisível. Junto do povo, a gente não sabe o que vai acontecer. Isso eu acho arretado."

Márcio foi mordido numa transmissão ao vivo, pouco depois da fatídica mordida de Luís Suárez no zagueiro Giorgio Chiellini. Ele não ligou nem um pouco. Em outro momento, foi derrubado pelo público, tamanha euforia. "Mas tive a pressa de levantar logo para que não pensassem que eu estava acabado", ri. "É muita emoção".

As loucas Copas de Canuto

  • Churrasco com pagode

    Na Copa de 1998, na França, Canuto reuniu brasileiros para um churrasquinho com pagode às margens do Rio Sena. Enquanto um abanava o fogo do carvão na churrasqueira elétrica, outros cuidavam da música. "O francês nunca viu um negócio daquele".

  • Pelada na Torre

    Sem falar francês e na base do embromation, Canuto conseguiu convencer a polícia francesa a permitir uma peladinha entre brasileiros e franceses no imaculado gramado da Torre Eiffel. "Rolei a bola, aquele corre-corre pra lá e pra cá, o diabo a quatro. Foram 30 minutos de pelada".

  • Água de coco no asfalto

    Para mostrar que o Brasil parava em dias de jogos da seleção, em 1986 Marcio Canuto foi até a Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, e deitou no asfalto. Numa mão, um coco, na outra, o microfone, e em frente a ele, uma televisão com a partida sendo transmitida. Nenhum carro passava por ali, e Canuto bebendo água de coco deitado na avenida provava isso.

Gratidão a Galvão

Católico, Canuto coleciona imagens de santos em casa -ele é devoto de Nossa Senhora Aparecida e vai à missa todo domingo. Na volta, traz flores para a esposa. Em suas orações diárias, está Galvão Bueno, a quem Marcio considera "um homem exemplar". "Tenho de rezar uma Ave Maria todo dia para ele".

"O Galvão é uma figura maravilhosa e extremamente generosa. Ele me chamava com certa empolgação, e isso contagiava também as pessoas da equipe. Quando falava comigo, falava com carinho, à espera dessa manifestação popular", afirma.

Em 2018, Canuto não participou das manifestações populares de torcedores. No Twitter, usuários reclamaram da ausência do jornalista que, por toda sua autenticidade, se firmou como a personificação da euforia da torcida.

Neste 2022, ele ainda não sabe qual vai ser sua missão na Copa do Mundo, mas ressalta que está preparado e que gostaria muito de estar com o povo mais uma vez. Aos 76 anos, se sente enérgico o suficiente para continuar vivendo do jeito que gosta. "Não sei qual vai ser o futuro, mas se me mandarem atrás de torcida, eu vou com amor".

Os planos de viajar e curtir a aposentadoria não foram deixados para trás. O tratamento de Líbia foi bastante eficaz e, em breve, acaba. Momento, então, de rever tudo. Além do trabalho que fez na Record durante o Campeonato Paulista, Canuto tem feito campanhas publicitárias -já foram 12. "É outro mundo, e eu gosto".

A pandemia que parou Canuto

A decisão de viajar o mundo foi pausada pela pandemia de coronavírus e, já fora da televisão, Márcio Canuto se viu interrompido pela primeira vez. Foi nesse período, ainda, que veio a notícia do câncer que acometeu Líbia.

"Estava em casa, parado, precisando injetar energia nela. Tive uma crise de ansiedade tão grande que não consegui me mexer. Meus dedos travaram, foi desesperador. Foi quando veio o convite da Record, e meu filho me incentivou a ir. Ele sabia que eu não podia ficar preso em casa".

"Quando soube que teria manifestação junto da torcida, fiquei mais feliz ainda. Fiquei receoso, já que estava afastado do público. Mas, quando apareci pela primeira vez, fui tão abraçado que parecia que eu não tinha parado. Foi um tratamento maravilhoso. Eu tenho 60 anos de trabalho. Ser reconhecido 'nego véio' é bom demais".

+ Especiais

Igor Siqueira/UOL

A vida tranquila de Manga, o goleiro com as mãos mais reconhecidas do futebol brasileiro, no Retiro dos Artistas.

Ler mais
Gabo Morales/UOL

Zé Love e a luta contra a depressão: "Posso estar sorrindo agora e dar cinco passos e começar a chorar".

Ler mais
Reprodução

Leônidas da Silva desembarcava há 80 anos na estação do Brás após São Paulo pagar prêmio de loteria por ele.

Ler mais
Henrique Arcoverde/Divulgação

Iran Ferreira, o cara da luva de pedreiro, comprou uma TV de tela plana para mainha (e virou hit mundial).

Ler mais
Topo