O lado bom da dor

Como três cirurgias no joelho ajudaram a moldar a carreira e a performance de Rebeca Andrade, campeã olímpica

Demétro Vecchioli Ricardo Bufolim/CBG

Recém-coroada protagonista da ginástica artística mundial pela própria Simone Biles, Rebeca Andrade não precisaria, mas vai disputar os Jogos Pan-Americanos de Santiago a partir deste sábado. Consagrada após um Mundial tão vitorioso quanto desgastante, a segunda ginasta mais completa do mundo pediu para ir ao Chile.

Rebeca não quer, daqui a um ano, quando revisitar sua carreira para decidir se se aposenta da ginástica, desconhecer a sensação de disputar um Pan. Ela não competiu no torneio de 2015, em Toronto, no ano de sua estreia na categoria adulta, nem no de 2019, em Lima.

Nas duas ocasiões, foi impedida por lesões no ligamento cruzado anterior (LCA) do joelho direito, que exigiram cirurgias. Suas lembranças pan-americanas envolvem apenas televisão, fisioterapia e dor.

Sem as lesões, teria sido ela, e não a canadense Ellie Black, a conquistar 10 medalhas nesses torneios? E em Mundiais? Se ela tivesse tido a oportunidade de competir em 2015, 2017 e 2019, sua coleção de medalhas, que hoje soma nove conquistas, teria que tamanho?

São respostas que ninguém tem porque não há como excluir as cirurgias da carreira de Rebeca -além das duas que a tiraram dos Pans, existiu outra. Mas é certo dizer que sem as lesões, as dores, os treinamentos e os aprendizados que seguiram, são parte da trajetória da ginasta que hoje é a grande estrela do esporte brasileiro.

E, em algum nível, são essenciais para explicar o sucesso atual.

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Reprodução/@rebecaandrade As 11 medalhas de Rebeca em Mundiais e Olimpíadas

As 11 medalhas de Rebeca em Mundiais e Olimpíadas

Rebeca foi dormir descontente na noite do último dia 2 de outubro, mesmo classificada a cinco finais do Mundial de ginástica. Havia feito o que nunca nenhuma outra brasileira conseguiu, mas não se conformava de não ter avançado à final das paralelas assimétricas.

O aparelho sempre foi uma prioridade, tanto que proporcionou sua primeira medalha em Copas do Mundo, mas ganhou uma conotação especial depois de três cirurgias.

Nos momentos em que não podia sequer pisar no chão e realizar saltos era um sonho temporalmente distante, as assimétricas foram sua conexão com a ginástica, a razão de estar em um ginásio, com as colegas, e não em uma sala de fisioterapia.

"É um aparelho que ela treina muito bem, que ela gosta, e em que ela evoluiu muito. E esse crescimento nas assimétricas jogou o individual geral dela lá em cima", avalia o técnico Francisco Porath, que todos conhecem como Xico - ainda que algumas vezes grafado como Chico.

Por "Individual lá em cima" lê-se: permitiu a ela aumentar a somatória dos quatro aparelhos, chegar à medalha de prata em Tóquio-2020, ao ouro no Mundial de 2022, e ao segundo lugar, só atrás de Simone Biles, no torneio deste ano. Nas assimétricas, porém, ela foi só 15ª.

"Ficou o desejo porque a gente fez a serie para classificar [para a final] para depois tentar a série mais forte. Não digo que ela pudesse disputar medalha, mas era a oportunidade de ela apresentar a melhor série dela, que pode passar de 15 pontos", diz Xico. A chinesa Qiu Qiyuan levou o ouro com 15,100. A melhor nota de Rebeca no aparelho foi 14,500 na final do individual geral.

Ricardo Bufolim/CBG Rebeca e Simone Biles

Rebeca e Simone Biles

Jorge Bichara, que foi diretor de Esportes do Comitê Olímpico do Brasil (COB) até o ano passado e ainda tem relação pessoal muito próxima com Rebeca, acredita que as lesões ajudaram a construir uma ginasta vencedora.

"A Rebeca é a comprovação da maturidade esportiva", diz ele. "Ela é muito conhecedora do seu corpo. As lesões acabaram por trazer alguns fatores positivos para ela, porque ela desenvolveu uma capacidade de superação enorme em relação às adversidades. Mas, além disso, ela adquiriu uma maturidade competitiva que dá a ela a completa percepção do que fazer para estar bem", explica Bichara.

Esse conhecimento sobre o corpo, no entender do dirigente que ajudou a montar a estrutura do COB que respalda Rebeca, ajuda a permitir a ela alcançar níveis de execução muito altos, como os que mostrou no Mundial. "Isso se dá pela confiança, pelo treinamento e pelo conhecimento do seu corpo", opina.

Ricardo Bufolim/CBG Ricardo Bufolim/CBG
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Xico, no Mundial da Antuérpia

Xico e Rebeca estão juntos praticamente desde sempre. Aluno de educação física, ele não tinha histórico de atleta em modalidade alguma e caiu de paraquedas na ginástica, quando abriu uma vaga de estágio no local onde a seleção treinava, em Curitiba, inicialmente para ajudar na escolinha.

Com o tempo, foi promovido a ajudar nos treinos da equipe principal e decidiu que queria ser treinador de ginástica. A primeira oportunidade foi em Guarulhos, onde uma menininha de 7 anos chamada Rebeca se destacava.

"Era praticamente questão de honra fazê-la se tornar campeã olímpica. Desde o princípio a gente notava que ela tinha um talento excepcional", diz Xico, que então formava uma equipe com Keli Kitaura, também tida como responsável por lançar Rebeca.

Mas como eles percebiam isso? "Acho que a forma como ela lidava, desde pequena, com o treinamento repetitivo. A criança cansa, a parte de ganhar flexibilidade gera dores, a criança chora. Se ela sentia dor, era sorrindo. Assim que ela foi levando a carreira dela", conta.

E continua sendo assim, o que ela leva como exemplo para a seleção, após tantas lesões. "Às vezes as meninas estão na fisioterapia, chorando, com dor, e ela fala que tem que ser assim, explica que tem que passar por isso para ganhar força, aumentar a flexibilidade. Ela virou referência mundial. As pessoas param a gente e perguntam para o físio, para o médico, como a gente conseguiu".

Ricardo Bufolim/CBG Ricardo Bufolim/CBG

A relação entre os dois não pode ser descrita como de mestre e pupila, porque Xico e Rebeca muitas vezes aprenderam juntos. As cirurgias no joelho foram parte importante nesse processo.

"Talvez eu não me sentiria um treinador melhor se não tivesse passado por isso. Serve para todo mundo aprender. A equipe toda melhorou com as lesões e com o que aconteceu", diz o treinador.

Foi ao lado de Rebeca que Xico foi de técnico inexperiente, dando seus primeiros passos na carreira, a campeão do mundo, reconhecido internacionalmente. Mas isso só foi possível pelas trocas entre os dois.

"Quando você pega um atleta muito talentoso, a sensação que dá é que ele pode fazer qualquer competição. Hoje a gente tem muito mais dados para poder decidir. Ela conhece muito bem o corpo dela, e toma 50% das decisões, porque ela diz como ela se sente", conta Xico. "Se fosse 51 x 49 ou 49 x 51 não daria certo"

Para Bichara, a forma como técnico e ginasta dialogam faz enorme diferença no sucesso esportivo de Rebeca. "Eles conseguem entender as necessidades para que ela esteja sempre em forma quando vai competir. Ela tem a tranquilidade, a consciência do seu potencial. Todo o treinamento é discutido com o Xico, ela é parte do processo, e isso deixa ela mais segura".

O treinador concorda. "A gente precisa muito do feeling dela, mas as decisões são discutidas. Por exemplo: a gente alterou a primeira passada do solo, e ela não conseguia fazer. Vamos insistir? Vamos. Ela: 'não vou conseguir', e eu: "Não tá na hora de decidir, vamos tentar mais um pouco'. E aí começa a sair. Mas tudo porque ela topava. Ela pode estar liberada pelo médico, mas se ela não estiver à vontade, a gente não vai."

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Rebeca e Jorge Bichara nas Olimpíadas de Tóquio

Jorge Bichara aponta que Rebeca faz parte de um processo que está revolucionando a ginástica artística feminina.

"Deixou de ter a ginástica das meninas. São mulheres praticando ginástica. São atletas mulheres, não são crianças prodígio, meninas submetidas a restrições alimentares absurdas. Isso muda a visão sobre o esporte. O exemplo que as campeãs estão dando pode modificar a ginástica, porque permite uma longevidade saudável."

Na Antuérpia, Simone Biles se tornou a campeã mais velha da história do individual geral, aos 26 anos, depois de mais de dois anos afastada. Rebeca poderia ter parado em cada uma das vezes que se lesionou gravemente, mas as cirurgias acabaram por torná-la mais forte, para chegar competitiva aos 24 anos.

"A Rebeca que, na hora da competição, não tem ninguém, é ela contra ela mesma. O tanto de luz, o tanto de gritaria, nada interfere. Ela só pensa que o aparelho que está ali é igual ao que tem no CT, e cabe a ela dar o melhor. Quando precisa, ela consegue esfriar e não receber toda essa energia. Pode estar tudo colorido, um espetáculo para o público, mas para ela é um tablado, um solo, uma trave. É igual ao CT, então o resto não pode interferir".

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