Mesmo sangue

Há 65 anos, dois irmãos jogaram juntos pelo Brasil em Assunção. Paraguaios podem repetir a história na terça

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Reprodução

Na próxima terça (8), a história do futebol vai curiosamente se repetir. Dois irmãos estão relacionados e poderão defender uma seleção em uma partida envolvendo Paraguai e Brasil: os 'hermanos' Oscar e Angel Romero. Os gêmeos estão no grupo de jogadores escolhidos pelo técnico Eduardo Berizzo para ir a campo no estádio Defensores del Chaco pelas eliminatórias da Copa de 2022.

Pois foi exatamente contra os paraguaios, no dia 12 de junho de 1956, também em Assunção, que pela segunda vez dois manos brasileiros defenderam a seleção em uma mesma partida: o ponta-direita Calazans e o quarto-zagueiro Zózimo.

"Sim, é um fato histórico", assegura o jornalista e escritor Celso Unzelte, um pesquisador incansável dos segredos do nosso futebol. "Irmãos na seleção tivemos muitos. Como o caso mais recente de Sócrates e Raí, mas juntos em um mesmo momento, em uma mesma partida, só os irmãos Calazans e os Da Guia."

Líder das eliminatórias sul-americanas com 15 pontos, o Brasil enfrenta o Paraguai às 21h30 de terça, no estádio Defensores del Chaco, em Assunção — quando o clássico sul-americano poderá ter dois irmãos em campo de novo após 65 anos.

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Os primeiros irmãos

A primeira vez que dois irmãos vestiram a camisa do Brasil em um jogo foi no dia 15 de janeiro de 1939. "Foram os irmãos Mamédio e Domingos da Guia", conta Celso Unzelte. "Eles jogavam no Flamengo e foram convocados para enfrentar a Argentina, no campo de São Januário, pela Copa Roca."

O Brasil perdeu de 5 a 1, mesmo tendo na defesa o grande Domingos da Guia [na foto, com a camisa do Flamengo]. O zagueiro que era conhecido pelo apelido de Pai da Bola e foi um craque respeitado. Não bastasse isso, ainda foi o pai de Ademir da Guia, o Divino, idolatrado por palmeirenses.

"O irmão do Domingos, o Mamédio, era conhecido no futebol pelo nome de Médio e só participou desta única partida pela seleção brasileira", diz Unzelte.

O time do Brasil jogou neste dia com Batatais, Domingos da Guia e Machado; Bioró, Brandão e Médio; Luizinho, Romeu, Leônidas da Silva, Tim e Hércules. O técnico foi Carlos Nascimento.

UH/Folhapress

Astros de Bangu

Somente 17 anos depois dois irmãos vestiriam novamente a camisa do Brasil em uma partida.

"É verdade!", orgulha-se o atacante Calazans, que está com 86 anos e mora no Rio de Janeiro, bem em frente ao campo do Bangu, clube em que iniciou sua carreira e onde seu irmão Zózimo brilhou por muitos anos, chegando a ser bicampeão mundial pelo Brasil [na foto ao lado].

"Zózimo era impressionante e chegou ao título mundial sendo jogador de um time que não era considerado grande, uma verdadeira façanha", reconhece o jornalista José Trajano, que viu o zagueiro em seus tempos de moleque torcedor do América. "Era forte, elegante, que sabia sair jogando e era muito bom de cabeça. Jogou mais de 500 partidas pelo Bangu. Vi muitos jogos dele porque meu tio era torcedor do Bangu."

A admiração de José Trajano por Calazans é maior ainda, porque depois de jogar no Bangu, onde era ídolo e brilhou ao lado do irmão, o ponta-direita foi contratado pelo América, que tinha acabado de vender o ídolo Canário para o grande Real Madrid.

"Calazans jogou com Zizinho, Décio Esteves, Ubaldo e Zózimo no Bangu. Era aquele ponta tradicional, que ia à linha de fundo, cruzava e ainda chutava forte", define o jornalista, que não esquece de citar o gol que Calazans fez contra o Botafogo, no empate de 3 a 3, na partida que antecedeu a finalíssima contra o Fluminense. "Calazans fez o gol de empate que abriu as portas para a conquista do título de 1960."

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Juntos na Taça Oswaldo Cruz

Mas o jogo em que os irmãos Zózimo e Calazans estiveram juntos defendendo o Brasil ocorreu alguns anos antes: foi em 1956. O técnico da seleção nacional era Flávio Costa, e a partida valia pela tradicional disputa da Taça Oswaldo Cruz.

"O Flávio Costa era meu amigo", conta Calazans, que em família tinha o apelido de Deco. "E eu chamava o Zózimo de Dodi". E sabe qual é o apelido do Flávio Costa? Alicate. Você não sabia?"

O ponta Calazans é muito bem-humorado. Traz as histórias de sua família, de seus 11 irmãos na ponta da língua: "Quatro mulheres e sete homens. Dos sete, quatro jogaram para valer: eu, o Dodi, o Júlio, que jogou no Ypiranga da Bahia e no São Cristóvão, e o Augustinho, que foi do Bonsucesso."

Trajano e Calazans têm noção de que nunca na era da CBD (era assim que se chamava a antiga CBF) a seleção brasileira jogou tantas partidas em uma só temporada, como em 1956.

"E só tinha craque nos times formados", assegura Calazans.

Foram 27 jogos da seleção - uma marca só igualada em 1997. Naquele ano de 1956, a seleção disputou um Sul-Americano-Extra em Montevidéu representada pela seleção paulista. No mês de março, uma seleção gaúcha disputou o Pan-americano na Costa Rica e em abril e maio uma outra equipe convocada fez uma excursão à Europa, que teve como fatos históricos: um gol de bicicleta de Gino contra Portugal, dois pênaltis defendidos por Gylmar dos Santos Neves contra a Inglaterra (na derrota por 4 a 2) e um inesperado baile de Stanley Mathews em Nilton Santos.

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Ao lado de um certo Leônidas da Selva

No jogo em que os irmãos Calazans e Zózimo tiveram a honra de atuar juntos, o árbitro foi o brasileiro Alberto da Gama Malcher. E a seleção escalada por Flávio Costa formou com Veludo, Djalma Santos, Edson, Zózimo, Hélio e Formiga; Canário (depois Calazans), Zizinho, Leônidas da Selva, Romeiro e Ferreira.

"O Brasil venceu o Paraguai por 2 a 0, com dois gols de Ferreira, meu companheiro no ataque do América, e eu entrei no segundo tempo no lugar do Canário", relembra Calazans, que tem até hoje fotos da partida e a camisa usada na ocasião.

O jornalista José Trajano, vendo a escalação, comenta que foi uma seleção formada tendo como base os times do Bangu e América: "Tinha ainda o reforço do Veludo do Fluminense, mas na época jogando emprestado ao Canto do Rio, o Djalma Santos da Portuguesa e o Formiga que era do Santos. E acho que não estou enganado porque o ataque que começou era todo do meu América, inclusive o Leônidas da Selva, com exceção do Zizinho que era do Bangu na época."

A presença do atacante Leônidas da Selva [na foto, com a camisa do América] é um outro assunto curioso para ser recordado.

"Tinha esse apelido porque também era muito flexível, elástico, como se falava na época. Lembrava até o legítimo Leônidas da Silva, o Diamante Negro, o criador das jogadas de bicicleta", diz Trajano.

Emilio Ronchini/Mondadori via Getty Images

Calazans não pôde contra Mané

Muita gente pode até perguntar por que Calazans não continuou na seleção daquela década. E quem tem a resposta na ponta da língua é a sua esposa Ediléia.

"Você sabe quem eram os outros pontas direitas daqueles tempos?", ela indaga, com a resposta já pronta. "Tinha o Mané Garrincha que era do Botafogo, o Joel do Flamengo, o Telê Santana do Fluminense, o Sabará do Vasco da Gama e ainda tinha o Julinho, parece que Botelho, que em 1958 jogava na Itália, não é mesmo?".

É sim! E o próprio Calazans entra na conversa para incluir mais um ponta veloz nessa disputa pela camisa sete. "O Dorval do Santos também jogava muito."

Por isso, quando Vicente Feola selecionou os jogadores para a Copa de 1958, a ponta-direita estava lotada de craques velozes e dribladores. Provavelmente por isso, Calazans não seguiu com seu irmão Zózimo para a Suécia.

"E olha que o Vicente Feola tentou me contratar para o time do São Paulo, cheguei a viajar até a capital paulista, fizeram uma boa proposta, mas eu queria garantir o meu futuro e já tinha emprego encaminhado aqui no Rio de Janeiro, tinha passado no concurso para a receita estadual", conta Calazans. "Por isso não aceitei o convite."

Seu irmão Zózimo também era estudado. Tanto que lia muito e até falava inglês, servindo muitas vezes de intérprete para a seleção nacional na campanha da Suécia em 1958 [na foto, Zózimo aparece na concentração na Suécia ao lado de Pelé, Pepe, Mazzola, do técnico Vicente Feola e do dirigente Paulo Machado de Carvalho].

Reprodução/Museu Afro Brasil

Adeus a Zózimo e gol histórico no Maracanã

A família dos dois baianos da cidade de Plataforma tinha muito orgulho dessa formação extra-futebolística. Zózimo Alves Calazans era dois anos mais velho, tinha nascido em 1932, jogou 36 partidas pelo Brasil, colecionando 25 vitórias, 6 empates e 5 derrotas [na foto, em 1962]. Foi reserva de Orlando em 1958 e titular da conquista do mundial do Chile, em 1962, ao lado de Mauro Ramos de Oliveira.

Já em fim de carreira, Zózimo jogou no Flamengo, Esportiva de Guaratinguetá e Sport Boys no Peru. Faleceu aos 45 anos em um acidente automobilístico.

O acidente marcou a vida da família. Mas, enfim, Calazans está aqui para contar as histórias.

"Eu estudei na Escola Técnica Nacional e muitas vezes pulei a janela da classe para ir treinar. Mas em nossa família o estudo era o principal. Tanto que tive até propostas para jogar fora do país mas nunca aceitei. Me aposentei como funcionário da Fazenda após 40 anos. Por isso não fui jogar no River Plate."

Depois que deixou o América, Calazans jogou no Fluminense, foi campeão pelo Bahia. Ele continua acompanhando futebol, vai ver o jogo contra o Paraguai pela televisão, mas acha que Neymar podia ser mais decisivo, mais efetivo para a seleção.

"No meu tempo não era só o Pelé e o Garrincha que decidiam. Havia muitos craques."

E antes de se despedir, Calazans pede para contar uma história.

"Eu só vou te pedir um favor: conte que eu fiz o gol de falta mais longe da história do Maracanã. Foi contra o Flamengo, em 1960. Eu jogava pelo América. A falta foi quase no meio de campo e um dos narradores de rádio na ocasião era o Ari Barroso, flamenguista doente. Quem estava ouvindo a transmissão disse que ele comentou: 'O que é isso, Calazans, vai bater a falta daí de longe? Se você fizer o gol eu vou embora para casa'. E eu chutava forte, fiz o gol e ele abandonou a transmissão. Você acredita? Pois é a pura verdade!"

Aconteceu no dia 25 de setembro de 1960.

E o América bateu o Flamengo por 1 a 0.

Mais uma façanha de Deco.

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