Sessentabilidade

Tite completa 60 anos recluso, ansioso para trabalhar e tentando resolver problemas da seleção

Gabriel Carneiro e Igor Siqueira Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro Thiago Ribeiro/AGIF

O jornalismo esportivo adora efemérides, 'dez anos de tal título', 'duas décadas de tal drible espetacular'. Hoje (25) é dia de uma: o aniversário de 60 anos de Tite, técnico da seleção brasileira masculina principal. Desta vez, o protagonista da data especial preferiu ficar em silêncio.

Naturalmente reservado, ele ficou ainda mais recluso em tempos de pandemia, segundo dizem pessoas de seu convívio ouvidas pelo UOL Esporte. Não à toa, negou todos os convites para falar sobre o aniversário com o argumento de "curtir em casa com a família, sem tanta exposição".

O comportamento tem explicação: apesar do monitoramento de jogos à distância e das incontáveis reuniões na CBF, Tite está distante daquilo que marcou sua rotina por décadas: o campo, a bola e os jogadores. Além disso, vive um dos momentos mais delicados no comando da seleção, administrando até problemas que não passariam por ele, como o calendário de seleções que atrapalha os times brasileiros, a crise da CBF e o ciclo desfavorável de preparação para a Copa do Qatar.

O tempo de reclusão foi aproveitado para pensar em maneiras de melhorar o aproveitamento da seleção e quem sabe assim aliviar as constantes críticas dirigidas a quem sempre está no alvo. Isso além dos cuidados com a saúde — o treinador, que gosta de caminhar com a esposa e também pratica natação, tomou a segunda dose da vacina contra covid-19 no último dia 14.

É assim que Tite chega aos 60 anos.

Thiago Ribeiro/AGIF
Lucas Figueiredo/CBF

O presente certo

Se você não quiser errar em um presente para Tite, aposte em livros. Essa tem sido a estratégia de Cléber Xavier, auxiliar do técnico há 20 anos. O único problema é saber se ele já leu ou não o livro. Pouco afeito à tecnologia, Tite gosta de papel. Letras grandes. E investe tempo em leitura e análise de jogos.

Tite se alterna entre a literatura técnica do futebol, biografias e experiências de gestão de grupo de outros esportes. No trabalho, o papo raramente foge ao futebol. É por tanto discutir aspectos táticos que passou a ajustar — palavra usada com frequência pela comissão técnica — a forma de a seleção jogar nos últimos anos.

A personalidade do workaholic se une à reclusão, que aumenta com os cabelos brancos e a pandemia.

"Brinco que tentei sociabilizar ele, e ele tentou me aquietar. Nenhum conseguiu mudar o outro. A gente continua com o mesmo respeito, com integração. Ele é dois anos mais velho que eu, parece uma diferença maior", conta Cléber, que curte praia e programas ao ar livre.

Tite é bom no churrasco e não esconde o gosto pela caipirinha. Mas não adianta chamá-lo para festas de arromba. Ele chega aos 60 anos cada vez mais ligado à família. O núcleo mais próximo tem a mulher, Rose, e dois filhos: Matheus, com quem trabalha na seleção, e Gabriele. Do casamento do filho com Fernanda vieram os netos: Lucca, 3 anos, e Leonardo, de 2. Um dos presentes de aniversário que vai ganhar — que é ainda uma surpresa e por isso não pode ser revelado aqui — é justamente para se divertir com os netos. "Porque é um dos poucos momentos em que ele tira a cabeça do futebol e curte", explica Matheus.

Em Caxias do Sul (RS), o treinador mata saudade dos irmãos, Miro e Beatriz. Este é o terceiro aniversário desde que a mãe do técnico, dona Ivone, morreu.

Lucas Figueiredo/CBF

Ciclo ingrato para a Copa do Qatar

Os primeiros sucessos da carreira de Tite como treinador datam de 2000 e 2001. Nesses pouco mais de 20 anos de carreira na elite, foram raros os momentos de desemprego ou parada por decisão própria. Ou seja, uma coisa que ele vive agora, em meio à pandemia, é incomum: falta de contato com o campo e os jogadores, seja em treino ou jogos. Todo mundo próximo dele diz que isso faz muita falta e gera ansiedade e agitação, ainda mais quando as datas de jogos se aproximam, como acontece agora.

Desde o início da pandemia, há 14 meses, Tite trabalhou em apenas quatro jogos e comandou 12 treinamentos — muitos deles sem elenco completo. Na entrevista coletiva da convocação, o técnico lamentou todo esse tempo sem serviço de campo.

No dado estatístico que tu me coloca tu me deixou assim [cabisbaixo]. Pô, nós podíamos ter feito 20 jogos [neste período] (risos). Mas a realidade não nos permite isso."

Mais do que impor a Tite essa falta de contato com o campo, a pandemia deixa a seleção brasileira num dos piores ciclos de preparação para a Copa do Mundo realizados recentemente.

Como comparação: o ciclo para o Qatar já tem 32 meses, e a seleção entrou em campo apenas 26 vezes. Na preparação para a Copa da Rússia foram 35 partidas nesse mesmo período, contra 38 no ciclo para o Mundial disputado no Brasil em 2014. Falta tempo para testar alternativas de jogo, peças e entender os comportamentos dos jogadores. E tudo isso em meio a contextos pouco agradáveis.

Por que os torcedores estão descontentes com a seleção?

Alexandre Vidal/Flamengo

Calendário

Apesar de o calendário da temporada 2020 ter sido esticado por causa da paralisação na pandemia, não houve redução de datas para 2021. Isso fará com que compromissos da seleção brasileira tirem jogadores dos clubes em torneios como Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro. Quem for chamado para a Copa América, organizada pela Conmebol, por exemplo, pode perder até 42 dias de jogos de clubes, dez rodadas na Série A. Não há torcedor de clube que fique contente com a possibilidade, e Tite sempre desvia do assunto quando é questionado.

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Lucas Figueiredo/CBF

Polêmicas

Quando se fala em seleção o assunto também é CBF, então é quase natural que os problemas respinguem. Uma grande crise nos bastidores estourou nos últimos dias: há uma insatisfação generalizada entre funcionários e dirigentes com as atitudes do presidente da entidade, Rogério Caboclo. Esse movimento gerou uma conspiração dentro da confederação que ameaça a permanência do dirigente no cargo. Além disso, vazaram provas de influência de Marco Polo Del Nero, que está banido do futebol, nas decisões internas. Os abalos da CBF afetam a credibilidade da seleção.

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Bruna Prado/UO

Convocação

Lista de convocados da seleção jamais será unanimidade. Na mais recente, as críticas foram causadas principalmente pelo nome de Everton Ribeiro, que não vive boa fase no Flamengo, e pela ausência de Gérson, que servirá somente à seleção olímpica. Também foram notadas as ausências de Marinho (Santos) e Arana (Atlético-MG). Por outro lado, as presenças de Fred (United) e Daniel Alves (São Paulo) sofreram objeção.

Pool/Getty Images

Transmissão

Tem sido um desafio para o torcedor assistir aos jogos da seleção nos últimos meses. Dos últimos quatro, dois foram transmitidos normalmente por Globo e SporTV, enquanto os outros dois estiveram em espaços alternativos. Peru x Brasil esteve na TV Brasil e no streaming do EI Plus, enquanto Uruguai x Brasil ficou fora da TV aberta, só no EI Plus e num pay-per-view do Bandsports. A seleção, num contexto de estádios vazios, está longe do torcedor.

A passagem dos 59 para os 60

A relação de Tite com o tempo mudou quando ele trocou a rotina de clube pela da seleção, em 2016. E uma nova adaptação veio com a pandemia.

Entre março e julho de 2020, nada de bater ponto na CBF. Ou seja, o aniversário de 59 anos foi mais recluso que o de costume. As reuniões passaram a ser virtuais, o que demandou do treinador novos aprendizados. Matheus Bachi diz que a família teve um "trabalhinho" para ensinar Tite a usar algumas ferramentas, mas que ele aprendeu e hoje se vira bem.

Assim, as reuniões serviram até para a comissão revisitar decisões tomadas. Cléber Xavier, por exemplo, já sabe:

"Tite é um cara que você precisa convencer com argumentos. Mas quanto mais maduro ele fica, mais adota uma gestão humanizada. Quando faz uma cobrança, é olho no olho, sem agressividade, sem pisar na pessoa. Quando vai elogiar, não fica babando."

A construção dos conceitos atuais do treinador é fruto de fontes diversas. O principal é o italiano Carlo Ancelotti, mas Tite "navega" também pelos conhecimentos e exemplos de Pep Guardiola, Diego Simeone, Carlos Bianchi e Johan Cruyff.

Desde que a covid-19 chegou, a seleção só fez quatro jogos. Pelo menos ganhou todos e saiu da instabilidade. Em março, as listas para a rodada das Eliminatórias estavam engatilhadas. Mas os jogos foram adiados diante da dificuldade que os jogadores de clubes europeus teriam para retornar aos países de origem. Os dados colhidos foram para um arquivo.

Fernando Bizerra - Pool/Getty Images Fernando Bizerra - Pool/Getty Images

Sem jogos contra europeus de presente

Neste e no próximo aniversário, porém, vai faltar um presente importante, simbólico: Tite passará mais alguns anos sem enfrentar seleções da Europa fora de um Mundial.

Desde a Copa do Mundo 2018, da qual foi eliminado pela Bélgica, o Brasil só enfrentou uma seleção do Velho Continente: a República Tcheca, em março de 2019.

Por que? Do outro lado do oceano, há um calendário feito para que as seleções da Uefa se enfrentem constantemente. Liga das Nações, fase classificatória para a Eurocopa, além da fase das Eliminatórias para a Copa do Mundo. O atraso que a pandemia causou no cronograma de jogos das seleções sul-americanas piorou o cenário e tira as brechas para amistosos futuros.

A alternativa para amenizar o distanciamento em campo é acumular o máximo de observação e relatórios que a comissão técnica conseguir. Não só pelos jogadores brasileiros selecionáveis, mas também para estar por dentro do que se faz nos principais clubes e seleções de lá.

Pensando nisso, a CBF chegou a entrar em contato com Xavi para ser um dos auxiliares de Tite e comandar uma rede de observação na Europa. Não deu certo. O técnico nem chegou a conversar diretamente com o ex-jogador espanhol.

A ausência de jogos das Eliminatórias em março foi uma oportunidade, por exemplo, para que a comissão tivesse espaço na agenda para ver e rever potenciais adversários no Qatar. O desafio é sair da teoria e usar os conceitos no gramado.

Raúl Martínez-Pool/Getty Images

Seleção remodelada

A frequente necessidade de mudanças na seleção também é uma pulga recorrente atrás da orelha do técnico. O último momento de vínculo forte entre o time e a torcida aconteceu no título da Copa América de 2019, com quase 60 mil pagantes no Maracanã: a maior renda da história do futebol brasileiro. O problema é que aquele time-base festejado pelo povo não teve vida longa.

De julho de 2019 para cá, Daniel Alves ficou a maior parte do tempo sem jogar como lateral-direito, Alex Sandro e Philippe Coutinho encararam contusões e fases técnicas ruins, Arthur viveu troca de clube e perda de foco com problemas extracampo, e Everton ainda não conseguiu repetir no Benfica o futebol do Grêmio. Os cinco, titulares na Copa América.

Quando achou o time, Tite precisou recriar. A solução foi lançada em 2019 mesmo, no amistoso contra a Coreia do Sul, em novembro, logo depois de uma derrota para a Argentina. Naquele dia, o Brasil começou a atacar com um jogador a mais do que o normal, no esquema tático 2-3-5. O lateral-esquerdo Renan Lodi vira um atacante aberto quando a seleção tem a posse de bola. É uma formação ousada, chamada por Tite de "posicional e funcional", que foi vista em todos os jogos das Eliminatórias. Foram quatro vitórias.

A repetição dessa formação será a aposta para o futuro, o que justifica até algumas convocações vistas com desconfiança pelos torcedores.

Lucas Figueiredo/CBF

O que vem por aí?

Os próximos dois meses prometem ser intensos para Tite. Os 60 anos do treinador chegam às vésperas dos jogos contra Equador e Paraguai, pelas Eliminatórias da Copa do Qatar. As conversas da comissão técnica estão concentradas nesses dois adversários.

Quando os jogadores chegarem à Granja Comary, a partir desta quinta-feira (27), o trabalho será didático com quem é novato na seleção ou perdeu a data Fifa passada. Os vídeos são aliados para acelerar a compreensão das ideias.

Em seguida, mais uma Copa América. Se for à final, o Brasil disputará nove jogos em 36 dias. Os relatórios dos adversários do Grupo B (Colômbia, Equador, Peru e Venezuela) já estão prontos. A CBF não recorreu ao auxílio de analistas de desempenho de outros clubes, ao contrário do que fez na Copa do Mundo, por exemplo.

A questão é que ainda há um gargalo logístico para ser resolvido. O Brasil está no grupo cujos jogos seriam disputados na Colômbia, mas o país deixou de ser uma das sedes da Copa América por questões políticas, e a Conmebol ainda não decidiu se mandará essas partidas para a Argentina ou outro país vizinho.

Mesmo com tantos desafios, ainda que com atraso, comemorar 60 anos com mais um troféu nas mãos será uma ótima pedida para Tite.

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