Efeito borboleta

Como Bia Haddad Maia superou doping e lesões para causar um furacão no tênis

Arthur Sandes, Beatriz Cesarini e Rubens Lisboa Do UOL, em São Paulo Tim Goode - PA Images/PA Images via Getty Images

Se o simples bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar um furacão no Japão, os feitos da brasileira Beatriz Haddad Maia devem ter causado uma tempestade em alguma parte do mundo.

Nas últimas semanas, Bia conquistou no tênis o que nenhum brasileiro alcançou, no masculino ou feminino, desde Gustavo Kuerten. A atleta de 26 anos venceu dois torneios WTA 250 seguidos em duas semanas - Nottingham e Birmingham -, entrou no top 30 do ranking mundial de simples e igualou Maria Esther Bueno na Era WTA (desde 1973, quando foi criada a associação de tênis feminino e o circuito profissional da modalidade).

O nome de Bia nunca foi procurado tantas vezes no Google. E apesar do furacão que vimos nas últimas semanas, apenas a própria atleta sabe o que precisou fazer para seguir batendo as asas e chegar a este momento.

Quando iniciou sua carreira no tênis e começou a alcançar bons resultados, Bia carregou o peso de ser esperança do Brasil em um esporte que não tinha referências recentes no feminino. No meio do caminho, sofreu com problemas que foram desde lesões até um resultado positivo no doping em 2019. O apoio do público foi sumindo e a expectativa em torno dela diminuindo, mas ela seguiu com foco e determinação.

Na semana que vem, Beatriz Haddad Maia retoma sua trajetória em Wimbledon como cabeça de chave após conquistar dois títulos consecutivos na grama. A seguir, o UOL Esporte detalha a caminhada da tenista até os dias de hoje e explica por que ela pode surpreender no campeonato mais tradicional da modalidade.

Tim Goode - PA Images/PA Images via Getty Images
Tim Goode/PA Images via Getty Images

Três títulos em oito dias

Em 12 de junho, Bia conquistou seu primeiro título de WTA 250 na carreira — torneio no primeiro degrau da elite do tênis — ao derrotar a norte-americana Alison Riske, em Nottingham, na Inglaterra. No mesmo dia, a atleta também foi campeã de duplas femininas ao lado da chinesa Shuai Zhang. Os bons resultados a colocaram no top 40 do ranking mundial.

Não parou por aí. No domingo seguinte, Bia chegou à final do WTA de Birmingham, conquistou a 10ª vitória seguida na grama e levantou o terceiro caneco em oito dias depois de a adversária, a mesma chinesa Shuai Zhang, desistir da decisão por lesão.

A sequência fez Bia Haddad subir ao 29º lugar do ranking, a posição mais alta de uma tenista brasileira em 46 anos. O país não aparecia tão alto na lista desde Maria Esther Bueno, que venceu 19 Grand Slams entre simples, duplas e duplas mistas, chegou a ser considerada a melhor do mundo nos anos 1960 e 1970 e chegou a ocupar a mesma 29ª posição nos primeiros anos da Era WTA.

Nesta semana, Bia faturou a 12ª vitória seguida na grama ao bater a britânica Jodie Burrage, na sequência da estreia contra a estoniana Kaia Kanepi (que a tinha vencido em Roland Garros) no WTA 500 de Eastbourne, também na Inglaterra. Nenhuma tenista registrou tal façanha no piso desde os 20 triunfos de Serena Williams em quatro edições seguidas de Wimbledon (2015 a 2018).

É justamente em Wimbledon, aliás, que Bia Haddad tentará alcançar a primeira grande campanha no torneio simples de um Grand Slam, a partir desta segunda-feira (27). Ela é a cabeça de chave 23 e por isso evita um confronto contra uma top 10 pelo menos até as oitavas de final.

Trabalhamos muito todos os dias. Eu tenho as pessoas certas ao meu lado. Ninguém sabe o quanto trabalhamos nos últimos dois anos. Tive muita força e determinação, passei por muitas coisas difíceis e estou muito feliz por estar aqui. Tudo o que passei na minha vida me deu essa força. Acho que sem essa força não teria tanto foco e determinação. Estou muito feliz

Bia Haddad, logo após conquistar o WTA de Birmingham

Michael Dodge/Getty Images
Beatriz Haddad Maia em ação no Australian Open Junior Championships de 2013

Grandes poderes, grandes responsabilidades

Ser atleta é uma herança que Bia recebeu da família. A mãe Laís dá aulas de tênis e os avós maternos Arlete e Ramez também praticavam o esporte. O avô paterno Ayrton Maia defendeu as cores da seleção brasileira de basquete.

A infância de Bia foi no clube Sírio, na zona sul de São Paulo. Lá, ela praticou diversos esportes: judô, futebol, ginástica artística e tênis. A escolha pela modalidade que viraria sua profissão aconteceu aos 13 anos: "Eu me destacava, era muito grande. Criança gosta de ganhar, e eu ganhava no tênis. Foi fácil a escolha", contou a atleta em entrevista ao UOL em fevereiro deste ano.

Aos 15, em 2011, Bia se qualificou para o juvenil de Roland Garros, e a vida adulta chegou de repente. Ela se tornou rapidamente a grande esperança do Brasil na atual geração, carregando uma responsabilidade e tanto nas costas. Não foi fácil.

Bia viu como era ser querida e desacreditada em um piscar de olhos. Quando começava a ir bem em uma competição, já tinha sobre si a expectativa de uma tenista de ponta. ,Quando começou a sofrer com lesões, passou a ser alvo de desconfiança.

Stephen Pond/Getty Images for LTA Stephen Pond/Getty Images for LTA

Suspensão por doping é maior drama na carreira

Como se não bastassem as cinco lesões que a prejudicaram entre 2013 e 2020, Bia teve que enfrentar uma longa suspensão por doping. Logo após ser eliminada na segunda rodada da chave principal de Wimbledon, em 2019, ela recebeu um e-mail que deixou sua carreira de cabeça para baixo.

Bia Haddad havia sido flagrada no exame antidoping por uso de anabolizante. A Federação Internacional do Tênis (ITF) encontrou quatro substâncias dopantes na amostra de urina coletada durante o WTA da Croácia, semanas antes daquela edição de Wimbledon, sendo duas delas agentes anabolizantes. A tenista conta ter se desesperado e que até hoje não conseguiu ler aquele e-mail até o final.

Ela foi suspensa preventivamente por três meses, mas levou mais quatro para conseguir provar sua inocência. A ITF concluiu que as substâncias proibidas entraram no organismo da tenista brasileira a partir de um suplemento contaminado, portanto ela não tinha culpa na história. Ao todo, somando doping e pandemia, foram 11 meses sem jogar até o retorno em junho de 2020. De lá para cá, dois anos de volta por cima, incluindo uma final de Australian Open nas duplas e agora títulos seguidos na Inglaterra.

Recebi muitas críticas; as pessoas não estavam mais ao meu lado. Sou uma mulher muito forte, e tive apoio da minha família e da minha equipe. Durante esses períodos, eu entendi que só poderia contar com essas pessoas; porque o público só aparece mesmo quando a gente está no topo.

Bia Haddad

Quando venço, aparece um monte de foto minha criança com pessoas que nunca mais tinha visto; apareceram amigos que nunca mais haviam falado comigo. Isso mostra o quanto as pessoas são 'resultadistas' no Brasil. Ter vivido tudo isso cedo fez com que eu aprendesse a lidar com a pressão.

Bia Haddad

Stephen Pond/Getty Images for LTA Stephen Pond/Getty Images for LTA

Os dramas

  • 2013

    Bia ganhou sua primeira partida de WTA aos 17 anos, em fevereiro de 2013. Meses depois, lesionou o ombro ao cair em quadra e também precisou passar por cirurgia devido a uma hérnia de disco. Ficou quatro meses afastada das quadras.

  • 2015

    Quando estava voltando a ter bons resultados, incluindo um título de WTA nas duplas, em Bogotá, ela teve uma lesão no ombro que a impediu de disputar medalha no Pan de Toronto. Nova cirurgia e mais seis meses fora de ação.

  • 2017

    Às vésperas de viajar para iniciar a temporada na Austrália, Bia sofreu um acidente doméstico e fraturou três vértebras, o que a forçou a ficar um mês inativa.

  • 2019

    De volta ao top 100 e com vitórias sobre Sloane Stephens e Garbiñe Muguruza, Bia foi flagrada em exame antidoping com duas substâncias anabolizantes e acabou suspensa por 10 meses após comprovar contaminação cruzada.

  • 2020

    Já no fim da temporada, precisou passar por uma cirurgia para a retirada de um tumor na mão esquerda. Com a perda dos pontos devido ao tempo de suspensão, não conseguiu se classificar para as Olimpíadas de Tóquio, em 2021.

Reprodução/Instagram
Bia Haddad ao lado do técnico Rafael Paciaroni

Os treinadores e a virada

O afastamento das quadras devido à suspensão foi seguido por renovações na equipe da tenista, que deixou de ser agenciada pela IMG e entrou para a LinkinFirm, com outra mudança importante poucos meses após o retorno aos torneios: o fim da parceria de quatro anos com o treinador argentino German Gaich.

A atleta passou então a integrar a Rede Tênis Brasil em junho do ano passado e desde então viaja acompanhada do técnico Rafael Paciaroni, que trabalhou em academias no Reino Unido e na Espanha, lançou um livro sobre trabalho com tênis profissional em 2016, mas até passar a integrar a equipe da atual top 30 estava atuando com tenistas de categorias de base e transição, com um perfil mais discreto.

"Não posso deixar de falar do Rafa, que vem trabalhando minha parte mental. Nós nos entregamos 200% em tudo que fazemos e ele é um cara que me tira da minha zona de conforto dentro e fora de quadra o tempo todo. Isso me faz uma pessoa muito forte e competitiva", disse Bia após vencer em Birmingham.

A discrição casou bem com o perfil da tenista, que costuma sempre citar a ausência em redes sociais, ao mesmo tempo em que ressalta a forma como tem confiança trabalhando com Paciaroni.

Tive muitos motivos para duvidar, pensar em desistir. Tive lesões, fui pega no antidoping e descobri um tumor no dedo. Recomeçar, no tênis, é muito difícil. Perdi ritmo, fiquei fora do ranking. Recuperar esse espaço foi uma conquista

Bia Haddad, em entrevista recente ao UOL, após vice nas duplas no Australian Open

Stephen Pond/Getty Images for LTA Stephen Pond/Getty Images for LTA

Por que ela pode surpreender em Wimbledon?

A edição deste ano de Wimbledon tem peculiaridades, como a ausência de russas e bielorrussas, vetadas pela organização devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, além de desistências devido a lesões ou mesmo a ausência de pontos no ranking da WTA. Neste cenário e em um circuito equilibrado como é hoje o feminino, fica difícil apontar uma favorita ou mesmo descartar uma não cotada entre as favoritas.

A chave principal de Wimbledon tem este ano a quebra de uma marca de 34 anos ao contar com duas brasileiras na chave principal. Além de Bia, a medalhista olímpica Laura Pigossi está garantida no torneio que em 134 anos de disputa desde a primeira, há 145 anos, teve apenas 13 mulheres brasileiras (as duas inclusas), com títulos de simples apenas para Maria Esther Bueno, em 1959, 1960 e 1964.

Não é simples imaginar que a marca de 58 anos desde o título de Maria Esther Bueno possa ser derrubada por Bia, que não figura entre as favoritas, mas entra como cabeça de chave 23 e assim escapa de confrontos diante de favoritas nas primeiras rodadas, o que pode ajudá-la a fazer boa campanha. Nas casas de apostas, a brasileira chega a aparecer como a sexta mais cotada, abaixo apenas de Iga Swiatek, Coco Gauff, Ons Jabeur, Simona Halep e Serena Williams.

A seu favor, o bom desempenho na grama, com os troféus de Nottingham e Birmingham, vitórias diante de Maria Sakkari (top 5) e de campeãs de Wimbledon como Petra Kvitova e Simona Halep. E ainda uma série de 12 vitórias consecutivas neste piso, o que ninguém fazia desde Serena Williams, com 20 seguidas entre 2015 e 2018. Se falar em título ainda parece exagero, também não há como duvidar do que Bia Haddad Maia pode fazer.

Getty Images Luisa Stefani e Laura Pigossi comemoram medalha de bronze em Tóquio-2020

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Girl Power no tênis brasileiro

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  • Top 10 do ranking

    Mesmo lesionada, Stefani entrou no top 10 das duplas da WTA em novembro. Antes dela, o Brasil só tinha tido seis tenistas neste nível: Maria Esther Bueno, quando o ranking era feito por revistas e não-oficial, Carlos Kirmayr, Cássio Motta, Guga, Bruno Soares e Marcelo Melo.

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  • Títulos seguidos

    O mês mágico de Bia Haddad Maia coroa a volta por cima que ela deu depois das lesões e do arrastado caso de doping. É o melhor momento de sua carreira, e a melhor sequência de um(a) tenista brasileiro(a) em simples desde Guga.

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