Sem trégua

Aumento de casos de covid deixa futebol alerta para chance de novas restrições nos estádios. Em SP, já tem

Eder Traskini e Igor Siqueira Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro Ettore Chiereguini/AGIF

A temporada 2021 do futebol brasileiro terminou com os portões abertos depois de um longo período com os estádios fechados. Agora, com os jogadores já de volta aos centros de treinamento de seus clubes e os campeonatos a algumas semanas do início, o país testemunha uma explosão de casos que remete ao início da pandemia do coronavírus, tornando novamente incerta a presença de público nas arquibancadas.

Embora com gravidade menor, diante da ampla vacinação da população, a variante ômicron chegou ao país transformando os 3.196 casos registrados no dia 23 de dezembro de 2021 em 88.464 em 12 de janeiro deste ano. O número empurrou a média móvel de casos para 52.714, número que não era registrado desde junho do ano passado. Os óbitos também subiram: saíram de 95 em 23 de dezembro para 138 no dia 12 de janeiro, com a média móvel passando de 100 para 123. Aqui, é importante levar em conta, de todo modo, o apagão nos sistemas do Ministério da Saúde, que provavelmente mascara todos estes números.

Foi nesse cenário que o governo do estado de São Paulo restringiu a capacidade dos estádios para 70% do total. O Paulistão já começará no dia 23 de janeiro com esse cenário. Na Bahia, a decisão foi mais radical: limite de 3 mil pessoas por partida.

As restrições de público se espalham em velocidade muito menor do que a variante do vírus. De todo modo, dirigentes dos demais estados e da CBF estão de olho no que pode acontecer. Enquanto isso, discute-se internamente o protocolo. Sem cogitar dar um passo rumo à redução de público, a comissão médica da confederação brasileira articula para validar a exigência de vacinação completa aos jogadores.

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Ettore Chiereguini/AGIF
Cesar Greco/Palmeiras
Luan, zagueiro do Palmeiras, faz teste de covid na reapresentação; o resultado dele foi negativo

Explosão de casos na pré-temporada

O futebol acompanhou o cenário vivido no país inteiro e registrou uma explosão de casos logo na reapresentação das equipes visando a pré-temporada de 2022. Na Série A, são mais de 60. Só nos cinco clubes paulistas que disputam a Série A foram 40 positivos para covid-19 entre os jogadores.

O recordista é o Palmeiras, com 13 casos, sendo o mais recente do lateral-direito Marcos Rocha. O São Paulo teve 11, enquanto Santos, sete, e Red Bull tiveram seis positivos, cada. O Corinthians registrou três.

Se sairmos do campo de jogo, porém, os números aumentam muito. Os dados não são completos, mas o Santos, por exemplo, teve mais de 40 funcionários que testaram positivo para covid-19 na reapresentação. Até na CBF o surto bateu, com 25 casos em uma tacada inicial após o recesso de fim de ano.

Entre os jogadores, quatro casos foram identificados no Fluminense, dois no Botafogo, um no Internacional e um no Flamengo. Considerando o Fortaleza, que está na Libertadores também, foram mais oito.

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Os casos em alguns clubes

  • Palmeiras (13)

    Weverton, Gabriel Menino, Patrick de Paula, Gustavo Scarpa, Breno Lopes, Rafael Navarro, Deyverson, Jorge, Rony, Marcos Rocha, Endrick e Matheus Fernandes.

  • São Paulo (11)

    Calleri, Danilo Gomes, Gabriel, Miranda, Pablo, Patrick, Rafael Silva, Reinaldo, Rodrigo Nestor, Thiago Couto e Tiago Volpi.

  • Santos (7)

    Ângelo, Carlos Sánchez, Léo Baptistão, Luiz Felipe, Marinho, Sandry e Vinícius Zanocelo.

  • Corinthians (3)

    Renato Augusto, Jô e Willian.

  • Fluminense (4)

    Cano, Felipe Melo, Luiz Henrique e Samuel Xavier

  • Fortaleza (8)

    Depietri, Igor Torres, Landázuri, Matheus Jussa, Max Wallef, Ronald, Titi e Wagner Leonardo.

Ettore Chiereguini/AGIF

Especialistas fazem alerta: 'O risco não é desprezível'

Talvez a primeira preocupação dos cartolas seja com o fechamento dos portões ao público e o impacto financeiro que isso pode causar nos orçamentos para a temporada 2022, depois das dificuldades enfrentadas nos últimos dois anos. Mas isso deveria acontecer, à luz da área médica? O UOL Esporte ouviu especialistas para entender o cenário.

"Temos riscos, sim [de fechamento dos portões]. Ninguém vigia máscaras dentro do estádio, temos o risco da transmissão do ômicron em ambiente aberto com as pessoas sem máscara e no deslocamento até o estádio. E esse risco não é desprezível. Mesmo quando os estádios estavam abaixo da lotação máxima, todos os torcedores ficavam próximos uns aos outros em um espaço determinado. Deveriam ter a preocupação de manter os torcedores distribuídos nas arquibancadas", afirmou Raquel Stucchi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

A decisão do governo de São Paulo de limitar a capacidade dos estádios a 70% do total não foi totalmente aprovada pelos especialistas ouvidos pela reportagem —eles consideram a medida insuficiente.

"Não podemos afirmar que seja um número ideal. No momento, o ideal é evitar ao máximo a aglomeração de pessoas, a fim de diminuir os riscos de contágio. Por mais que a nova variante seja vista como mais 'leve', ainda existe o alto risco de hospitalização e óbitos, principalmente entre os indivíduos não vacinados", alertou Nathália Beatriz de Sá, doutora em ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ-RJ) e pesquisadora na mesma instituição.

Nesta semana, o neurocientista Miguel Nicolelis diz que o Brasil pode chegar a março com mais de 2 milhões de casos diários de covid. Ele atribui a previsão a um instituto dos Estados Unidos.

Neste momento atual e no prazo de seis semanas, que é o que esperamos para continuar com esses números altos [de casos registrados], o percentual deveria ser menor, talvez 50% da capacidade."

Raquel Stucchi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI)

Todo médico que está atuando na linha de frente tem dito que o sistema de saúde vai colapsar em questão de dias. E se o sistema de saúde começar a dar sinais de colapso temos que parar os jogos de novo."

Miguel Nicolelis, eurocientista, professor e médico, ao Blog do Perrone

Editoria de arte

Uma ameaça aos orçamentos

Depois do inesperado impacto da pandemia em 2020 e da recuperação parcial de 2021 em relação à bilheteria, os clubes viraram o ano com planejamento de receitas feito para um cenário no qual a torcida poderia ocupar 100% dos estádios. Está lá nos orçamentos já feitos e publicados a esperança de uma trégua definitiva do vírus. Mas essa redução que se inicia por São Paulo e Bahia já pode colocar em risco o que está nas planilhas.

No caso do Flamengo, as receitas previstas com bilheteria e sócio-torcedor, somadas, atingem R$ 151,1 milhões e são responsáveis por cerca de 15% da meta orçamentária do ano, que é de R$ 1,03 bilhão. O clube não vai quebrar se ficar sem elas, mas perde um componente importante no fluxo de caixa, já que é um dinheiro que entraria nos cofres com recorrência e previsibilidade.

Os clubes que adotam planejamento mais realista não consideram que os estádios estarão 100% ocupados em todas as partidas. Logo, fazer uma conta de redução de 30% na meta orçamentária pode não ser uma projeção adequada. De todo modo, há o alerta para que o cenário externo não chegue a um colapso que comprometa as contas.

"Bilheteria está entre as principais fontes de receita dos clubes, que praticamente zeraram essa linha nos últimos dois anos. O impacto no sócio-torcedor pode ser grande, mas vai depender do clube. Hoje, o que faz o torcedor se manter ativo ainda é o acesso aos estádios. Se ele perceber que a oferta está muito inferior à demanda, fazendo com que ele não consiga adquirir ingresso, isso pode gerar o cancelamento do seu plano", alerta Bernardo Pontes, que foi gerente de marketing de clubes como Flamengo, Cruzeiro e Vasco.

O Corinthians tem uma peculiaridade. Comprometer as receitas de bilheteria tem um efeito dominó na dívida com a Caixa referente à Arena Corinthians. Há uma parcela prevista para novembro, a qual o clube pretende honrar. A meta de arrecadação com bilheteria é de R$ 70 milhões.

"Prioritariamente, a receita de bilheteria é para pagar o endividamento com a Caixa. Primeiro os custos do jogo. E o que sobra, com a Caixa", explicou o diretor financeiro, Wesley Melo.

Vitor Silva/Botafogo
Torcida do Botafogo toma conta do salão nobre de General Severiano após reunião do Conselho Deliberativo que aprovou a SAF

No Rio, Prefeitura mantém regra atual. Em BH, conversas

Além de São Paulo e da Bahia, o movimento ainda é incipiente nos demais centros de futebol do país em relação ao retorno de restrições de público nos estádios.

No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Saúde informou que "está acompanhando o cenário epidemiológico diante da nova variante ômicron, assim como a evolução da vacinação da população com a dose de reforço", mas disse em nota que "no momento, não há alteração nos protocolos sanitários para jogos de futebol".

A Prefeitura já cancelou o Carnaval de rua e ainda mantém a programação das escolas de samba na Marquês de Sapucaí. Mas o Comitê Científico tem uma reunião prevista para o dia 24, véspera do início do Carioca.

De todo modo, o que acontecer no primeiro momento não envolverá o Maracanã, cujo gramado está em reforma. Isso já derruba a expectativa de público para os duelos do estadual. Mas a questão de aglomeração pode ir além dos jogos. Na sede do Botafogo, ontem (13), a torcida tomou conta e fez uma grande festa após a aprovação da SAF pelo conselho deliberativo.

Em Belo Horizonte, a Federação Mineira tem conversado com a Secretaria Estadual de Saúde e considera ser provável que alguma medida restritiva seja adotada. No entanto, não surgiu algo concreto. O diálogo prossegue. Há uma reunião pré-agendada entre dirigentes e autoridades, mas a data ainda não foi confirmada. Vale lembrar que o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, foi presidente do Atlético-MG.

No Rio Grande do Sul, o planejamento envolvendo o Gauchão segue. Francisco Novelletto, um dos vices da CBF e ex-presidente da Federação Gaúcha, disse que será um "absurdo" se houver qualquer restrição no momento.

Ettore Chiereguini/AGIF

Nos clubes, paralelo com Carnaval e argumento da vacina

É no paralelo com o Carnaval que os dirigentes cariocas se agarram neste primeiro momento. Em dezembro, o prefeito Eduardo Paes chegou a citar que o "belo exemplo da direção do Flamengo" —na retomada do público nos estádios— serviria de parâmetro para o protocolo no Sambódromo.

"Qualquer coisa que a gente faça será cumprindo o que a área de saúde e os governos falarem. As regras devem ser as mesmas do Carnaval. Jogamos dia 23 e o desfile é 26 (de fevereiro), o jogo seguinte é logo depois. A regra usada lá será a mesma de São Januário", comentou o presidente do Fluminense, Mário Bittencourt, em coletiva.

Em Minas, há um clima de euforia pelos títulos conquistados pelo Atlético-MG, contrastando com o estado de crise do Cruzeiro, que, apesar da chegada de Ronaldo Fenômeno à SAF, ainda não tem um time que empolgue.

"Por experiência nesses anos todos, o campeonato não tem atrativo maior para jogos, fica com público pequeno. Acho que isso aí não vai afetar. Pode seguir aí com 40% do público", avalia Alencar da Silveira, comentando a hipótese não confirmada de redução nas próximas semanas.

Por outro lado, na visão do presidente do Atlético-GO, Adson Batista, não há necessidade de reduzir o percentual de torcedores permitido nos estádios, já que o público envolvido é vacinado ou testado antes de entrar.

"Como nosso país tem alta taxa de vacinação, não vejo problema algum. Vi muita gente contaminada, mas as pessoas têm sintomas muito leves. E é rápido. O duro desse povo é que eles ficam fazendo política em cima de coisa séria. E querem que o futebol seja a solução de tudo. É um negócio sério, que emprega muita gente. Acredito que o torcedor que tiver certificado de vacina não tem problema. Mas faz testagem, espaço aberto, não vejo problema", comentou o dirigente, que já chegou a puxar uma máscara de um repórter durante entrevista após um jogo antes de dizer: "somos Bolsonaro".

Temos que nos cuidar bem, tomar a terceira dose e todos os cuidados. São muitos contaminados, cada vez mais perto. A situação não é boa e temos como obrigação acatar para passar isso logo."

Duilio Monteiro Alves, Presidente do Corinthians

Durante toda pandemia cumprimos integralmente a determinação dos órgãos competentes. Nós fomos criticados na volta do público, mas cumprimos integralmente os decretos da prefeitura, que eram bons."

Mário Bittencourt, Presidente do Fluminense

Jhony Pinho/AGIF

Para CBF, tema mexe com jogo da seleção e competições

O decreto de Salvador limita a presença de público em até 3 mil pessoas, entrou em vigor no dia 10 e tem duração de 15 dias. De todo modo, a CBF está de olho porque marcou para a capital baiana, em 24 de março, o jogo contra o Chile, o último em casa pelas Eliminatórias —sem contar a partida não concluída diante da Argentina.

A Fonte Nova foi escolhida muito por ser o "lar" do presidente em exercício da entidade, Ednaldo Rodrigues. O discurso é respeitar a decisão do governo, caso haja a prorrogação das restrições.

Mas não é do interesse da entidade deixar de arrecadar ainda mais com bilheteria. Até porque há uma defasagem. O primeiro jogo no Brasil com 100% de público liberado foi só em novembro, contra a Colômbia, na Arena Corinthians, em São Paulo. O resultado não foi empolgante: 22.080 presentes e renda de R$ 7.111.200.

Enquanto a Copa do Nordeste começa já no dia 22, a Copa do Brasil tem início previsto para 23 de fevereiro. A CBF não cogita tomar iniciativa de fazer qualquer restrição. De todo modo, os médicos ligados à entidade têm se reunido para debater os protocolos para a temporada e qual o provável cenário nos próximos meses.

Na visão do presidente da comissão médica, Jorge Pagura, o momento é de observar um pouco mais, até pelo entendimento de que, quando a transmissão é muito rápida e atinge uma população com índice alto de vacinação, a tendência é de achatamento mais rápido da curva:

Dória tirou 30%? A gente tem que obedecer as leis dos estados e dos municípios. Podemos até jogar o sarrafo mais para cima, mas nunca para baixo. Precisa esperar para ver o que acontecer. A vantagem é que a gente espera que o pico caia em dez semanas, que é a época que começam os maiores campeonatos. Vamos jogar com esse tempo, porque a gente acha que vai cair a taxa".

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