No olho do furacão

Copa América "express" vira ringue político no Brasil e pressiona seleção por resultado e posicionamento

Gabriel Carneiro e Igor Siqueira Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro Bruna Prado/Getty Images

A Copa América estava marcada para junho do ano passado, mas foi adiada pela pandemia. Devia ter dois convidados, Austrália e Qatar, mas ambos desistiram. Adiada para 2021, ia acontecer pela primeira vez em dois países, Argentina e Colômbia, mas os dois abriram mão por causa do enfrentamento da covid-19. Foi assim, meio no improviso, a menos de duas semanas para a estreia, que caiu no colo do Brasil.

Depois de pedido da Conmebol, houve um alinhamento pessoal do então presidente da CBF, Rogério Caboclo, com o governo federal. As sedes foram decididas em um dia [Brasília, Cuiabá, Goiânia e Rio de Janeiro] e a polêmica foi instalada: por que aceitar subitamente um torneio internacional de futebol durante fase aguda da pandemia? O resultado é que esperou-se mais por uma posição do STF do que pelo anúncio dos convocados por Tite.

Mas para além do ringue político que virou a Copa América quando apoiadores do presidente Jair Bolsonaro viram a chance de uma agenda positiva para o governo, existe um time de futebol que venceu este mesmo torneio há menos de dois anos, mas sabe que será cobrado por resultado esportivo outra vez.

Ao mesmo tempo em que enfrenta uma grave crise nos bastidores que invade o noticiário policial, derrete o interesse do torcedor pela seleção e sustenta a pergunta que o UOL Esporte tenta responder: que valor tem essa Copa América?

Bruna Prado/Getty Images

Mauro Cezar: "O torcedor se preocupa com time, não seleção"

Efeito dominó

Quando Rogério Caboclo viu no seu telefone que Jair Bolsonaro estava acordado e iniciou, às 6h de 31 de maio, o trâmite junto ao presidente para refugiar a Copa América no Brasil, o então presidente da CBF gerou um efeito dominó que ainda não está completamente concluído.

O torneio balançou e não saiu ileso. O enredo se desenrolou em vários núcleos, tendo a política como fio condutor. Bolsonaro chegou a fazer uma ilação sem provas: a oposição só aconteceu porque a transmissão em TV aberta seria do SBT e não da Globo? Fato é que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, é genro de Silvio Santos.

Partidos de oposição ao governo Bolsonaro — PSB e PT — levaram a discussão à Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou em cena, mas nenhum dos ministros da corte entendeu que a Copa América deveria ser suspensa. O princípio? A autonomia de estados e municípios que toparam receber os jogos da competição. Esse, inclusive, foi um exercício trabalhoso para a CBF, que ouviu "nãos" dos estados do Nordeste e teve trabalho até fechar com Brasília, Cuiabá, Goiânia e Rio.

A repercussão majoritariamente negativa impactou em questões comerciais. Ao menos três patrocinadores (Mastercard, Ambev e Diageo) já avisaram que não irão realizar ações de marketing durante a Copa América, apesar de manterem em vigor os contratos com a Conmebol. Nos bastidores, o temor é de um iminente crescimento nesse movimento das marcas. A organização do torneio, já sem Caboclo, agora tenta se desvencilhar da polarização política.

Frank Ossenbrink/ullstein bild via Getty Images Frank Ossenbrink/ullstein bild via Getty Images

Seleção no liquidificador

Não é de hoje que a camisa da seleção virou vestimenta recorrente em protestos ligados à extrema direita no Brasil, mas talvez os jogadores nunca tenham se sentido tão dentro da discussão política no país quanto nas últimas duas semanas.

Na cabeça deles, o movimento interno de descontentamento se limitaria à organização da Copa América por parte da Conmebol e à postura do então presidente da CBF, Rogério Caboclo. A realidade é que o grupo foi jogado no liquidificador. Pelos dois lados da discussão política. Nas redes sociais, o termômetro. Entre os apoiadores de Bolsonaro, críticas. Entre os opositores, um fio de esperança para que os jogadores saíssem do muro e adotassem uma postura mais engajada, sobretudo pelo contexto da pandemia.

O grupo é plural. Richarlison é publicamente defensor da vacina. Marquinhos, autor da frase: "Se alguém quiser se posicionar politicamente, que o faça em casa, não com a camisa da seleção". Independentemente de lados, a delegação se viu desconfortável por virar protagonista da polarização.

Os dias na concentração se alternaram entre um pacto de foco nas eliminatórias e debate sobre como se posicionar depois dos jogos contra Equador e Paraguai. Além dos fatores externos, a situação que incomodava mesmo a seleção era Caboclo. Tanto que os ânimos se acalmaram na delegação depois do afastamento temporário dele após acusação de assédio sexual e moral a uma funcionária da CBF.

Colunistas do UOL respondem

Essa crise política desvaloriza a Copa América?

Pool/Getty Images

Marcel Rizzo

"Ela já começa desvalorizada: patrocinadores desistiram de ativar ações com medo da repercussão negativa de se associar a um torneio num país com mais 480 mil mortos por covid-19. O que mais se falou nas últimas semanas foi por que a Copa América não deveria ser realizada. Pouco se discutiu sobre os times, favoritos, quem pode ser artilheiro ou possível confronto Messi x Neymar."

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Matias Delacroix/AFP

Perrone

"A partir do momento em que patrocinadores do torneio resolvem afastar suas marcas da competição é porque já há uma desvalorização. Se bem que a Conmebol se esforça sozinha para desvalorizar a Copa América com uma overdose de edições. É a quarta em seis anos. Apesar de tudo, se os jogos forem bons tecnicamente, o torcedor deverá se empolgar em algum momento."

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Getty Images

Danilo Lavieri

"A Copa América não teve muito apelo na última vez que passou pelo Brasil e deve ser assim de novo. Com Brasileirão rolando, o torcedor certamente vai preferir acompanhar seu time ou até mesmo reservar hora para ver jogos melhores na Eurocopa. No mata-mata, há chance de voltar a chamar a atenção, mas até lá haverá mais debate sobre a pandemia do que de bola."

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Kaz Photography/Getty Images

Favoritismo certo, mas à prova

É a sexta vez que o Brasil recebe a Copa América. Foi campeão em todos os anos: 1919, 1922, 1949, 1989 e 2019. Já nas outras 41 edições disputadas América do Sul afora só conseguiu levantar quatro taças [1997, 1999, 2004 e 2007]. Ou seja, do ponto de vista esportivo jogar a competição no próprio país é meio caminho andado para o título.

Se for levada em conta a soberania recente da seleção brasileira em relação aos adversários que terá pela frente no próximo mês o quadro fica ainda mais vantajoso. Desde que Tite assumiu como técnico, em junho de 2016, a equipe não perdeu uma única vez para seleções do continente em torneios oficiais, como Copa América e Eliminatórias. Foram 21 vitórias e quatro empates. Na preparação para o Qatar são seis vitórias em seis jogos.

A realidade da seleção brasileira é entrar em campo com a expectativa de defender o título e pronto. Mas essa conclusão gera óbvia pressão num ambiente que está longe de ser tranquilo.

Dentro de campo a tranquilidade é maior, mas o momento ainda é de ajustes de Tite na escalação e na variação de formas de jogar. Depois de consolidar o esquema tático 2-3-5 para atacar em amistoso de 2019 e nos quatro jogos do ano passado, a novidade em 2021 é uma espécie de 4-2-4 que dá mais liberdade para Neymar ser o protagonista que se espera.

Lucas Figueiredo/CBF

Neymar e Tite: protagonismo e afirmação em meio ao caos

Neymar foi desfalque da seleção em quase metade dos jogos do ciclo até a Copa do Mundo do Qatar, em 2022. São 15 atuações em 28 possíveis. A prova de que esse número é relevante é que foram oito gols e 11 assistências quando ele esteve em campo — mais de uma participação em gol por jogo. Por tudo isso, hoje o sistema de jogo do time gira em torno de seu camisa 10.

Com o 2-3-5, o lateral-esquerdo se afundava no ataque para aumentar o volume de jogo. A contrapartida é ter mais adversários na marcação e menos espaço. Na nova formação o lateral fica mais recuado, o que dá a Neymar mais campo para desequilibrar, atraindo adversários e criando chances com tabelas, dribles e todo o recurso técnico que dispõe.

Para Tite não podia ser melhor: quando seu principal jogador assume protagonismo e resolve os jogos também muda a percepção sobre o trabalho do técnico. Os últimos dias foram pesados, com campanhas online contra ele e desaforos até de autoridades, como o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) e o senador Flávio Bolsonaro (Patriota). Tite virou alvo de rinha política mesmo com perfil público moderado e distante das posições que tentaram atribuí-lo.

O fato é que ele, mesmo dono de bom aproveitamento no comando da seleção, vive uma busca por reafirmação. Ao mesmo tempo, Neymar sente falta de ser protagonista em uma campanha vitoriosa da equipe, algo que não acontece desde a Olimpíada de 2016. Dessa união de vontades nasce a força?

Christian Alvarenga/Getty Images

Por que sul-americanos querem jogar a Copa América 2021

Em meio à tomada de decisão sobre como mobilizar pessoas do futebol contra a realização da Copa América, os jogadores da seleção brasileira fizeram contato com capitães, atletas e membros das comissões técnicas de outras seleções sul-americanas. Não houve unidade nem sequer para a emissão de um comunicado conjunto.

O principal motivo foi a pressão das federações, especialmente as que têm mais jogadores no futebol local. Cada seleção recebe 4 milhões de dólares (cerca de R$ 20 milhões) só para participar da competição, além de outros contratos comerciais e da vitrine que muitos jogadores têm. Não se quis correr risco de abrir mão desse dinheiro ou possíveis punições, segundo ouviu o UOL.

Mas também há uma dimensão esportiva desta recusa à mobilização contra a Copa América: as seleções sul-americanas entendem estar em grande desvantagem em relação às europeias na preparação para a Copa de 2022. A atual campeã mundial França, por exemplo, jogou 13 partidas desde o início da pandemia, enquanto o Brasil entrou em campo só seis vezes.

É o ciclo de Copa do Mundo com pior preparação entre as seleções sul-americanas, já que os países vivem quadros mais delicados no combate à covid-19. Isso é sinal de que dentro de campo a Copa América tem importância para dar rodagem competitiva às equipes num cenário em que a Europa venceu as quatro últimas Copas do Mundo.

Lucas Figueiredo/CBF

Fé no protocolo

Agora que a Copa América está agendada para começar no domingo e nenhum movimento parece próximo de paralisar as intenções, o cuidado é para que ela não se torne uma bomba de contágio de covid-19 com as viagens interestaduais das delegações.

Conmebol e Ministério da Saúde já divulgaram protocolos médicos que preveem testes de covid a cada 48 horas para membros das seleções, que não poderão sair do hotel exceto para viagens e treinamentos em uma tentativa de bolha sanitária.

Os jogadores devem ficar em quartos individuais e o recomendado é que em andares diferentes dos hóspedes comuns. Também haverá voos fretados e ônibus específicos para cada seleção, com higienização frequente. Vale lembrar que seis das dez seleções tomaram pelo menos uma dose da vacina da Sinovac doada à Conmebol — o Brasil não fará parte desse grupo.

Os jogos não têm público e o acesso será bem restrito, inclusive para jornalistas. Violação de regras para qualquer envolvido será sujeita a multa. Durante os jogos, é proibido cuspir ou assoar o nariz, assim como beijar a bola. Também está vetada a troca de camisas, flâmulas ou qualquer outro item. Antes de a bola rolar, será aferida a temperatura dos membros das delegações.

É assim a Copa América 2021.

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