Vida roubada

Morte precoce do jogador William Morais abreviou carreira promissora e chocou Ronaldo Fenômeno no Corinthians

Alexandre Araújo e Vanderlei Lima Do UOL, no Rio de Janeiro e em São Paulo Marco Miatelo/AE

Ele planejou tudo sozinho, fez tudo sozinho, convidou todo mundo. Foi uma festa linda, pena que era a despedida e eu não sabia. Foi a grande despedida."

Em dezembro de 2010, William Morais, que havia acabado de surgir para o futebol brasileiro com a camisa do Corinthians, fez uma surpresa no aniversário da mãe, Cris Oliveira, e organizou uma festa na casa que havia comprado para ela, em Osasco. Era um sonho de infância.

Em fevereiro do ano seguinte, só dois meses depois, após uma confraternização com o elenco do América-MG, clube no qual era recém-chegado por empréstimo, o jogador levou um tiro nas costas e morreu — tinha só 19 anos. Informações indicam que o jovem teria reagido a um assalto.

O adeus ao meio-campista foi um choque para família e amigos, e abalou também quem conviveu com ele no mundo do futebol. Ex-companheiro no Corinthians, Ronaldo Fenômeno foi um dos nomes que externou a indignação com o episódio.

"Dor e a revolta pelo assassinato do William Morais, um menino de 19 anos, cheio de talento. Sei que não resolve nada, mas meu abraço solidário aos pais, amigos e familiares dele", escreveu o ídolo à época, em uma rede social.

Pouco mais de uma década depois, o UOL Esporte relembra a trajetória de William Morais e sua morte precoce, através das memórias de quem acompanhou de perto a curta vida do menino paulistano.

Marco Miatelo/AE
Agência Estado
Enterro de William Morais em São Paulo, em 2011

Morte após confraternização de jogadores

Foi tudo muito rápido. William Morais tomou um tiro nas costas em uma tentativa de assalto após ter participado de uma confraternização com os jogadores do América-MG. Ele estava em frente a um estacionamento, acompanhado de uma mulher, no instante do ocorrido.

Na ocasião, o delegado Carlos Augusto Marçal relatou que os dois estavam conversando na rua quando os ladrões chegaram anunciando um assalto. Em reação instintiva, o jogador tentou correr e acabou alvejado por um disparo.

"Foi em um sábado. O pessoal já estava indo embora e, como lá é escuro, foram assaltar ele. Foi o que fiquei sabendo depois, eu estava lá dentro recolhendo as coisas [do churrasco]. Acho que ele não acreditou que o menino estava armado. Caiu pertinho da gente, nós pedimos socorro, mas não deu tempo. A maioria do grupo do América estava lá, tinha seguranças, mas só que ficou um pouco afastado. Ele saiu e foi caminhando porque o carro estava longe, uns 200 metros", lembrou Irênio, ex-jogador do América-MG e um dos organizadores do evento.

A notícia da morte do meia chegou em um momento em que parte da família estava reunida, na casa da mãe do atleta. Durante o dia, ele havia conversado com Dona Cris e pedido para que ela visse algumas coisas para a celebração de aniversário dele, que seria em menos de um mês depois, em 1º de março.

"Eu saía às 20h, comecei a ligar para ele e nada. Chamava e nada. Comecei a me angustiar. As horas passando e eu muito aflita porque não conseguia falar com ele. Do nada bem tarde da noite, o rádio [Nextel] chamou e era o dele. Eu falei: 'Olha o sem vergonha. Deveria não atender para ele aprender como é bom ficar na agonia'. Aí, o rádio insistindo, atendi e veio a notícia. Foi a pior noite da minha vida. Entrei em desespero, comecei a gritar. O meu irmão pegou e foi conversando, já não era mais o meu filho. Foi alguém ligando do rádio dele, mas não era ele."

"Eu não acreditava. Quando cheguei ao aeroporto de Belo Horizonte, um cara veio perguntar para mim se eu queria ir para a delegacia ou para o IML (Instituto Médico Legal). Eu falei: 'Como assim delegacia ou IML?'. Fomos reconhecer o corpo e aí a ficha começou a cair. Eu fui desabando devagar, aos poucos. O William era bom demais, nunca vi ele tretar com ninguém, discutir com ninguém. O negócio dele era só brincar, jogar bola, dar risada", emendou a mãe.

Foi um tiro só, nas costas. Pegou no pulmão. Eu peço que ele descanse em paz, não tem como voltar atrás. Um dos caras está preso, mas não adianta nada, então é só agradecer a Deus e deixar ele descansar em paz, mas a dor fica.

Francisco Morais, pai de William

O dia marcante mesmo foi no aniversário da minha irmã. Ele foi à minha casa fazer um pedido: 'Tia, estou indo viajar. Não gosto de despedida, mas vim pedir para você cuidar da minha mãe até eu voltar'. Ele voltou dentro de um caixão.

Marinalva de Oliveira, tia de William

Arquivo pessoal
William Morais (à direita) com Lucas, ex-companheiro na base do Corinthians

Amigos pensaram em largar o futebol

William Morais fez amizades valiosas no mundo da bola. O zagueiro Felipe Baptista, que hoje defende o Carlos Renaux, de Santa Catarina, é um exemplo. O laço entre eles se iniciou ainda nas escolinhas. Posteriormente, estiveram juntos na base do Corinthians, clube em que chegou através de uma forcinha de William.

"A gente concentrava junto, ficamos alojados juntos durante um ano. Ele era irmão mesmo, eu dormia na casa dele e ele na minha. Quando aconteceu isso [a morte], eu estava emprestado pelo Corinthians ao Flamengo de Guarulhos, à época, na disputa da A-3", lembra. "Estava escalado para jogar e me tiraram do jogo. Eu não entendi muito. Só depois eu fiquei sabendo da morte e fiquei muito ruim. Perdi um irmão, entende? Chorei horrores. Não conseguia dormir, chorava, sonhava com ele."

O adeus precoce do amigo colocou em xeque os planos que tinha para a carreira. "Pensei [em parar]. Depois do ocorrido, eu me desgostei um pouco. Você acaba dando aquela enfraquecida."

O ex-lateral esquerdo Lucas Caló atuou ao lado de William no Grêmio Quitaúna, de Osasco, e, depois, no Corinthians. "Antes de ele falecer, íamos fazer o nosso aniversário juntos para amigos e familiares. Eu sou do dia 6 de março, e ele do dia 1º."

"Eu tinha acabado de ir para o Bangu. Eu tinha dois dias lá e recebi a notícia na madrugada, através do meu irmão. Foi um baque. Não pensei duas vezes, conversei com a diretoria e só deu tempo de eu arrumar as minhas coisas e ir embora. Éramos muito colados. Pensei em largar o futebol naquele mesmo momento, mas tiveram muitas pessoas, inclusive a tia Cris [mãe do William], que conversou muito comigo e falou que não era para eu largar. Foram anos difíceis para absorver essa notícia", afirmou.

Lucas, que atualmente é operador de empilhadeira, conta que teve passagem pelo futebol baiano e nos Estados Unidos, até encerrar a carreira em 2018.

Mauro Horita/AGIF/AE

Um corintiano doente

William Morais "não era muito fã da escola", como relata a mãe, e desde criança tinha a bola como companheira. Os primeiros passos foram no futsal do São Paulo. Aos 15 anos foi para o Grêmio, mas a passagem pelo Sul foi curta. "Não aguentou a distância. Me ligava e começou a pedir para trazer ele de volta", diz Dona Cris.

Após defender o Grêmio Quitaúna, equipe amadora de Osasco, William fez testes no Corinthians e acabou sendo aprovado.

"Ele falou: 'Me mandaram embora', e eu falei: 'Vamos para outra, vamos ver outra coisa'. E aí ele disse: 'Estou brincando, fui aprovado. Se vira lá agora para conversar com os caras. Eu vou jogar aqui, meu sonho é jogar no Corinthians, acha que eu vou perder essa chance?'. Ele era corintiano doente", lembra Marcelo Aguiar, o Soneca, olheiro que levou William ao Parque São Jorge.

Dalva, tia do jogador, conta que, antes do acerto com o Corinthians, WIlliam chegou a ter uma proposta para jogar no exterior, mas priorizou o sonho de se consagrar no próprio país.

"Antes de fechar com o Corinthians, ele recebeu uma proposta para ir para a Itália (Udinese), para ficar quatro anos. A minha irmã entrou em desespero. Eu falei: 'Primeiro você tem de ser reconhecido aqui, para depois ir para fora. Seu sonho é entrar no Corinthians, e que você consiga alcançar o seu objetivo'. Ele conseguiu alcançar e foi jogar no Corinthians. Com certeza, se hoje ele estivesse vivo, estaria muito bem reconhecido."

Arquivo pessoal

"Eu tenho uma camisa do São Paulo de salão quando ele jogava lá, tenho uma blusa de quando ele jogava no Nacional-SP e tenho uma do Corinthians. Ele autografou e deixou para mim, tenho a foto e a camisa do Corinthians que ele deixou para mim. Ele me disse: 'Mano, sei que tu é são-paulino e não vai usar a camisa, então vou pegar uma camisa e pedir para todos os jogadores assinarem, e aí tu vende'. Ele fez isso, mas não tinha a assinatura dele. Eu disse: 'Tá maluco? Assina também. E tirei a foto dele assinando."

Evandro Cássio, amigo de William Morais.

Mauro Horita/AGIF/AE Mauro Horita/AGIF/AE

Relação de filho com olheiro

William era filho de Cris Oliveira e Francisco Morais, mas contou também com um relacionamento quase que familiar com Marcelo Aguiar, o Soneca, olheiro conhecido na região de Osasco. O caçador de talentos funcionava quase que um porto seguro afetivo para o jogador.

"[Era uma relação] De pai para filho mesmo. Um menino carente, com problemas sociais, a mãe trabalhava muito... No começo, foi somente a questão do futebol, mas, depois, com o tempo, fui ajudando em outras questões também, social, financeira, e fui ganhando o carinho dele. Estávamos sempre juntos. Inclusive, uma das coisas que a gente conseguiu sanar foi que ele morava em um barraquinho e conseguimos, através de uma parceria com outros empresários, comprar uma casa para ele. Essa casa está com a mãe até hoje", recorda o olheiro.

Soneca, inclusive, foi uma das últimas pessoas a ter contato com William. O olheiro passou uns dias em Belo Horizonte logo que o meia chegou ao América-MG e se despediu pouco antes da morte do jovem.

"Antes de ele falecer, estive em Belo Horizonte, fiquei uma semana. Fiquei ajeitando umas coisas para ele, estive na apresentação no América-MG. Chegou uma sexta-feira, ele ia fazer a pré-temporada e eu fui embora. Ele, brincando para caramba, falou: 'Não, você não vai embora'. Eu falei: 'William, tenho mais uns 20 moleques para tomar conta'. E ele: "Não, pai. Agora mudamos de patamar. Agora, você vai cuidar só de mim. Perguntei sobre os outros e ele falou: 'Vai cuidar deles por telefone. Você vai morar comigo aqui'."

Almeida Rocha/Folhapress
William Machado, ex-capitão corintiano

Amizade com Capita

Na passagem pelo Corinthians, William teve a chance de jogar com alguns grandes nomes do futebol brasileiro, como foi o caso de Ronaldo, que tinha desembarcado no Timão em 2009. Além disso, esteve ao lado de William Machado, o "Capita", a quem tinha como ídolo, segundo a mãe Dona Cris.

William Machado defendeu o time paulista de 2008 a 2010 e foi capitão de uma geração que marcou a torcida, saindo da Série B do Brasileiro rumo a muitas conquistas na década seguinte. Pelo clube, o zagueiro foi campeão da segunda divisão de 2008, além do Paulista e da Copa do Brasil em 2009.

"Ele subiu, salvo o engano, no meio do ano de 2010. Lembro muito desse período, era o meu último ano de carreira. Lembro de fazer os treinamentos que eu fazia normalmente e eu peguei ele para cristo para também ajudá-lo. Ele tinha uma perna esquerda de menos qualidade, assim como eu, então, acabava o treino eu falava: 'Vamos treinar, ainda mais você, um meia-atacante. Dominar melhor os fundamentos com a perna esquerda é muito mais difícil de marcar. Vai te fazer valer mais dinheiro'. Eu brincava com ele."

Arquivo pessoal
William Morais com a mãe, Dona Cris

"Ele queria ficar no Corinthians"

William Morais foi promovido aos profissionais do Corinthians em 2010, com o então técnico Mano Menezes. Foram dez partidas e três gols marcados. Sem muitas oportunidades em meio a um elenco recheado de nomes badalados, ser emprestado foi uma solução para o meia jogar mais.

Algumas propostas apareceram, entre elas, a do América-MG, em transferência por empréstimo. Mas a verdade é que a mãe não queria deixá-lo sair de São Paulo.

"Eu não queria que ele fosse. Nessa época, ele tinha três propostas: Bahia, Belo Horizonte [América-MG] e o outro não me recordo. Era uma briga, e eu falava pra ele que eu não queria que ele fosse pra lugar algum. Mas acabou que ele foi para BH. Eu não queria de jeito algum, mas como ele tinha contrato com o Corinthians, eu não podia me meter. Mas foi contra a minha vontade, e a dele também. Ele queria ficar no Corinthians", diz Dona Cris.

O meia foi para Belo Horizonte em 4 de janeiro de 2011 e foi assassinado apenas 33 dias depois, em 6 de fevereiro. William Morais tinha contrato com o Corinthians até 31 de julho de 2013.

Arquivo pessoal
William Morais em sua passagem pelo futsal do São Paulo, na adolescência

Comparado a Raí

Assim como muitos jogadores em início de carreira, William também chegou a ser comparado com nomes consagrados do esporte. No caso do meia, a lembrança, para alguns, era de dois nomes que fizeram história no rival São Paulo.

"Acredito que o William Morais tinha mais, tecnicamente, características parecidas que lembravam mais o Raí", aponta William Machado, ex-companheiro de Morais no Corinthians.

"Eu sempre comparei o futebol do William com o do Kaká, do Raí. Ele tinha esse tipo de característica", afirma Soneca, o olheiro responsável por descobrir o talento do jogador.

Mauro Fernandes, técnico do América-MG em 2011, acreditava que o meia ocuparia a vaga de titular no time de forma rápida.

"Eu pedi a contratação dele. O William era sensacional, não só como pessoa, mas como atleta também. Tinha uma carreira promissora demais. Infelizmente, aconteceu aquela fatalidade. Ele fez a pré-temporada, fez dois jogos, jogou a metade dos dois jogos. Com certeza, seria titular até por aquilo que vinha fazendo dentro dos treinamentos. Era um jogador que tinha o porte elegante dentro de campo para jogar, o biotipo dele também porque era um jogador alto, tinha um estilo muito próprio de jogar, mas, infelizmente, a carreira dele foi muita curta."

O que me marcou mais do meu trabalho com o William foi um campeonato de aspirantes que nós tivemos em 2010, um campeonato sub-23 em Sete Lagoas (MG). Ele já estava treinando com o profissional e descia para jogar com a gente. Lembro que a semifinal foi contra o Atlético-MG, ele fez gol e jogou demais.

Luiz Andrade, ex-preparador físico da base do Corinthians e atualmente no profissional do Bahia

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