Cinco anos

Hoje palestrante e músico, Jakson Follmann conta como sua vida mudou desde o acidente com o voo com a Chape

Jakson Follmann, em relato a Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) UOL/Fernando Moraes

Quando eu soube que estava seguro

Eu só ouvia o barulho do vento. O zumbido dos motores havia cessado. Com as luzes apagadas, a escuridão era tão desesperadora quanto o silêncio. Ninguém falou nada. As aeromoças iam e vinham pelo corredor. Todo mundo sabia que havia algo errado. Ainda assim, nenhuma palavra foi dita. Eu não queria acreditar que nosso avião estava caindo.

Mas aí veio a sirene. Acho que era um aviso do próprio avião de que estávamos muito perto do chão e iríamos bater. Me restou rezar, pedir a Deus que nos livrasse do pior. Rezei forte para que os motores voltassem, para que as luzes se acendessem.

Da hora da queda, eu não lembro de mais nada.

...

Eu apagava e voltava. É como um pesadelo em que você não consegue acordar. Preso ali, nas ferragens, não sei por quanto tempo eu fiquei pedindo socorro baixinho antes de apagar novamente. Eu não sabia onde eu estava.

Não tenho imagens na memória, somente vozes. Foi o sargento Nelson que ouviu meu pedido de socorro ao ir até ali procurar outra pessoa. Ele chega, pede calma e diz que vai me tirar dali. Perguntou e eu disse meu nome. Acrescentei que era o "arquero", tentando falar espanhol.

Ele me contou depois que foi a cena mais triste que ele viu na vida: um jovem praticamente sem a perna e com uma fratura muito exposta no tornozelo esquerdo. Um buraco gigantesco.

Foram 12 pessoas para me tirar dali e me colocar na caçamba de uma camionete 4x4. A ambulância não chegava até aquele ponto. Eu não lembro, mas dizem que eu pedia água a todo momento. Eu não parei no acampamento do vilarejo para primeiros socorros. Fui direto ao hospital.

Cinco dias depois, acordei do coma e vi a imagem mais linda: meus pais e minha esposa do meu lado, lá na Colômbia. Ali, depois de tudo, eu soube que estava seguro.

UOL/Fernando Moraes

Tudo era muito novo. Estávamos felizes demais

Lembro da minha última partida como goleiro da Chapecoense. Curiosamente, foi na estreia da Sul-Americana (contra o Cuiabá). Estávamos em outro estado (Mato Grosso). O jogo era só à noite, então eu acordei cedo, tomei meu café e voltei para o quarto para descansar mais. Escutava músicas e ficava ali me preparando para o jogo.

Mais tarde, tomei meu chimarrão enquanto estudava os dados que o analista de desempenho trazia. No banho antes da partida, procurei relaxar e imaginar como seria a partida: como o outro time iria atacar, como eu iria me portar, como nosso time iria jogar. Criava uma história na minha cabeça.

Nosso grupo era muito bom. Acho que o ponto forte era o companheirismo. Dos mais experientes, como o Cléber Santana, aos mais jovens, como o Thiaguinho, todos eram parceiros e queriam o bem um do outro.

No dia do voo para a Colômbia, o avião atrasou muito e ficamos um bom tempo no aeroporto. Durante esse período, as pessoas nos paravam para tirar fotos, diziam que estavam torcendo, que iriam assistir ao jogo. Isso era muito gostoso. O Brasil todo torcia por um time de uma cidade de 220 mil habitantes.

Todos sabiam que merecíamos estar ali. Estávamos jogando de igual para igual com os grandes, mesmo com uma folha salarial que não era alta. O futebol, esse sim era alto. Era um futebol caro, com certeza.

Pegamos o voo para a Bolívia para, aí sim, pegar o avião da Lamia. Lembro que quando nos aproximamos da aeronave, ficamos surpresos: ela estava toda plotada com o símbolo da Chape. Dentro, os bancos também ostentavam o escudo.

Voo fretado, avião plotado, bancos personalizados. Tudo era muito novo. Estávamos felizes demais, brincando a todo momento e ansiosos para o voo...

UOL/Fernando Moraes

Eu não assisti nada, sabe? Me privei de muita coisa. Não sei como foi o velório, não sei o que aconteceu naquele momento. Procuro ficar com a imagem do sorriso dos meus amigos. É isso que vale pra mim."

Jakson Follmann

56 dias de luta no hospital

Eu lutei pela minha vida. Eu realmente lutei. Quando eu acordei do coma, recebi a notícia de que nosso avião tinha caído e eu tinha perdido minha perna e quase todos meus amigos.

Naquele momento, eu falei uma frase que repercutiu: "Eu preferia minha vida do que minha perna". Mas eu não estava processando direito as coisas naquele momento, sabe? Eu estava dopado de remédios, foi um choque e eu não conseguia assimilar.

Eu respeitei muito aquele meu momento. Não falava do acidente e ninguém ao meu redor falava. Sofri muito calado nos primeiros dias. Minha cabeça estava muito embolada com tudo.

Com o passar dos dias, eu comecei a perguntar e eles foram me falando sobre o acidente. Mas nunca por eles, sempre por iniciativa minha. Fui o último dos sobreviventes a sair do hospital, depois de 56 dias. Tive que ter muita paciência.

Meu tornozelo esquerdo quase foi amputado também, mas os médicos brasileiros lutaram para que não fosse preciso. Antes, eu tinha pegado uma infecção generalizada e quase não resisti. Precisei amputar quatro centímetros acima do que já tinha perdido da minha perna por conta disso.

Perdi 22 kgs e tenho uma haste de 26 cm no tornozelo esquerdo, onde tive que enxertar pele da coxa. Tenho 20% dos movimentos. Hoje, minha perna boa é a da prótese.

Eu não pensava em relação ao futebol. Era tudo muito incerto naquele momento. Precisava focar na minha recuperação e era tudo muito intenso com acompanhamento de médico, fisio, psicólogo, fono...

UOL/Fernando Moraes UOL/Fernando Moraes

Tinha 13 fraturas pelo meu corpo. Te confesso que meu maior medo até o último dia de internação no hospital era morrer. Mesmo não correndo mais risco, eu me cagava de medo de morrer."

Jakson Follmann

Fiquei por um motivo

Na minha cabeça, eu ia colocar a prótese, voltar a andar e acabou. Mas eu estava totalmente enganado.

Tive que reaprender a caminhar. Mais do que isso: tive que reaprender a ficar em pé. A lesão era muito grande e eu fazia curativos todos os dias no tornozelo. Coisas simples do dia a dia, como ir ao banheiro ou colocar um sapato, eram um sonho naquela época.

Esse tempo hospitalizado me fez refletir muito sobre a vida, sabe? Sobre o momento e o que realmente importa. Com toda certeza, hoje sou um cara que valoriza demais o momento, o hoje, o agora. Minha palestra é focada nisso. Bato muito nessa tecla porque vivi isso.

A vida me mostrou que você não tem idade para lutar pela sua vida. Se eu fiquei, foi para de alguma forma poder ajudar ao próximo com minha experiência de vida. E a forma que descobri para fazer isso foi através das palestras.

Eu cheguei a ter outras experiências, como ser comentarista de futebol para um canal de televisão, mas eu decidi sair. Não era momento. O acidente ainda era muito recente e a rotina da TV me fazia ficar 15 dias no Rio de Janeiro, o que acabava atrapalhando minha recuperação. Eu estava debilitado ainda.

A empresa tinha até projeto de Copa do Mundo comigo. Eu adorava o trabalho, era um desafio. E minha vida é movida por desafios, mas estava complicando minha recuperação e eu precisava focar no meu corpo, na minha reabilitação, sabe? Não era a forma como eu queria me colocar para as pessoas que me tinham como exemplo. Como iria dizer para alguém priorizar a saúde se eu não estava fazendo isso? Foi aí que decidi sair.

UOL/Fernando Moraes UOL/Fernando Moraes

Bom humor

Meu filho tinha uma perninha de borracha que ficava mordendo. Eu estava sentado na sala de casa, tomando chimarrão, olhei praquilo e falei: 'mor, me veio uma ideia bem louca aqui, acho que vou fazer'. Estava na febre daqueles vídeos que você caía na cama e trocava de roupa. Postei sem pretensão nenhuma. Sou um cara muito leve. Apesar de não estar postando nas redes sociais, sempre brinquei comigo mesmo entre amigos e família. Eu postei o vídeo e bombou. Ganhei quase 100 mil seguidores. Me fez bem, todos riram e recebi muitas mensagens de pessoas que passavam por alguma dificuldade."

Jackon Follmann

UOL/Fernando Moraes UOL/Fernando Moraes

Barreira com o amanhã

A minha experiência de vida e essa tecla que eu sempre bato de valorizar o hoje criaram em mim uma barreira forte: a de pensar no futuro. Eu simplesmente tenho bloqueio para fazer planos.

É muito difícil projetar coisas para daqui alguns anos. Eu senti na pele que só temos o hoje. O amanhã não existe e o ontem não volta mais.

Quando minha esposa quer fazer o planejamento para alguma viagem, eu sei que tem que ser feito, que não dá para fazer tudo da noite para o dia, mas eu sofro.

Mas, se eu tiver que falar como me imagino daqui a cinco anos, eu me imagino mais consolidado no ramo de palestras e como cantor também. Um sonho que sempre tive. Quando estava no hospital na Colômbia, inclusive, tive que fazer um procedimento que afetou minhas cordas vocais e eu sofri demais por ficar sem poder falar, sem poder cantar.

Daqui cinco anos, eu quero seguir feliz como sou hoje, muito orgulhoso do meu corpo e das minhas cicatrizes. E podendo ajudar muitas pessoas, que é o mais importante.

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Nova vida

Sabe, eu nunca vou me ver como ex-atleta. Eu me sinto um goleiro fora das quatro linhas e sempre vou me sentir assim. Em meus treinos funcionais, sempre coloco minhas luvas e faço algum trabalho com bola. Me faz muito bem. Na minha veia corre o sangue de um goleiro.

A concentração que eu tinha antes de um jogo é muito parecida com a que tenho hoje antes de uma palestra. Fico imaginando como vai ser, como vou abordar os assuntos, como as pessoas vão interagir. Sei que a ansiedade é grande para ouvir a minha história, que é muito forte, mas gosto de ouvir as histórias das pessoas também. Em grande parte das vezes, elas se emocionam e eu, que sou um cara emotivo, também.

Em dias que tenho palestras, eu acordo cedo e tenho o maior privilégio do mundo, algo que não tinha quando era jogador: minha família está o tempo todo ao meu lado, pertinho. O atleta profissional acaba convivendo muito mais com os colegas de profissão do que com os familiares. A saudade era grande demais.

Então, hoje, eu acordo cedo, tomo café com a minha esposa e meu filho. Depois, pego meu inseparável chimarrão — que me dá até dor de cabeça se eu não tomar — e estudo os slides e aquilo que a empresa que me contratou quer que eu aborde. É como se fosse uma preleção com os dados do analista de desempenho.

No futebol, eu sempre levei minhas próprias luvas, não deixava o roupeiro levá-las. É um costume de carregar meu instrumento de trabalho. Hoje, sempre levo meu violão, mesmo que no estúdio de onde faço as transmissões neste período pandêmico já tenha outros violões.

Eu sei que tenho uma história muito forte por conta do acidente, mas também tenho muitos capítulos importantes depois disso. Quero sempre poder levar essa mensagem positiva e que faça as pessoas refletirem. Não importa suas limitações. Se algo te faz bem, nunca deixe de fazer.

Jamais serei um ex-atleta. Jamais ex-goleiro.

UOL/Fernando Moraes

Jakson Follmann e o voo da Chapecoense

Jakson Follmann era um dos goleiros da Chapecoense em 2016, quando o avião que levava a equipe até a Colômbia para disputar a inédita final da Copa Sul-Americana caiu, já em solo colombiano. Ele foi revelado pelo Grêmio e chegou a ser convocado para a seleção brasileira sub-20. A queda do voo 2933 da LaMia, na madrugada do dia 29 de novembro de 2016, matou 71 pessoas. Follmann foi um dos seis sobreviventes. Os atletas Alan Ruschel e Neto, o jornalista Rafael Henzel, a comissária Ximena Suárez e o técnico de voo Erwin Tumiri foram os outros.

A Chapecoense foi declarada campeã da Copa Sul-Americana naquela temporada após o Atletico Nacional (COL) abrir mão e pedir que o título ficasse com os brasileiros. Até então em franca ascensão no cenário do futebol brasileiro, a Chapecoense se manteve na Série A por mais duas temporadas, mas caiu para a segunda divisão em 2019. Logo na temporada seguinte conquistou o título da Série B e retornou à elite, mas fez campanha ruim no Brasileirão e foi o primeiro time rebaixado à Série B de 2022.

O acidente foi provocado pela falta de combustível. A Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da Chapecoense (AFAV-C), presidida por Fabienne Belle, viúva do fisiologista Luiz César Martins Cunha, o "Cesinha, faz investigações independentes e busca punição aos responsáveis e luta por indenizações justas para as famílias das vítimas. A CPI da Chapecoense, instalada em dezembro de 2019, foi retomada nas últimas semanas para "apurar a situação dos familiares das vítimas do desastre. Os senadores investigam ainda os motivos pelos quais familiares ainda não receberam indenizações". O prazo para a conclusão dos trabalhos termina em abril de 2022.

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