De caso com a máfia

Pezão entrou para a Yakuza, viu um mafioso decepando o próprio dedo e foi guarda-costas de um chefão

Felipe Pereira Do UOL, em Tóquio (Japão) Reprodução

A história de Rui Katakura, 39 anos, é tão fora da curva que faz você duvidar. O ponto mais inacreditável é ele ter sido guarda pessoal do chefão da Yakuza da cidade japonesa de Toyohashi por três anos. Além de exigir porte físico e habilidades em artes marciais para bater em cinco pessoas ao mesmo tempo, o cargo levou este brasileiro de Marília (SP) ao submundo japonês e o tornou testemunha de seus rituais.

Rui assistiu a um mafioso cortar o próprio dedo como pedido de perdão à organização. Então, o brasileiro levou o toco decepado para benzer em um templo e pagou 30 mil ienes (R$ 1,4 mil) pelo serviço.

Você só está lendo esta matéria porque as histórias de Rui foram confirmadas. Jake Adelstein é um jornalista norte-americano baseado em Tóquio e especializado em Yakuza. Ele escreveu livros como "Tóquio proibida" e "O último Yakuza: a vida no submundo japonês". Foi com ele que a reportagem do UOL, que está no Japão para os Jogos Olímpicos de Tóquio, falou sobre Katakura.

Adelstein recebeu relatos fornecidos por Rui sobre as atividades, nomes de organizações, integrantes da máfia e seus cargos em Toyohashi. Afirmou que eles são verídicos. Acrescentou que o escritório da Yakuza do qual o brasileiro afirma ter feito parte não é o mais numeroso do Japão, mas nem por isso tem negócios inexpressivos.

Toyohashi é uma cidade de quase 400 mil habitantes com indústrias de peças automotivas que atendem Toyota, Honda, Suzuki e Mitsubishi. Há também extorsão, roubos e prostituição. Esta segunda parte acontece sob o controle da Yakuza. Katakura era responsável pela segurança do homem que comandava esta engrenagem delinquente.

Mais conhecido como Pezão, ele ressalta que foi parte da organização até 2012. Uma temporada na cadeia e o risco deportação o fizeram ajoelhar-se em frente ao patrão e pedir para deixar a Yakuza. Houve um acordo. Rui tem 10 dedos nas mãos.

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Esmurrando um Yakuza

Filho de pai traficante e assaltante, Pezão foi enviado ao Japão para não virar bandido. A estratégia falhou. Com 18 anos, ele entrou para uma organização criminosa de menor expressão na cidade de Fuji. Numa noite, teve problemas.

"Eu era magro, mas tretava pra caramba. Fechava briga, puxava faca, andava com carro de placa fria, sem carta (carteira de motorista). Chegou um Yakuza e eu tava com soco inglês no bolso. Ele reclamou que eu não fui polido e perguntei: 'É escola pô?' O pau fechou. Eu já tava com negócio na mão [soco inglês] e mandei nele. O bagulho espirra sangue."

Pezão estava com 21 anos e era o líder de um pequeno grupo de jovens em Fuji, mas descobriu que a organização da qual seu grupo fazia parte só lembrava dele na hora de encomendar serviços sujos. Quando precisou, não recebeu proteção. Ele relatou a briga ao superior na máfia e ouviu uma resposta desanimadora: "Você quer que eu faça o quê?" Ciente que não teria retaguarda, fugiu.

Foi para Toyohashi, a 160 quilômetros de Fuji, onde teria ficha limpa. Um brasileiro próximo à Yakuza fez o meio de campo com um japonês que estava recrutando novatos. O ano era 2003 e Pezão entrou para a maior máfia japonesa. Ganhou comparsas e um novo nome: Ryuuko (Tigre e Dragão).

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Armado com espanador

Pezão esperava pegar em armas ao entrar na Yakuza. Ganhou um espanador. A máfia exige um período de adaptação e o novato fica três meses trancado no escritório, como são chamadas as unidades abaixo da sede da Yakuza. Sua tarefa era limpar a recepção e as salas de reuniões. "Primeira coisa que me tornei foi um excelente faxineiro", caçoa de si mesmo.

A promessa de ganhar 10 mil ienes diários (cerca de R$ 475,00) era um engana bobo. Mas por algum motivo, o chefe do escritório foi com a cara de Pezão. "Não sei o que o velho viu em mim, mas ele falou para me colocar de segurança."

Pezão acredita que o diferencial foi a altura. Ele tem 1,88 metro e se destaca entre os japoneses franzinos. "Eu fiquei muito emocionado, era um sonho. Nunca imaginei me transformar num segurança. E eu tinha muita curiosidade. A gente vê o lado bonito, os caras que andam com carrões, roupa bonita, mulheres, têm dinheiro. Eu queria me tornar uma pessoa assim."

O homem a quem Pezão prometeu proteger era o segundo da Yakuza em Toyohashi nesta época.

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Cúpula cai, Pezão sobe

Um grupo de iranianos começou a vender drogas em Toyohashi e se recusou a pagar pedágio para Yakuza. A máfia não perdoa. Preparou uma emboscada, mas os tiros não mataram o líder rival. Ele entrou no hospital na condição de estrangeiro ilegal, criminoso e correndo risco de morrer. Contou tudo.

A Yakuza de Toyohashi corria perigo e um integrante não aguentou a pressão da polícia. Entregou toda a cúpula. O escritório em que Pezão chegara havia três meses estava acéfalo. "Ficou uns chefes mais fracos, não tinha pessoas graduadas. A maioria era faxineiro e não tinha gente para resolver as coisas. As pessoas que resolviam as tretas, a tropa de elite mesmo, foram presas."

Se tinha uma coisa que Pezão sabia fazer era brigar. Ele passou a trabalhar junto com o homem que tinha mais experiencia no escritório e o motorista do chefe que o escolheu como segurança pessoal. "Foi quando eu passei a ser temido pela violência. Lá, se você pega o cara errado e arrebenta ele no meio, eles te elogiam. Eles te estimulam a este tipo de comportamento."

Quando questionado, Pezão não esconde o grau de violência das sessões de espancamento nos desafetos da Yakuza. "É perto de um linchamento."

"Tive dois filhos e comecei a lembrar do que sofri"

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Botando ordem nos brasileiros

A falta de pessoas experientes no escritório gerou oportunidades. Chegara a primeira missão importante para Pezão. Havia muitos brasileiros cometendo crimes e roubando comércios a que a organização dava proteção.

A máfia tinha muita dificuldade de lidar com a situação por causa da língua. Coube a Pezão impor as regras da Yakuza. "Pegava a pessoa que cometia crime e falava: 'Se você quer cometer qualquer coisa na cidade, tem que pagar pra gente.' Eu meio que comecei a tentar a comandar o crime."

Pezão não agia sozinho. Recrutou pessoas de algumas nacionalidades e contava com um coringa no time. "Tinha brasileiros e japoneses. E tinha um chinês sem visto que eu usava para fazer coisas sujas porque não tem como achar o cara. Ele era um fantasma no Japão."

Ao mesmo tempo em que Pezão agia, a polícia começou a apertar o cerco sobre a bandidagem brasileira e os mais perigosos, aqueles que passaram pela cadeia no Brasil, foram deportados. A missão foi um sucesso. "Foi quando eu comecei a cobrar propina dos comércios. E fui criando meu nome na cidade. Me colocavam para resolver as tretas que apareciam."

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Rituais do submundo

A característica mais conhecida da Yakuza é um integrante arrancar o próprio dedo como forma de pedir penitência quando comete uma falha. "Cortar o dedo é a maior punição, não pode mais falar do pecado do cara. Cortou e o pecado morreu. Você matou um membro do seu corpo. Eu tinha meus capangas e, se algum cara da minha equipe causasse, às vezes morria com dedo dele."

Ele explica que o dedo funciona como uma vida extra e só é decepado em casos de falha grave. O mais comum é ficar detido no escritório ou raspar completamente o cabelo e a sobrancelha. Pezão diz que quando um dedo é cortado, o ritual causa asco.

"Você sabe aquelas tábuas de cortar carne? E tem aquela ferramenta de fazer buraco em madeira, a talhadeira. Eles colocam o dedo embaixo e dá uma martelada, nem esteriliza, nem nada. O dedinho dá uma pulada. Eu tenho os dedinhos na mão porque não sou vacilão."

Ele conta que o dedo precisa ser benzido em um templo porque se trata de um pedaço da pessoa. "Eu levei dedo dos outros e paguei 30 mil ienes (R$ 1,4 mil)." Pezão conta que não há um pedido para a automutilação, mas que o integrante percebe que está em dívida e toma a iniciativa. Nessa situação, o mafioso não será chamado para atividades da Yakuza até zerar suas pendências.

Este ritual, porém, está caindo em desuso. Pezão afirma que atualmente os chefes estão preferindo que as falhas sejam resolvidas com pagamento em dinheiro.

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Chefe sai da cadeia

O número um da Yakuza em Toyohashi estava com câncer em estado terminal. O próximo da fila era o chefe do escritório de Pezão, que cumpria pena na cadeia. Conspirações de outros membros graduados tentaram impedir a sucessão, mas ele ganhou a liberdade antes que a doença terminasse seu roteiro fatal.

O chefe do escritório de Pezão virou número um da Yakuza na cidade em 2009 e deu uma ordem ao brasileiro: ser capaz de bater em cinco pessoas ao mesmo tempo. Pezão intensificou os treinos de jiu-jitsu, kickboxing e tomou bomba para ficar "monstrão". Ganhou 30 quilos de músculos. A cara de mau e as tatuagens completavam aquela figura ameaçadora. Ele funcionava como as placas no portão de casa com a foto de um pitbull e o aviso: não se aproxime, cão bravo.

O cabeça da Yakuza em Toyohashi precisava de um guarda-costas com estas características porque saíra da cadeia por tentativa de assassinato com arma de fogo. Armas de fogo têm a circulação muito controlada no Japão e a polícia ficaria em cima. Pezão ia arriscar a pele de mãos limpas.

"Se aparecesse alguém para matar o chefe, eu tinha que entrar na frente e morrer no lugar dele. Se eu corresse e ele morresse, pode saber que depois os caras iam me torturar até eu morrer. Era uma coisa que você, que tá ali com ele, tem que estar ciente. Se for para ele morrer, tem que morrer junto. Depois, vai ser pior".

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R$ 50 mil por mês

A lealdade à máfia, os vários espancamentos que comandou e o cargo de guarda pessoal do chefe catapultaram Pezão na Yakuza. Ele fez um adesivo com seu nome de mafioso, Ryuuko, para as pessoas colarem no carro. Quem andasse com aquela identificação não teria problemas com furtos e roubos. Em troca, precisavam pagar uma mensalidade ao brasileiro.

"Eu cobrava 3 mil ienes (R$ 142) e isto me deu bastante propaganda. Muitos mafiosos viram a influência qu­e eu tinha na cidade."

Ele também passou a comandar as gangues de motos, os criminosos brasileiros e a receber propina de donos de comércio. Ganhava coisa de R$ 50 mil por mês — só ressaltando que estamos falando de 12 anos atrás. Além disso, havia oportunidades extras.

"Nas grandes jogadas, até entravam 8 milhões de ienes (R$ 372 mil). Quem se envolve, reparte. Mas são coisas que não tem como eu comentar".

Pezão conta que quanto mais fama, mais era chamado para resolver problemas, um eufemismo para cometer crimes e dividir os lucros. Ele incorporou o estilo de vida do mafioso da Yakuza. "Andava com Rolex no braço, meu carro era Mercedes, a roupa mais barata que andava era da Diesel."

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Pedindo baixa

O dinheiro entrava, o prestígio estava em alta e Pezão era temido e respeitado. Mas não é somente o submundo que tem acesso a estas informações. A polícia farejava os passos. "Cheguei a pegar polícia escondida perto de casa me filmando. Porque eu era segurança de um cara grande."

Pezão chegou a passar uma parte de 2012 na cadeia ao exagerar na dose em uma sessão de espancamento. Mais um crime e seria mandado de volta para o Brasil. Abandonaria mulher e um casal de filhos, todos japoneses. Não dava mais para continuar. Ele procurou o chefe da Yakuza em Toyohashi.

"Eu me ajoelhei perante ao kumicho [chefe], contei tudo que aconteceu, como que tava minha situação e falei que eu estando ali ia ser inútil. Eu não ia mais ter a mesma coragem. Na época, se tivesse que cometer algum crime em nome dele e puxar uma cadeia, eu não tinha medo. Se acontecesse de irem para cima dele, não iam conseguir porque eu entraria para frente. Eu tinha essa coragem".

Um acordou foi fechado. Pezão teria de deixar todas as atividades criminosas e nunca mais ganhar dinheiro usando o nome da máfia. Ele ainda se comprometeu a levar uma vida correta. Em troca, foi autorizado a permanecer morando em Toyohashi. Ganhou, também, carta branca para voltar à Yakuza quando quiser.

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Mafioso aposentado

Pezão está perto de completar 10 anos desde que deixou a Yakuza. Não parece disposto a usar a carta branca que tem para voltar. Não que os primeiros dias tenham sido fáceis. Demorou a arranjar emprego por causa da fama que construiu.

Quando conseguiu, um homem sentou na cadeira dele no refeitório, o instinto agiu e o homem foi arrancado a pontapés. "Na máfia, eu era elogiado quando batia, mas na fábrica as pessoas ficaram acuadas. Um monte de velhinho me olhando assustado."

O comportamento era incompatível com a sociedade normal e havia a questão do orgulho. Quando a Yakuza passava pelas boates, os seguranças abaixavam a cabeça em reverência. Agora, ele era qualquer um.

"Eu recebia um tratamento especial, as pessoas tinham medo de mim. E agora as pessoas falam de qualquer jeito comigo. Eu me assustava, não estava acostumado com isso. E aquele orgulho meu estava ferido. Eu me arrependia de ter saído."

Mas logo Pezão percebeu os aspectos positivos. Na máfia, ele só podia dizer sim para qualquer coisa que o número um falava. Se não adivinhasse algo que ele queria, como abrir a porta de um restaurante, apanhava. "Tomava um soco ou chute. E se ele vai bater em você, não pode nem reagir. Tem que ficar quieto e pedir desculpa."

A vontade de voltar para Yakuza foi desaparecendo. Hoje, ele trabalha em fábrica como vários imigrantes brasileiros e tenta entrar no ramo de compra e venda de carros. Pezão também tem outra visão sobre as coisas que fazia nos tempos de mafioso.

"Hoje, eu paro, eu penso qual era a coragem que eu tinha? Mas na época era tão normal, todo mundo fala a mesma coisa."

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