Cavalos de ouro

Como funciona o mercado em que um cavalo olímpico pode valer mais de R$ 40 milhões

Demétrio Vecchioli Do UOL, em Tóquio (Japão) Joel Auerbach/Getty Images

Faltava um mês e meio para o fim de 2019, quando quatro cavalos de propriedade de um casal de norte-americanos milionários saíram de um haras na Alemanha e, de caminhão, seguiram até a Bélgica, com passagem só de ida. As Olimpíadas de Tóquio ainda estavam previstas para acontecer em 2020.

Naquele dia, começava a sétima participação olímpica de Rodrigo Pessoa, primeiro homem tricampeão da Copa do Mundo de Salto Equestre. Naquele mesmo dia, chegava ao fim a carreira da alemã Meredith Michaels-Beerbaum, a primeira (e única) mulher tricampeã da Copa do Mundo na mesma modalidade. Talento os dois têm, mas só um está em Tóquio.

Os quatro cavalos que mudaram de estábulo, afinal, eram aqueles com os quais Meredith treinava para ir à sua quarta Olimpíada. A partir dali, se tornaram os quatro nos quais Rodrigo apostaria suas fichas para retomar a carreira de cavaleiro. Um ano e meio depois, ele chegou a Tóquio com um daqueles animais, o Carlito's Way (foto).

Em um esporte que tem como máxima que o resultado de um conjunto depende 70% do animal e 30% do atleta, ainda precisa ser calculada a participação de uma figura que, de tão importante, tem até direito a credencial olímpica: o proprietário de cavalos "cinco estrelas" —aqueles que saltam acima de 1,60m, podem chegar às Olimpíadas, e, por isso, valem uma quantia absurda.

Nesta reportagem, o UOL Esporte explica como funciona esse mercado gigantesco —fundamental para fazer rodar a engrenagem do hipismo—, que tem enorme influência sobre resultados esportivos e movimenta milhões de dólares.

Joel Auerbach/Getty Images

Por mais cruel que possa parecer, é comum no hipismo que interesses financeiros motivem que uma montaria saia de debaixo da sela de um atleta e vá para a de outro. Todo cavalo tem seu preço, e, os que não têm, normalmente, são vendidos por um valor mais alto exatamente por isso.

Hoje sétimo do mundo, Marlon Zanotelli já foi prejudicado por uma movimentação assim, cinco anos atrás. Talentoso, o maranhense, que passou longe de nascer em berço de ouro, vinha bem com o garanhão Clouwni, então de propriedade da fazenda belga para a qual trabalhava e que tem na compra e venda de animais o seu negócio.

As ofertas começaram a chegar, Marlon corria o risco de ficar a pé, e o então casal Doda e Athina Onassis se ofereceu para ajudar, comprando primeiro 50%, depois o cavalo inteiro, para que ele seguisse com Marlon. Mas a ajuda tinha prazo de validade. Logo, Athina, que tem um haras enorme na Bélgica, decidiu que Clouwni seria montado por ela. Sem cavalo "cinco estrelas", Marlon ficou fora da Rio-2016.

Doda também correu risco, fofocas à parte. Já separado da bilionária grega, travou uma batalha para montar, na Rio-2016, o cavalo Cornetto, cotado em US$ 10 milhões —ou R$ 32 milhões na cotação da época. E essa nem foi a maior aquisição dela. Segundo sites especializados, Athina pagou 12 milhões de euros (cerca de R$ 43 milhões em 2016) pelo puro sangue Going Global.

Mesmo com tanto investimento, ela não aparece nem entre as mil melhores do mundo. Sem dinheiro, não há resultado. Mas, sem talento, não há dinheiro no mundo que resolva.

Julia Reinhart/Getty Images
Marlon Zanotelli e cavalo Icarus disputam a Copa do Mundo de Salto Equestre, em 2020

Hoje, Marlon tem seu próprio haras, mas, como a enorme maioria dos cavaleiros, não tem dinheiro para comprar os próprios cavalos cinco estrelas. Ele se sustenta por um modelo de negócio que se assemelha aos bancos de investimento, que oferecem opções para que o dinheiro que você tem guardado se multiplique.

A diferença, no hipismo, é que o investimento não é em CDI ou tesouro direto, mas em cavalos. O cavaleiro procura um animal dentro do valor que o investidor tem, faz a indicação, e, depois, também a gestão desse ativo —o cavalo.

Os animais são comprados jovens (aos três, quatro, cinco anos) e treinados por esses cavaleiros e seus funcionários. Já competindo, são novamente vendidos, com o lucro dividido entre investidor e cavaleiro. Assim como os bancos, também há uma taxa de manutenção, que costuma ser de R$ 9,1 mil (1,5 mil euros), para pagar comida, veterinário, haras, ferradura e outras despesas.

Mas tudo é negociado. Quando o animal é bom, vale a pena fazer o serviço na faixa para não perder o negócio e a possibilidade de lucro. As premiações também costumam ser divididas.

Há também outros modelos. Marlon era empregado de um haras e recebia para montar os cavalos do patrão, ficando com uma porcentagem menor dos prêmios. Há ainda, claro, quem venha de família rica, ou tenha entrado em uma, e seja dono dos próprios cavalos.

Antes da definição da lista final de convocados do Brasil, um cavaleiro tentou colocar a própria esposa com a credencial de proprietário. Tal qual fez no caso Medina/Brunet, o COB vetou.

Luis Ruas/CBH
Marlon Zanotelli compete na prova de saltos do Pan de Lima (2015)

Ricaços, como Athina, fazem com que os cavalos mais caros do mercado não sejam aqueles que têm maior capacidade de serem campeões olímpicos, mas os com maior montabilidade. Questão de oferta e demanda. Um cavalo que salta 1,50m "sozinho", independentemente se montado por atleta de ponta ou uma bilionária, vale mais do que um que alcança 1,60m, mas só na mão de quem também sabe saltar 1,60m.

Outros muitos fatores influenciam no preço. Um deles é a disposição do proprietário em vendê-lo. Quanto menor for a disposição, mais caro o animal. Marlon vai à Olimpíada com Edgar Z, que pertence a um casal norueguês que diz que não o vende de jeito nenhum. Já Carlito's, montado por Rodrigo Pessoa, trocou de haras exatamente porque os proprietários entenderam que ele teria melhores resultados com o brasileiro e seria, depois, vendido por um preço maior.

Os dois animais são castrados, o que significa que o valor deles é 100% associado ao resultado esportivo. Os garanhões, que escaparam da cirurgia que visa deixar o cavalo mais domável, servem também como reprodutores, rendendo dinheiro para seus proprietários também pela comercialização de sêmen.

Quabri de L Isle, montado por Pedro Veniss, tem 186 filhos cadastrados na base de dados Horse Telex. Ou seja: ele é bom saltando e reproduzindo. Em um ano, o sêmen dele rendeu cerca de meio milhão de euros para os proprietários. No caso, para a família de Veniss. Quabri será aposentado no fim do ano, mas seguirá sendo uma árvore de dinheiro.

A mesma lógica vale para éguas. Quando se reproduziam naturalmente, elas geravam um potro por ano. Mas hoje, com técnicas das mais diversas, é possível ter 10, 15 filhotes em um ano. Se ela ainda é vitoriosa, campeã olímpica, o valor das crias é multiplicado por dois ou três.

A genética ajuda. Considerado o melhor cavalo de saltos da atualidade, Explosion W é filho de ninguém menos que Chacco Blue. No fim de 2019, Explosion foi vendido por 10 milhões de euros, mas os antigos donos exigiram que os novos o mantivessem montado pelo britânico Ben Maher.

John MACDOUGALL/AFP John MACDOUGALL/AFP

Capitalista até a ponta dos cascos, esse modelo beneficia quem já chegou à elite financeira do esporte e dificulta a vida de quem vem de baixo. Ótimos atletas veem muitos bons cavalos escaparem de suas mãos até ganharem a confiança de um mecenas.

Quem tem base na Europa, onde o mercado acontece, leva imensurável vantagem sobre quem tem base no Brasil. E, mesmo dentro do hipismo, existem os primos ricos e os pobres. Se um único animal de saltos vale seis, sete, 10 milhões de euros, na modalidade olímpica, toda a tropa de quatro animais que foi a Tóquio representando o Brasil custa, junta, menos de 1 milhão de euros.

Diferentemente dos saltos, no conjunto completo, o mercado de cavalos "top" é pouco movimentado. Baseado na Inglaterra, ele é mais tradicional, e, para grande parte dos criadores, mais vale o prazer de ser um proprietário de um cavalo que competiu em Badminton (lê-se bémiton), tradicionalíssimo torneio inglês, do que o dinheiro da venda na conta bancária.

Julian Finney/Getty Images

Para impedir que o dinheiro mande mais do que deveria, o hipismo criou algumas regras. Por exemplo, para participar das Olimpíadas, o cavalo precisa estar registrado como conjunto do respectivo atleta até 15 de janeiro do ano olímpico.

Da mesma forma, o animal precisa ter como proprietário, oficialmente, uma pessoa do mesmo país do atleta, ainda que essa regra seja claramente driblada, como nos casos já citados de Marlon e Rodrigo, por exemplo.

Mas isso deu problema em Tóquio. Candidata à medalha no adestramento, a holandesa Dinja van Liere descobriu que alguém registrou que o cavalo dela pertencia a um alemão que é seu sócio em outros animais, não nesse.

A federação internacional, a FEI, reconheceu o erro e colocou a culpa no estagiário que joga os documentos no sistema. Mas não voltou atrás. Já a russa naturalizada italiana Tatiana Miloserdova esqueceu de naturalizar também o cavalo. Ficou fora das Olimpíadas.

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