Vovô voador

Aos 59 anos (e só um pulmão), Santiago Lange busca bi olímpico em barco voador antes de velejar com o neto

Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo Daniele Molineris / Red Bull Content Pool

Quem veleja está acostumado com a ideia de que a força da natureza é que diz para onde o vento leva. Durante os primeiros dias de agosto, Santiago Lange estará em Tóquio disputando sua sexta Olimpíada, mas sem saber aonde vai chegar. Sua única certeza é que, na volta, vai matar a saudade do neto. E, se tudo der certo, velejar pela primeira vez com o bebê no barco que construiu em sua homenagem.

Lange, 59 anos, é um herói do esporte argentino. Da mesma geração de Torben Grael, que é só um ano mais velho, hoje vê seus filhos competirem contra os do brasileiro. Com a diferença de que, enquanto Torben vai a Tóquio como treinador, e Marco e Martine como atletas, na família Lange é o pai quem compete, e o filho quem dá treino.

"Cada vez que vou treinar me surpreendo com a gana que tenho. Ao longo da minha trajetória desportiva, fui mudando a gana de ganhar para o prazer em desfrutar o processo", disse o velejador em uma conversa com UOL Esporte de Buenos Aires, onde mora.

Depois de cinco Olimpíadas competindo em classes mais tradicionais, Lange ganhou enfim sua primeira medalha de ouro, no Rio de Janeiro, na classe mais radical da vela, a Nacra 17, um barco que parece voar. E ele venceu com um pulmão só, meses depois de se recuperar de um tratamento de câncer. Classificado para Tóquio, quer repetir o feito no Japão, enquanto já pensa nos Jogos de Paris e não vê a hora de ensinar a pescar o neto, Silvestre, um bebê que ainda não completou um ano.

A única coisa que eu queria era ganhar e ganhar. E agora quero ser um homem feliz. E, se continuo competindo, é porque amo fazer isso."

Santiago Lange, medalhista de ouro na vela

Daniele Molineris / Red Bull Content Pool
Sailing Energy Sailing Energy

Pai de quatro filhos antes dos 30 anos, Lange construiu uma carreira olímpica tardia, depois de convencer os pais que a vela era uma possibilidade profissional. Foi aos Jogos de Seul-1988, aos 26, com barco e vela emprestados, e só voltaria às Olimpíadas em Atlanta-1996, aos 34. Já veterano, viu da água o moleque e rival Robert Scheidt, então com 23, faturar o ouro logo em sua primeira Olimpíada.

Para o argentino, foram mais duas longas décadas batendo na trave até o ouro enfim vir nas águas da Marina da Glória. "Quase sempre pensei que não seria campeão olímpico. Mas a palavra correta não é pensar, é sentir. A decisão de ir ao Rio foi uma decisão 100% que veio não da mente, mas do outro lado, do coração. Eu queria ser campeão olímpico, tinha aquela coisa que não ter ganhado em Atenas e Pequim", lembra. Nas duas oportunidades, em 2004 e 2008, ele foi bronze.

Gustavo Cherro/Red Bull Content Pool

Sonho dourado motivou fim da aposentadoria

Lange havia se aposentado da vela olímpica aos 47 anos, já muito mais velho do que os adversários, e sem realizar o sonho do ouro. Foi velejar nas classes oceânicas, em competições em alto mar, e disputou a America's Cup, considerada a F-1 da vela, pelos valores investidos pelas equipes e a tecnologia que equipa os barcos. Trabalhava como treinador dos próprios filhos, em campanha olímpica, quando uma jovem velejadora argentina pediu um café e uma hora do seu tempo para pedir conselhos. Era Cecília Carranza, 26 anos mais nova.

"Acabei a conversa convidando-a para velejarmos juntos. Queria uma revanche para ganhar a medalha de ouro", conta. Se Cecília estava atrás de um parceiro, por que não ele? Um mês depois eles seriam campeões mundiais da Nacra e estavam classificados para o Rio.

Daniele Molineris / Red Bull Content Pool Daniele Molineris / Red Bull Content Pool

"A novidade é a dimensão máxima: voar"

A nova campanha veio em uma classe nova na vela olímpica, a Nacra 17, que é disputada em catamarãs que parecem voar: o casco inteiro fica acima da superfície da água, com apenas uma pequena parte (chamada de quilha) submersa.

"Me sinto privilegiado de competir num barco que voa sobre água, o que é algo muito novo no nosso esporte. Isso me motiva a aprender. Tem que ter muito olho para ver o vento, tem que ser inteligente, saber competir, estar bem preparado. As coisas básicas são exatamente iguais. A novidade é a dimensão máxima: voar".

Entre a formação da nova dupla e a medalha de ouro no Rio, porém, Lange passou pelo tratamento de um câncer, após descobrir um nódulo no pulmão. Um ano antes dos Jogos de 2016, entrou em uma sala de operações para a retirada completa de um pulmão, uma cirurgia considerada arriscada.

"Tive a sorte de ser educado como um atleta. Estamos treinados para a adversidade e, na vela, ainda mais, porque você não tem controle sobre a natureza. Estamos acostumados à mudança do vento. Isso me permitiu ver o câncer como uma realidade que eu tive que viver e eu fazer melhor possível para vencer. Além disso, eu tinha um sonho de chegar ao Rio bem preparado. Isso foi uma motivação incrível, que me impediu de ficar pensando que eu tinha um câncer", lembra o argentino.

Clive Mason/Getty Images Clive Mason/Getty Images

Ouro no Rio após confusão entre bandeiras

A Olimpíada do Rio já seria histórica para Lange independentemente do que acontecesse. Recuperado de um câncer, era o competidor mais velho dos Jogos, e entrou no Maracanã abraçado a dois dos quatro filhos, Yago e Klaus, que disputaram a classe 49er da vela. Na água, porém, ele ainda viveria um turbilhão de emoções.

Lange e Cecília chegaram com boa vantagem à regata da medalha, precisando de um quinto lugar para ficar com o ouro. Mas eles foram punidos logo na largada e caíram para a última posição. Aí Lange usou sua experiência. Enquanto todos os barcos foram para a direita, ele seguiu para a esquerda.

A estratégia deu certo, e os argentinos alcançaram o quinto lugar. Mas, por causa de uma ultrapassagem considerada irregular no contorno de uma boia, acabaram punidos. Precisaram fazer um giro em volta do próprio eixo e terminaram em sexto.

Cecília fez as contas. Como a Austrália havia vencido, eles ficariam com a prata. Estavam desanimados quando um repórter argentino, de barco, chegou perguntando sobre a emoção da medalha de ouro. Ué? Depois foram entender: ela tinha confundido as bandeiras, que são muito parecidas. A vitória na regata havia sido da Nova Zelândia, exatamente a combinação de resultados que faria dos argentinos campeões olímpicos.

Reprodução

Lange vai tentar repetir a façanha em Tóquio, desta vez sem a companhia dos filhos. Yago e Klaus até fizeram a corrida olímpica, mas acabaram derrotados pelos brasileiros Marco Grael e Gabriel Borges no Pan de Lima, que serviu como pré-olímpico.

O veterano reconhece que a situação não é comum.

Sempre me perguntei se o fato de eu competir tão velho gerava algo estranho neles. Por um ponto, obviamente, é muito bonito, mas poderia tirar o espaço que agora é deles, não meu. Mas sou fiel à minha paixão."

Em Tóquio, Lange encontrará Klaus, treinador do barco português da classe 49er. Yago deixou um pouco a vela de lado e está "enamorado do planeta", segundo o pai. "Para ele, o cuidado com o planeta, com os oceanos, é mais importante do que fazer esporte". Os outros dois filhos dele são artistas. Um estuda música em Barcelona. Outro produz arte em tecido.

O patriarca diz que nunca levou os filhos para a vela, porque não queria influenciá-los. Pretendia que cada um percorresse sua própria trajetória. Mas Silvestre e seus futuros netos terão tratamento diferente. "Com eles a educação vai ser diferente. Quero estar muito tempo no barco com meus netos", diz Lange.

Para isso, está para sair do estaleiro o terceiro barco que ele, que é também arquiteto naval, constrói desde 2013. Os dois primeiros acabaram vendidos, mas esse vai ficar na família. "O barco vai ter o nome do meu neto, Silvestre. Sonho em poder estar muitas horas com ele pescando, navegando pelo Delta de Buenos Aires. Disse ao estaleiro que tem que ficar pronto depois da Olimpíada. Se ganhar medalha, o barco será um prêmio. Se não, uma distração."

Daniele Molineris / Red Bull Content Pool Daniele Molineris / Red Bull Content Pool

+ Especiais

Keiny Andrade/UOL

Minha história - Daiane: "Fui campeã mundial e fui a três Olimpíadas. Fiz o que pude".

Ler mais
Marcus Steinmyer/UOL

Conexão Tóquio: filha de ex-craque do São Paulo, Thaíssa aprendeu a correr e fazer contas no Japão.

Ler mais
Caio Guatelli/UOL

Cocuzzi: o ciclista que mora no orfanato criado pelos pais quer levar 50 irmãos para Tóquio-2020.

Ler mais
J. Franca/Folhapress

A um mês das Olimpíadas, UOL relembra Pan de 75, marcado por epidemia e negacionismo do governo.

Ler mais
Topo