Mudança de hábito

Treinador do pentacampeão brasileiro Osasco faz Quênia sonhar com zebra histórica no vôlei olímpico

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

Quando você pensa em Quênia na Olimpíada, a primeira imagem é de um corredor. Afinal, das 103 medalhas conquistadas pelo país, 96 vieram do atletismo. As outras sete, do boxe. Em Tóquio, a delegação queniana vai contar também com um time de vôlei. E treinado por um brasileiro.

O pernambucano Luizomar de Moura, 55 anos, é figurinha conhecida do vôlei brasileiro. Técnico e gestor da equipe de Osasco desde 2006, ele se mistura com a história recente de um dos clubes mais tradicionais do país, cinco vezes campeão da Superliga. No mês passado, ele e quatro colegas de comissão técnica do Osasco colocaram o máximo de material de treinamento que cabia na bagagem e arrumaram as malas para uma missão única: treinar o time feminino do Quênia na Olimpíada de Tóquio.

"Outro dia eu mostrei um jogo do Osasco no nosso ginásio, que fica lotado. Mostro como é o treino das nossas meninas. Elas ficam impressionadas. É outro mundo", admite Luizomar, que, no Quênia, treina um time semi-amador, em que nem todas as jogadoras vivem somente de jogar vôlei. Várias têm outras profissões.

Ao UOL Esporte, de Nairobi, Luizomar contou como está sendo a experiência na África. Falou da meta de ganhar um set em Tóquio, do sonho de um dia treinar a seleção brasileira e do susto causado pela covid, que o levou à UTI no início do ano.

Arquivo pessoal
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Equipamento de treino em falta na África

O convite para dirigir o Quênia veio de forma inesperada, a partir da Federação Internacional de Vôlei (FIVB), que decidiu investir no desenvolvimento da modalidade na África. O Quênia até tem tradição regional. É o maior campeão africano e finalista de quase todos os campeonatos continentais, mas está longe das potências mundiais. Nas duas Olimpíadas que disputou (2000 e 2004), só ganhou dois sets.

"O principal objetivo é primeiro deixar um legado aqui. Mostrar para os profissionais e atletas como se trabalha hoje pelo mundo. E a escola do vôlei brasileiro é uma escola de muito trabalho, os treinadores brasileiros gostam de trabalhar bastante. Conversando com a federação, com o Comitê Olímpico Queniano e com a FIVB, traçamos estratégias para entregar ao Quênia o que a maioria das seleções está tendo", relata.

A ideia inicial era que a seleção queniana viesse ao Brasil para fazer a preparação, mas os planos foram abortados pelo Ministério da Saúde do Quênia, que vetou a viagem a um país que não controlou a pandemia. Restou à comissão técnica brasileira ir a Nairobi e fazer a preparação lá mesmo.

O ginásio tinha um piso de madeira que escorregava, mas conseguimos trocar. Com a frustração de não ir ao Brasil, eu trouxe alguns materiais, placa de bloqueio, bolas pesadas para levantamento. Meu fisioterapeuta fez uma mala de estrutura para que a gente pudesse mostrar o quanto é necessário uma boa preparação. Estamos numa missão que não é só esportiva."

Luizomar de Moura, técnico do Quênia.

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"Ganhar um setzinho, quem sabe?"

Em busca do sonho olímpico, Luizomar aceitou, no início de 2017, o convite para treinar o Peru. Mas a experiência na seleção peruana, onde o vôlei feminino é esporte nacional, acabou sendo de apenas uma temporada, em meio a disputas políticas na federação local. Sob seu comando, o Peru disputou a segunda divisão do Grand Prix, mas ficou em um modesto nono lugar.

De acordo com o treinador, o objetivo agora com o Quênia é subir no ranking mundial para ao menos conseguir jogar a Liga das Nações, que substitui o Grand Prix. "É utopia imaginar que em tão pouco tempo vamos conseguir fazer com o Quênia o que o Brasil fez com a Geração de Prata", afirma ele sobre o time de vôlei que deu a primeira medalha olímpica ao Brasil nos anos 80.

Curiosamente, o Quênia está no mesmo grupo olímpico que o Brasil, de José Roberto Guimarães, e da República Dominicana, do técnico Marcos Kwiek, também brasileiro. Coreia do Sul, Sérvia e Japão completam a chave.

"Vencer um set vai ser maravilhoso. Dois, será como ganhar uma medalha de ouro. Vou torcer para que nossos adversários pensem na nossa equipe como aquela que não dá medo e, de repente, entre meio relaxado, e a gente consiga ganhar um setzinho. Quem sabe?"

Comparação de forças no Grupo A de Tóquio-2020

  • Brasil

    Bicampeão olímpico em 2008 e 2012, soma 45 vitórias nos Jogos.

  • Japão

    Cinco ouros e cinco pratas entre Mundiais e Olimpíadas.

  • Sérvia

    Atual campeã mundial e vice olímpica na Rio-2016.

  • Coreia do Sul

    Venceu Brasil em Londres-2012, quando foi quarta colocada.

  • República Dominicana

    Ouro no Pan de Lima-2019 e quinta colocada no Mundial de 2014.

  • Quênia

    Jogou 36 jogos entre Mundiais e Olimpíadas e só venceu um.

Tandara puxando peso impressionou quenianas

Antes ainda de ir ao Quênia, Luizomar procurou informações pela internet. Descobriu que o país tem uma liga amadora, em que boa parte dos jogos é disputada em quadras abertas, algo impensável no Brasil. Naturalmente, o nível técnico também fica longe do que ele está acostumado a trabalhar em Osasco, que talvez seja a cidade do mundo que mais forma jogadoras de vôlei de alto nível.

"São jogadoras com potencial bastante interessante. Uma das coisas que a gente identificou é que a parte física tem muito a ver com a escola do atletismo, que é uma coisa que não se usa no vôlei. Elas correm muito. Aguentam treinar três horas, mas quando coloca intensidade, elas sofrem muito", conta o treinador.

Como exemplo para as africanas, ele mostrou um vídeo de Tandara levantando peso. As jogadoras se impressionaram. A adoção de uma rotina de musculação já deixou as quenianas menos distantes da mais forte das brasileiras. "Elas sentiram muito no começo, mas estão evoluindo bastante. Pegavam muito pouco peso, mas estão melhorando."

Um dos objetivos do treinador é que, em Tóquio, as quenianas mostrem bola para conseguirem trabalho como jogadoras de vôlei no exterior, inclusive no Brasil. Segundo Luizomar, algumas delas caberiam em clubes de menor orçamento da Superliga. Por isso, ele já sugeriu o nome delas a outros treinadores.

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Antes da viagem, Luizomar ficou na UTI com covid

Pernambucano, Luizomar viu entre os quenianos a mesma alegria que aponta como característica dos nordestinos.

É um povo que tem dificuldades, mas um povo trabalhador e muito organizado em relação à pandemia. [Vejo] Poucas pessoas sem máscara nas ruas, muito menos do que no Brasil. Todo lugar tem álcool gel. Na nossa bolha a gente testa a cada quatro dias. Me surpreendi positivamente."

A pandemia afetou diretamente o treinador. Antes de viajar ao Quênia, Luizomar (e outras 12 pessoas da equipe do Osasco) pegou covid. Ele estava praticamente assintomático até a véspera da final da Libertadores de futebol, entre Santos e Palmeiras, data que ele lembra bem por ser palmeirense.

Após o jogo, foi até o banheiro e tossiu. "Minha esposa ligou para minha sobrinha, que é médica, e pediu para colocar o oxímetro. Estava 89 de saturação, e ela disse para eu ir ao hospital, por precaução. Fomos ao hospital, fiz uma tomografia, e o médico já disse que eu estava com pneumonia, então ia passar a noite no hospital, ainda que eu não estivesse sentindo nada. Cheguei por volta das 20h, 21h. Quando foi 1h a enfermeira disse que que eu ia estragar o plantão dela".

Luizomar estava com 39,5 graus de febre e 50% do pulmão comprometido. No caminho para a UTI, avisou a esposa para que dissesse às jogadoras do Osasco que estava bem, mas não iria ao treino da segunda-feira seguinte. Acabou ficando nove dias na UTI, sem precisar sem intubado. Perdeu 11 quilos. Aqueles dias ganharam outra perspectiva depois de tudo pelo que passou Renan Dal Zotto, técnico da seleção brasileira e seu amigo.

"Falei com ele antes de ele ir para o hospital e falei para ele tomar cuidado, que o meu tinha começado com pneumonia. A gente ficou em oração. Vi esses dias a reportagem sobre ele e fiquei emocionado, porque quando o Renan dirigiu o São Caetano, eu estava começando carreira de treinador. Foi quando a gente se aproximou", conta.

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Técnico pretende um dia comandar o Brasil

Luizomar de Moura foi um jogador mediano, mas é um técnico vitorioso. Ganhou três vezes a Superliga Feminina, sendo uma com o Flamengo, duas décadas atrás, e outras duas com o Osasco. Foi campeão mundial de clubes, com a equipe paulista, juvenil e infanto-juvenil, com a seleção brasileira. Mas até agora, depois de mais de 20 anos na elite do vôlei brasileiro, nunca foi a uma Olimpíada.

Não é segredo que o vôlei brasileiro tem panelas que não se misturam, vide a relação (ou falta dela) entre os campeões olímpicos José Roberto Guimarães e Bernardinho. Luizomar agradece qualquer comparação com os dois "monstros", como ele os define, mas o fato é que também não se mistura com os dois.

Ele foi assistente da seleção feminina entre 2001 e 2002, de Marco Aurélio Motta, na transição entre a "era Bernardinho" e a "era Zé Roberto". Depois, passou a comandar as seleções de base, na expectativa de ser promovido quando surgisse uma oportunidade, que nunca veio. Após 12 anos de espera, saiu em 2015.

"É um sonho, que em alguns momentos já esteve perto. Eu me incluo na categoria de treinadores que teriam condição de dirigir uma seleção brasileira, mas a longevidade desses treinadores com grandes resultados faz com que a gente tenha os nossos objetivos e eu foquei na categoria de base como o meu projeto olímpico. Fiz aquilo com muito amor, muita dedicação", conta.

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