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A 30 dias dos Jogos de Tóquio, UOL relembra Pan de 75, marcado por epidemia e negacionismo do governo federal

Demétrio Vecchioli e Thiago Braga Colaboração para o UOL, em São Paulo J. Franca/Folhapress

Ouro e recorde mundial após uma epidemia

No dia 15 de outubro de 1975, João Carlos de Oliveira foi rebatizado. A partir daquele dia, seria o João do Pulo. Trajado com uma regata amarela, número 42 às costas, e shorts azuis, o paulista de 21 anos saltou 17,89 metros, ganhou o ouro nos Jogos Pan-Americanos, seu segundo naquele evento na Cidade do México, e registrou o recorde mundial no salto triplo. Aquele pulo era mais de meio metro melhor que o antigo recorde.

Nesta quarta-feira (23), no dia em que chegamos à marca de 30 dias para a abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, contamos como essa história poderia ter sido diferente. O Pan de 1975 estava marcado para a cidade de São Paulo, mas acabou levado ao México, segundo a versão oficial, por causa de uma epidemia de meningite que começou no bairro de Santo Amaro, na zona sul da capital paulista, e se espalhou pelo país. É a mesma justificativa que levou a Argentina a desistir de realizar a Copa América, no mês passado —o torneio está sendo disputado agora, no Brasil, apesar da situação difícil no combate à pandemia por aqui.

Nos anos 70, o regime militar tentou esconder o agravamento da epidemia de meningite, como mostram documentos e recortes de jornal obtidos pelo UOL Esporte, e demorou a viabilizar a vacinação da população. O Pan de 75 em São Paulo, mesmo nunca tendo acontecido, deixou marcas na estrutura esportiva da maior cidade do país.

J. Franca/Folhapress

Militares censuraram notícias sobre epidemia

O Pan de 1975 parecia fadado ao fracasso e foi uma dor de cabeça para a Odepa (Organização Desportiva Pan-Americana) desde o início. A sede saiu do Chile em setembro de 1973, quando Augusto Pinochet tomou o poder e instalou uma ditadura no país. Depois de uma negativa de Porto Rico, o Brasil apareceu como alternativa. Antes mesmo do fim de 1973, aproveitando a estrutura construída para o Pan de dez anos antes, São Paulo ganhou o direito de sediar o torneio mais uma vez.

A essa altura, porém, a meningite já era um problema real, ainda que abafado, como mostra a "Folha de S.Paulo". O regime militar tratou a questão como se fosse de segurança nacional. Sob censura desde 1970, a imprensa foi impedida de noticiar o avanço da doença, que matava cerca de 14% dos infectados.

A censura ficou registrada em documentos do Arquivo Nacional. Em um deles, um radiograma revelado pelo historiador Lucas Pedretti e datado de 30 de julho 1974, mostra o então diretor da Polícia Federal, Moacyr Coelho, proibindo a divulgação de "dados numéricos e gráficos sobre meningite".

Reprodução Reprodução

A fim de evitar dúvidas e interpretações, reitero os termos do RD 098/SIGAB, no sentido de manter proibida a divulgação de dados numéricos, gráficos e estatísticos sobre meningite, bem como notícias sobre quantidades de vacinas importadas. Fica igualmente proibida divulgação de matéria sensacionalista ou explorações tendenciosas, através da imprensa, de assunto relativo a meningite

Coronel Moacyr Coelho, diretor da Polícia Federal

Reprodução

Ministro da saúde negou existência de epidemia

Em 30 de setembro de 1972, Mário Machado de Lemos, o ministro da Saúde, disse ao "Globo" que não havia epidemia de meningite no país: "Sempre há um número maior ou menor de casos permanentemente".

"Se a gente imaginar que foram duas décadas de regime, com nuances e diferentes momentos, a gente tem dimensão do quão grave é a experiência histórica e o legado da ditadura brasileira", afirma o historiador Lucas Pedretti.

A jornalista e pesquisadora Catarina Schneider, autora de uma dissertação de mestrado sobre o assunto, afirma que o negacionismo atrapalhou o combate da epidemia. "O silêncio provavelmente impediu que ações rápidas e adequadas fossem adotadas, evitando que a doença se alastrasse e chegasse a tomar grandes proporções, como aconteceu. A negação da doença perdurou até 1974."

Epidemia estava controlada quando Pan foi cancelado

Quando o Pan foi atribuído a São Paulo, a epidemia de meningite já afetava os brasileiros havia quase dois anos. Ainda assim, a doença acabou sendo a justificativa para que o país voltasse atrás e desistisse de receber o torneio.

Três dias antes de a Odepa anunciar o cancelamento do Pan em São Paulo, em outubro de 1974, a "Folha" trazia na capa a promessa do regime militar de que, a partir de janeiro do ano seguinte, 19 milhões de doses de vacina estariam disponíveis para serem aplicadas na população paulistana.

No dia do cancelamento, o jornal informava que "apenas quatro pessoas" haviam morrido de meningite na véspera, mas que o instituto Butantan tinha menos de 275 mil doses de vacina. "Estamos vivendo um momento epidemiológico em São Paulo, não sabendo ainda determinar um prazo de declínio definitivo para a epidemia. Por isso, vemos o cancelamento destes Jogos como uma medida salutar", afirmou à "Folha" o então secretário de Saúde do Estado, Getúlio Lima Júnior.

Embora a epidemia seja o fator central para o cancelamento, outra versão dá conta que a meningite não foi a única causa para que a competição fosse transferida para o México.

Meningite foi desculpa do governo, diz advogado

O advogado Alberto Murray Neto, neto de Sylvio de Magalhães Padilha, então presidente do COB (Comitê Olímpico Brasileiro), afirma que a epidemia serviu como um pretexto para os militares cancelarem os Jogos.

"O pico da epidemia havia sido em 1974. A pá de cal foi o Ney Braga [ministro da Educação] avisar ao meu avô que o governo não iria colocar mais nenhum centavo para a organização do Pan. O governo militar não queria que falassem que era falta de dinheiro. A meningite serviu como desculpa para o governo", afirma ele.

O jornalista Edgar Alves, colunista da "Folha", cobria os eventos na época e corrobora a versão de Murray. "O Padilha tinha uma relação muito próxima com a Odepa. Em 1974, houve as campanhas políticas. A ditadura gastou mais do que estava previsto nas eleições para derrotar a oposição e, na hora de investir no Pan, preferiu recuar."

Catarina Schneider, que fez sua dissertação de mestrado na UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) sobre a cobertura dos jornais "O Globo e "Folha" durante a epidemia, acredita que a decisão foi acertada. "A epidemia começou em 1972, teve seu auge em 1974 e começou a queda em 1975, quando iniciou a vacinação. Mas ainda existia a doença neste ano, apesar do declínio. Diante disso, acredito que foi prudente cancelar o Pan-Americano no local que foi o ponto central da doença. O evento atrairia muitas pessoas e iria no sentido contrário do que se espera para controlar uma epidemia".

Vacinação encerrou epidemia, mas doença persiste

A meningite é um processo inflamatório das meninges, membranas que envolvem o cérebro e a medula espinhal, e pode ser causada por vírus e bactérias. Até o início dos anos 70, o Brasil já tinha passado por dois surtos da doença, em 1923 e em 1945. Acreditava-se que a doença estava sob controle.

A epidemia de 1971 a 1976 acabou sendo a mais letal de todas. A explicação está na soma de dois subtipos de meningite que assolaram o Brasil: o tipo C, que teve início em abril de 1971, e a meningite tipo A, que estourou em maio de 1974.

Por conta da campanha de desinformação do governo, não é possível saber ao certo os números da epidemia, mas estimativas dão conta de que só em São Paulo, em 1974, pelo menos 2.500 pessoas morreram da doença.

Hoje a meningite é considerada uma doença endêmica no Brasil, com ocorrência eventual ao longo do tempo. As mais comuns são as meningites bacterianas no inverno, e as virais no verão. A vacinação é a principal arma no combate da doença.

Estádio de atletismo ganhou o nome do arquiteto Ícaro de Castro Mello e foi inaugurado em 1974

Mesmo sem Pan, São Paulo ganhou obras

O Pan ainda ia à sua sétima edição em 1975, e São Paulo esperava recebê-lo pela segunda vez, depois do bem-sucedido Pan de 1963, cujo palco principal foi o Pacaembu. O sucesso foi tanto que a cidade seguiu tirando do papel o projeto do arquiteto Ícaro de Castro Mello, no Ibirapuera e na Cidade Universitária.

Usada como Vila Pan-Americana em 1963, a USP ganhou em 1970 a maior parte do que é hoje o Centro de Práticas Esportivas da USP, vizinho ao conjunto residencial universitário que serviu como alojamento de mais de 4 mil atletas.

As obras envolviam prefeitura, Estado e Ministério da Educação, que investiriam cerca de 50 milhões de cruzeiros (equivalentes a R$ 50 milhões atualmente). Já pensando na sétima edição do Pan, a USP ganhou seu conjunto aquático e começou a construir o prédio que hoje abriga a Escola de Educação Física. Era lá que deveria ser o centro administrativo do Pan.

Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Velódromo da USP virou palco de festas e morte

Quase meio século depois do Pan que nunca aconteceu, São Paulo discute o que fazer com as estruturas que, naquele início da década de 1970, pareciam a chave para fazer da capital paulista uma cidade poliesportiva e que só ficariam prontas depois do Pan já estar cancelado.

Na USP, o ginásio poliesportivo projetado por Ícaro de Castro Mello nunca saiu da planta. No seu lugar, por causa do Pan, foi erguido um velódromo com medidas maiores que as oficiais. Desde os anos 1990 o local não recebe treinamentos ou competições. Por muito tempo, foi palco para festas universitárias, mas já nem mais isso. Em 2014 um estudante morreu afogado na raia depois de uma balada no velódromo. As festas foram proibidas no local.

Hoje é só uma carcaça, como a arquibancada do Estádio Armando de Salles Oliveira, que não recebe eventos oficiais desde a final da Copa São Paulo de 1988. De forma geral, a USP recebeu equipamentos, mas não dinheiro para mantê-los, e eles acabaram ruindo.

No Ibirapuera o sonho durou mais tempo. Os arquitetos enviados a São Paulo pelos militares planejaram duas obras para o Pan: a adequação do conjunto aquático, com piscina olímpica e tanque de saltos, e o ginásio Mauro Pinheiro, anexo ao Estádio Ícaro de Castro Mello, que só ficou pronto nos anos 80.

Hoje, todo o complexo poliesportivo do Ibirapuera passa por um projeto de privatização, apresentado pelo governador João Doria no ano passado. Os planos preveem que ginásio e piscinas serão demolidos.

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