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Independência: Ela liderou exército feminino que deu surra nos portugueses

Retrato falado de Maria Felipa feito em 2005 com base em relatos históricos pela perita técnica Filomena Orge - Wikimedia Commons
Retrato falado de Maria Felipa feito em 2005 com base em relatos históricos pela perita técnica Filomena Orge Imagem: Wikimedia Commons

De Ecoa, em São Paulo

07/09/2022 06h00

Em 1822, a província da Bahia estava em guerra. Em contraste com o mito de uma Independência pacífica e sem participação do povo, tropas portuguesas e o Exército Pacificador - ligado a D. Pedro I -, somado a pelotões de voluntários e grupos populares livres, se enfrentaram nas ruas de Salvador e nas vilas do Recôncavo.

Entre as duas localidades, a ilha de Itaparica (então chamada de Arraial da Ponta das Baleias) se tornou um ponto estratégico para os brasileiros que lutavam contra o domínio português.

Conta-se que na travessia entre a ilha e o continente, pelo rio Paraguaçu, a líder estrategista Maria Felipa de Oliveira era vista descendo de barco com suas companheiras. Armadas com peixeiras, elas vigiavam e levavam suprimentos para os batalhões em defesa da Independência.

Maria Felipa é tida como uma das figuras de destaque na defesa de Itaparica e representa o protagonismo feminino, negro e popular nas lutas pela Independência nacional, por muito tempo ocultado da história.

Além de usar seu conhecimento sobre as águas e matas da região para abastecer os que também lutavam contra Portugal, ela teria organizado as trincheiras na ilha e comandado o incêndio de navios portugueses.

Felipa é descrita como a líder de um grupo de mulheres chamadas de vedetas. Em um outro episódio que ganhou notoriedade, elas aplicaram uma surra de cansanção - uma planta urticante que produz queimaduras dolorosas - nos soldados portugueses.

'Muitas outras Marias Felipas existiram'

Enquanto a historiografia oficial da Independência privilegiou o heroísmo de D. Pedro I e a atuação das elites do Rio de Janeiro, histórias como a de Maria Felipa sobreviveram através da memória popular.

A documentação que permitiria confirmar dados biográficos da baiana é escassa. Segundo Carlos da Silva Jr., professor de história da Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade Federal da Bahia, há basicamente dois autores que servem como "fiadores" da narrativa de Maria Felipa: Xavier Marques, com seu livro "O Sargento Pedro", e Ubaldo Osório Pimentel, ambos escritores itapariquenses.

O que dizem esses registros e de outros pesquisadores que vieram depois é que Maria Felipa nasceu por volta de 1799 numa família de escravizados, conquistou a liberdade e ganhava a vida como pescadora e marisqueira em Itaparica. É descrita como uma mulher negra alta e forte que jogava capoeira e era do candomblé.

Depois de seus feitos na guerra de independência da Bahia, encerrada em 2 de julho de 1823 com a derrota e retirada dos portugueses, ela continuou vivendo na ilha até morrer em 1873, com mais de 70 anos. Por seus feitos, é considerada como uma heroína da Independência.

"Ainda há muita disputa a respeito da existência de Maria Felipa. Independente disso, ela é importante do ponto de vista político porque representa a luta de mulheres negras que se organizaram de formas muito variadas - pegando em armas mas também auxiliando as tropas, passando informações - e participaram ativamente do processo de Independência", disse Carlos da Silva Jr. a Ecoa. "Com certeza muitas outras Marias Felipas existiram e lutaram durante a Independência do Brasil."

Busca por cidadania motivou participação popular

Na construção de uma memória oficial sobre a Independência, foram deixadas de lado lutas que ocorreram longe da Corte, na Bahia mas também no Piauí, Maranhão e Pará, e que se estenderam até 1824.

Também ficou de fora dessa versão a participação de mulheres, pessoas negras e indígenas, grupos que, segundo o professor Carlos da Silva Jr., tinham um projeto de liberdade e cidadania mais ampla que não se concretizou. Ele lembra que a sociedade da época era escravista, altamente hierarquizada, e pessoas desses grupos tinham direitos muito restritos.

quadro 7 de janeiro - Reprodução/Instagram/@instaparica - Reprodução/Instagram/@instaparica
Excerto do quadro 'Alegoria ao 7 de janeiro de 1823', de Mike Sam Chagas. Maria Felipa está representada segunrando uma tocha
Imagem: Reprodução/Instagram/@instaparica

"Há um projeto político de liberdade e de busca por cidadania [por parte desses grupos] que não se concretiza porque a constituição que se segue à Independência não garante direitos a certa parcela da população, pensando nos africanos, e a outros grupos oferece uma cidadania bastante limitada", disse o professor, que também é membro da Rede de Historiadoras e Historiadores Negros e coautor da coluna Presença Histórica no UOL.

Nas últimas décadas, essa pluralidade de atores que lutaram pela Independência tem ganhado mais visibilidade através dos trabalhos de historiadores.

Em 2022, no bicentenário da Independência, Silva Jr. enxerga uma disputa em torno da memória desse momento histórico e do estado atual na sociedade de grupos que participaram dele sem o devido reconhecimento.

"A gente tem um espaço profícuo pra uma reflexão crítica sobre o significado da Independência, em que houve um rompimento com Portugal, mas sem que efetivamente os grupos que compunham o Brasil de 1822 começassem a partilhar a cidadania", disse.