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"Acho que todo mundo hoje está vivendo seus lutos", diz cantora Letrux

A cantora Letrux - Ana Alexandrino/Divulgação
A cantora Letrux Imagem: Ana Alexandrino/Divulgação

Kamille Viola

Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro

19/04/2020 04h00

"Eu lancei meu disco pro mundo no dia em que o mundo fechou."

"Aos Prantos", o segundo álbum solo da cantora carioca Letícia Novaes, a Letrux, saiu em 13 de março, quando o governador do Rio, onde ela vive, anunciou as primeiras medidas de isolamento frente ao novo coronavírus no estado — que, com o passar do tempo, se intensificariam. "Acho que todo mundo está vivendo pequenos lutos: de projetos, sonhos", reflete.

O nome do álbum veio a casar com um momento global. "Acho que a situação atual é o reflexo do mundo", diz ela. "Tenho ouvido: 'Letícia, sei que você deve estar triste, mas que bom que você lançou esse disco, porque ele é o meu melhor amigo da quarentena'. Então, se a minha música foi trilha sonora desse momento, não foi o ideal, mas eu acho até bonito."

Há um mês, a cantora que viu seu público crescer exponencialmente desde "Letrux em Noite de Climão" (2017) foi para a região serrana do Rio. De lá, cria alternativas para divulgar o novo álbum e também busca estar próxima, ainda que nem sempre fisicamente, de quem gosta. Já gravou um clipe, ao lado de pessoas com quem está em confinamento, para a música "Eu Estou aos Prantos", e se prepara para se apresentar em uma live. "Existe uma velocidade das redes que não deixa a gente a ficar totalmente isolado. E talvez isso ajude a gente a se manter são. Porque eu não posso ver nem abraçar minha melhor amiga, mas posso falar com ela, o que já é um alívio emocional muito grande", acredita.

Sobre o mundo pós-pandemia, Letrux prefere não fazer conjecturas, mas crê que discursos de diversidade que ganharam mais palco nos últimos anos, inclusive em seu trabalho, não vão arrefecer. "Acho que há muita gente nesse período unindo forças."

A cantora conversou com Ecoa sobre como vem encarando os tempos de pandemia, o que faz para encontrar equilíbrio e como enxerga o cenário que nos trouxe até aqui.

Tem muita gente falando que não vamos sair dessa os mesmos. Talvez ainda seja cedo, mas você sente essa mudança em si, ou tem algum palpite sobre de que forma isso pode acontecer coletivamente?

Eu estava vendo [o seriado] "Downton Abbey" — nunca vi na minha vida, aí agora eu tenho tempo e estou assistindo (risos). E tem um pedaço que fala da Primeira Guerra Mundial. E é uma época de cartas, mas chegou telefone na casa. O que acontece é que a gente está isolado, mas existe uma velocidade do celular, das redes que não deixam a gente a ficar totalmente isolado. Acho que sairemos, sem dúvida, diferentes dessa situação. A gente vai ter apreço por outras coisas. Mas ainda estamos conectados. Você fala com a sua mãe por vídeo. Então acho que é cedo para dizer o que vai ser diferente, mas claro que todo mundo está sendo afetado — outro dia, o número de mortes total era 200, e só no dia de ontem morreram 200. Só que a gente não está totalmente isolado, então existe também algo aí que vai nos manter mais próximos. E talvez isso seja muito bom, talvez a gente se mantenha são, porque, poxa, eu posso falar com a minha melhor amiga quando eu quiser. Eu não posso vê-la nem abraçá-la, mas posso falar com ela. E isso já é um alívio emocional muito grande.

Letrux em foto de seu novo trabalho - Ana Alexandrino/Divulgação - Ana Alexandrino/Divulgação
Letrux em foto de seu novo trabalho
Imagem: Ana Alexandrino/Divulgação

A gente viu a evolução de um debate sobre inclusão e pluralidade nos últimos anos. Teme que a pandemia altere esses caminhos?

Não acho que após a pandemia esse debate vá sumir ou diminuir. Inclusive acho que muita gente deve estar agora, em casa, estudando. Quero acreditar. Estudando estratégias, lendo muito sobre o assunto, vendo documentários, unindo forças, alguns coletivos — sei de pessoas que não estão parando.

A força da pandemia é fatal, mas não é uma força que aniquila um discurso.

O disco se chama "Aos Prantos", e a gente está vivendo um período em que o mundo inteiro está descontrolado, triste. Parece que alguns artistas que lançaram álbuns por essa época acabaram, de alguma maneira, antecipando o momento...

Acho que essa situação é o reflexo de um mundo. O mundo inteiro está com governantes de extrema direita, não é uma coisa só aqui. Não que a culpa do vírus seja deles, mas você vê nítidas diferenças na forma como reagem a isso. A responsabilidade do vírus não é do Bolsonaro, mas a culpa dessa circunstância em que a gente se encontra é dele. Você vê [a diferença de] um país como a Nova Zelândia, com uma primeira-ministra preocupada com a população... Olha, eu me encontro incrédula.

Quando seu disco saiu, a coisa começou a ficar séria.

Eu já estava sentido uma seriedade, porque eu estava pegando muito avião, fazendo muito trabalho em São Paulo com o Acorda Amor [projeto que tem ao lado de Liniker, Luedji Luna, Xenia França e Maria Gadú]. Ficava me perguntando: "Isso vai piorar?". Ia acompanhando as notícias, mas com alguma dose de otimismo — ou também de falta de informação, porque a mídia, ou o próprio governo, não sei, não nos informaram direito. Então ficava uma especulação, mas com otimismo, porque eu sou uma pessoa mais "copo cheio". Então o disco saiu, eu cheguei a ir à praia nesse dia para agradecer, e quando voltei já tinha o decreto do [Wilson] Witzel [PSC, governador do RJ] dizendo que estava tudo fechado. E aí eu e minha produtora literalmente rasgamos uma agenda de um semestre.

Letrux gravou um clipe para "Eu Estou aos Prantos" na quarentena - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Letrux gravou um clipe para a música "Eu Estou aos Prantos" durante o isolamento
Imagem: Arquivo Pessoal
Acho que eu fiquei com uma energia de lançamento muito forte no corpo. Eu estava ensaiando, fazendo aula de voz, eu queria começar o disco cantando uma ópera. Então eu estava ensaiando Maria Callas. E aí a frustração disso não acontecer me gerou uma coisa esquisita, uma melancolia que eu geralmente não deixo encostar. Eu estava com tanta energia do que não rolou que eu precisei fazer exercício físico, cozinhar...

Sou contra essa coisa de: 'Na quarentena, você tem que fazer um pão, você tem que...'. Você não 'tem que' nada.

Como está sendo a sua quarentena, você ensaia?

Tem piano na casa onde estou, e aí aproveitei para estudar. O Thiago [Vivas, músico e companheiro da cantora] está me ensinando as minhas músicas no piano. Acho que uma hora a gente vai fazer uma live, as pessoas têm pedido muito isso, mas ainda é cedo, sabe? Eu não sendo instrumentista. Sou muito caprichosa com meu trabalho. Eu até gosto do rascunho, do feio, do tombo, do tropeço, do equívoco, do avesso. Eu curto essas alegorias. Mas uma estreia de um trabalho, e agora vai ser uma live? As pessoas estão muito ansiosas, mas eu não estou.

Não é o ideal, mas nada agora é o ideal. É tudo da forma possível.

Existem momentos produtivos e existem momentos de bode. Uma vez eu li um texto dizendo que situações extremas não mudam totalmente o caráter de uma pessoa. Se você é uma pessoa rabugenta e ganha na Mega Sena, continua uma pessoa rabugenta, só que milionária. E se você é uma pessoa muito positiva e sofre um acidente e fica paraplégica, claro, vai passar por um processo de tristeza e incompreensão, mas é possível que você continue uma pessoa otimista. Acho que a quarentena funciona assim. Eu tinha uma vida de dias de muita produção e dias mais de ócio. Acho que quem era um frito continua uma pessoa frita dentro de casa.

A cadeia produtiva da música, principalmente pequenos e médios artistas, está sendo muito afetada pela pandemia.

Super. Já colaborei com muitas pessoas à minha volta. Porque no momento me encontro em um lugar OK, não está entrando nada, mas consigo sobreviver — não sei até quando. E a gente fala muito sobre colaborar uns com os outros dentro de uma pequena rede. Eu não sei como vai ser. Claro, essa ajuda de R$ 600 do governo é imprescindível, então que bom que ela vai existir, mas muita coisa vai mudar, acho que a vida vai mudar como um todo. Eu sempre falo para os meus amigos e conhecidos: 'Não tenha vergonha de pedir socorro, porque está todo mundo nessa.' Sinto que as pessoas estão atentas e colaborando.

Você fala bastante de espiritualidade. O que tem procurado para se equilibrar?

Eu sempre estive alinhada com isso, então continuo. Fico lendo textos de astrólogos e astrólogas que sigo, meu pai tem um grupo no WhatsApp do centro espírita dele, minha mãe também sempre manda uma mensagem da galera lá do reiki, da cura magnificada dela. Outro dia uma menina se ofereceu para benzer pessoas à distância, eu botei meu nome, deitei na cama, senti. Eu juro que eu deitei e falei: "Gente, eu estou sendo benzida." Continuo sendo essa pessoa interessada nessas coisas místicas.

Se pudesse dar um conselho para as pessoas agora, o que seria?

É aquilo que eu falei: ninguém muda em situações extremas. Eu concordo muito com isso. É que nem análise: quando você faz, é para trabalhar melhor os seus defeitos e tentar manter as suas qualidades. Acho que é um momento para você se perceber mais.

É sempre tempo, mas já que estamos em um isolamento, acho que é mais tempo ainda para você se investigar mais, e saber onde dói, onde aperta, onde você manda bem.

Outro dia brinquei que seu disco era a trilha sonora da pandemia...

Vai ser uma lembrança. Mas tudo bem, não acho que seja ruim. Sempre tive umas piras muito fortes, multidimensionais, de o planeta ser um organismo. Então se foi isso mesmo que aconteceu, e se a minha música foi trilha sonora desse momento, não foi o ideal, claro, o ideal era outra coisa. Mas não fico triste, acho até bonito. As pessoas têm me escrito coisas em agradecimento, do tipo: "Letícia, que bom que lançou esse disco. Sei que você deve estar triste, mas que bom que você lançou esse disco, porque ele é o meu melhor amigo da quarentena." Então, cara, como você fica triste ouvindo uma coisa dessas?