Eu reciclo, tu reciclas

Quantidade de lixo gerada anualmente assusta; como podemos transformar esse incômodo em ações práticas?

Juliana Vaz Colaboração para Ecoa, de São Paulo Arte/UOL

Estamos cercados por plástico. Do canudo à sacolinha do supermercado, repare: a embalagem da maioria dos produtos e alimentos que compramos é feita de algum tipo de polímero.

Embora "reciclagem" seja a primeira resposta que vem à mente para esse aspecto do consumo, colocar o conceito em prática pode ser um problema. Para começar, nem todas as cidades e bairros do Brasil têm coleta seletiva porta a porta ou uma organização consolidada de catadores. "Como aqui não tem coleta de recicláveis, todo mundo mistura o lixo [orgânico com o reciclável]. Quando tem latinhas e garrafas PET, daí separo em um saco plástico porque os catadores recolhem direto da lixeira", relata Maria Eunice Andrade Cavalcante, dona de casa de Arcoverde, Pernambuco.

"A visão de que basta ter lixeiras coloridas e, pronto, 'tá resolvido' não mudou muito [desde a criação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010]. Porque, depois de recolhido, para onde vai esse lixo? Ele realmente é reciclado? Há diversas falhas nessa logística. Tudo pode acabar sendo misturado, inviabilizando a reciclagem, por exemplo", disse a Ecoa a presidente do Instituto GEA — Ética e Meio Ambiente, Ana Maria Domingues Luz, que há 21 anos fundou a organização ao lado da engenheira ambiental Araci Martins Musolino com o objetivo de desenvolver a educação ambiental.

Ecoa conta a seguir histórias e dados para ajudar a tirar dúvidas sobre a reciclagem e oferecer soluções a pessoas, iniciativas e negócios que querem contribuir para um futuro mais verde.

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O passo a passo para mudar

Os dados causam desconforto, mas o que podemos fazer? Para que haja alguma mudança, é preciso que ela seja sistêmica, partindo da indústria, da gestão pública e dos hábitos que você tem em casa. Para dar o primeiro passo, dois eixos principais precisam ser compreendidos: se existe (e como funciona) a logística de coleta seletiva de onde você vive e qual é o tipo de lixo gerado por todos que moram na casa.

Não adianta separar os materiais sem saber o que fazer depois. Portanto, o primeiro passo é pesquisar se há coleta seletiva no seu bairro. Para facilitar, compilamos aqui uma lista para diversas cidades e regiões do Brasil.

Para não ficar refém de eventuais mudanças de rota da coleta municipal, há os pontos de entrega voluntária de descartáveis (os PEVs): grandes "caixas" verdes em forma de container com capacidade de 2.500 litros, em média, com adesivos que indicam os itens que podem ou não ser descartados.

"Até o ano passado tinha uma coleta da prefeitura em parceria com alguma cooperativa, mas pelo que li nos grupos dos bairros daqui, o caminhão raramente passa. Aqui em casa, a gente separa latas e papelão e meu pai entrega diretamente para um catador que deixou seu telefone certa vez", diz Guilherme Guilherme, sociólogo, de Ribeirão Pires, na grande São Paulo.

Se não há cobertura de coleta no seu bairro ou região, nem por uma cooperativa, pergunte diretamente a um catador que tipo de material ele aceita, pois nem todo material compensa financeiramente para eles: 1 quilo de alumínio é vendido por R$ 3,70, em média; já a mesma quantidade de vidro, que pesa muito mais que latinhas, rende, no máximo, R$ 0,10 - por isso, 25% das organizações de catadores não comercializam vidro, de acordo com o relatório Ciclosoft 2020, da CEMPRE.

"Nunca vi o caminhão passando aqui, só na rua de cima. Eu só separo latinha, PET, papelão, que os catadores recolhem e que vale algum dinheiro para eles", conta a professora Maria da Penha Cordeiro, de Guaianases, bairro periférico da zona leste de São Paulo.

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Do que é feito seu lixo?

Falta muita informação sobre o que é reciclável ou não, mas é inegável que a parca educação ambiental e a cultura de consumo e desperdício resultem em pouca responsabilidade cívica. Um exemplo é o sofisticado sistema de coleta seletiva no Japão, que funciona tão bem devido ao compromisso individual de que cada morador. Existe até uma palavra em japonês que expressa o sentimento de arrependimento por ter causado desperdícios: Mottainai.

Lá, os materiais recicláveis estão divididos entre nove ou dez grandes categorias (a depender da província) e a maioria das cozinhas residenciais têm um calendário ilustrando os dias da semana que cada tipo de resíduo será recolhido. Alguns itens requerem múltiplas ações. Das garrafas plásticas, por exemplo, é preciso retirar a tampa e o rótulo, higienizar rigorosamente a parte interna e amassá-las para o descarte. Qualquer falha reflete na sobrecarga do sistema de destinação final.

Por aqui, ainda estamos engatinhando nesse aprendizado, então temos ainda menos desculpas para não separar o lixo. Afinal, basta dividir o que é orgânico do que é reciclável - que deve ser higienizado antes.

Considerando que a coleta seletiva nunca é diária e os materiais ficarão armazenados alguns dias em sua casa, higienizá-los também eliminará odores e evitará a proliferação de insetos (que inclusive podem ser vetores de doenças), além de garantir salubridade básica das pessoas que irão manusear esse lixo posteriormente.

Lavar ou não?

  • Atenção para a queda de um mito

    Água potável é um recurso escasso então prefira retirar o excesso de sujeira usando um guardanapo de papel em vez de usar água da torneira. Ou use a água que sai da máquina de lavar, que iria direto para o ralo, para higienizar recipientes.

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Nem todo plástico pode ser reciclado

Os processos de reciclagem envolvem custos econômicos e ambientais (consumo de energia, água, insumos, mão de obra etc) tanto quanto os processos de produção a partir dos materiais brutos e alguns desses processos de reciclagem podem até ser mais caros. O problema é que ninguém quer pagar essa conta.

"Plásticos de uso único, como sacolas de supermercado, copos, canudos etc, que representam 50% de toda a produção de plásticos mundial, são de pouquíssimo interesse econômico para as indústrias de reciclagem. São materiais de baixa qualidade pelo pouco volume de plástico que os constituem. Além disso, a produção destes itens pelas indústrias petroquímicas é muito maior do que a capacidade de reciclagem. Não há mercado para a reciclagem de tanto material continuamente produzido", explica Liane Biehl Printes, doutora em biologia do departamento de apoio à Educação Ambiental na secretaria de Gestão Ambiental da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Um problema está na hora de desenvolver produtos para a engenheira ambiental. "Muitas marcas focam em chamar a atenção do consumidor com cores na embalagem e rótulos. Bebidas energéticas usam garrafas PET para envase, que sabemos ter um bom valor de mercado, mas ela deixa de ser reciclável quando esse plástico é tingido. Algumas ganham uma cor neon que se torna preta durante o processo de aquecimento [da reciclagem]. Como revender esse PET preto?" diz a engenheira ambiental Maiara Prado Batista, de São Paulo. Olhe nas prateleiras do supermercado e, de fato, praticamente não existem produtos vendáveis cuja embalagem use essa cor.

O isopor é outro exemplo de falha de viabilidade econômica dos processos: ele ocupa muito espaço por ser volumoso, apesar do baixo peso, e tem baixo valor de mercado. Mas esse material é, sim, reciclável e deve ser descartado junto com os plásticos. "Novas tecnologias estão surgindo e o isopor já está sendo bastante reciclado atualmente", conta Maiara.

Em diversos países a indústria é responsabilizada pela coleta, destinação e tratamento dos bens que produzem, pois faz parte da legislação ambiental. Segundo a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), a responsabilidade é compartilhada, a exemplo dos acordos setoriais, mas às vezes, não existe interesse em resolver o problema.

O valor de produção e reciclagem é um interesse da indústria, mas quem move o mercado somos nós, consumidores. Desenvolver consciência sobre esses impactos nos dá meios de cobrar de quem a gente consome e isso se torna um hábito. Quanto mais benefícios socioambientais e inclusivos de populações vulneráveis destacarmos, podemos gerar mais engajamento

Maiara Prado Batista, engenheira ambiental

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O trabalho essencial dos catadores

Até se tornar matéria-prima reciclada, o lixo passa por vários intermediários. Para se ter uma ideia, os catadores organizados em cooperativas e aqueles que atuam de forma individual nas ruas e lixões foram responsáveis por recuperar mais de 354.649 toneladas de resíduos ano passado. São mais de 23 mil ônibus enfileirados.

Esse trabalho é feito por centenas de homens e mulheres, manualmente, pois temos somente duas centrais de reciclagem mecanizadas localizadas - ambas em São Paulo.

As cooperativas podem ser empreendimentos solidários, com um agrupamento de trabalhadores, que se uniram e conseguiram algum tipo de infraestrutura, um pequeno caminhão, prensa ou uniformes, por exemplo. Eles funcionam como uma empresa, com divisão setorial e tudo mais. De tudo que recolhem, vendem e distribuem os lucros entre si. O Cempre [Centro Empresarial para a Reciclagem] calcula que pelo menos 90% de todo o material reciclável passa em algum momento pela mão destes trabalhadores, informais ou cooperados.

Os trabalhadores autônomos são a base da pirâmide de um setor não regulado e não reconhecido. Na busca de valorizar esses trabalhadores, tirando-os da invisibilidade social, o 'artivista' Mundano começou a grafitar as primeiras carroças de catadores em 2012. Depois de lançar um crowdfunding para viabilizar o projeto Pimp My Carroça, não parou mais. Em seguida, criou o app Cataki, que conecta geradores de resíduos de catadores a fim de aumentar suas rendas. O projeto já foi replicado em diversas cidades do Brasil e em mais de 12 países.

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Projetos verdes

Lá fora, há incentivos que partem da gestão pública e da indústria pela responsabilidade pela produção de embalagens, mas também incentivam os cidadãos a reciclar resíduos por meio de recompensas. Na Alemanha, a maioria dos mercados da rede LIDL e Aldi tem máquinas automatizadas que identificam eletronicamente, via sensores, quais garrafas são ou não aceitas. Em troca, um valor em centavos é devolvido ao cidadão.

Já em Leeds, na Inglaterra, a rede de supermercados Asda uniu forças com marcas gigantes com Kellogg's e Unilever para um projeto piloto para eliminar o plástico desnecessário de embalagens usando refis em 2020. Além de cereais e chás, café, arroz, macarrão e sabão em pó, a loja ainda instalou máquinas que recebem latas e garrafas de plástico e vidro de bebidas. E uma estação que recebe materiais difíceis de reciclar como tubos vazios de pasta de dente, brinquedos, frascos de cosméticos.

O Moeda Verde surgiu em 2017 em Santo André, município da grande São Paulo, e incentiva a troca de recicláveis por alimentos hortifruti. Por iniciativa do Semasa (Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André) e da Prefeitura, junto com o Banco de Alimentos, o projeto busca conscientizar sobre a necessidade da reciclagem e incentivar o consumo consciente. A cada 5 quilos de material reciclável entregue em cada um dos 14 pontos de coleta da região, o cidadão recebe 1 quilo de alimento hortifruti. Aqui, é possível consultar o calendário das datas de troca por posto, para o primeiro semestre de 2021.

Moeda Verde também é o nome de outro projeto, em Chapecó (SC). Com ele, o usuário acumula pontos a cada entrega de resíduos recicláveis e também aprende sobre reciclagem. O cidadão leva embalagens até os pontos de coleta, valida o descarte usando um QR lido pelo app, e começa a juntar pontos que são trocados por produtos ou serviços de empresas locais e parceiras do projeto.

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