Tchau, lixo

Cristal Muniz transformou desafio sem lixo em estilo de vida e virou referência em soluções sustentáveis

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Divulgação

"Sempre tentei trazer as soluções, e não os problemas. Porque no geral a gente já sabe quais são os problemas. A gente já sabe que [o lixo] é impactante, que jogar lixo no chão é ruim, que polui o mundo. Então, sempre pensei em focar nas soluções, discutir os problemas a partir delas, porque acho que é mais convidativo pras pessoas — e, de fato, sinto que tem uma resposta muito boa nesse sentido.

Ninguém quer se sentir mais culpado pelo que não faz. E, normalmente, a comunicação de sustentabilidade que se vê é muito apontar o dedo pras pessoas e falar: não jogue lixo no chão. Mas e a prefeitura, botou lixeira na rua pra eu não jogar lixo no chão? Me ensinou antes? Tem essa culpabilização do indivíduo que parte tanto do Estado, que quer fingir que não tem responsabilidade, tanto das empresas, que querem fingir que não são responsáveis pelas embalagens que produzem.

Me coloco muito disponível para conversar com as pessoas e aprender com elas. Sempre falo que sou como um aglomerador de conteúdo, e não a pessoa que mais sabe. Todo mundo tem alguma coisa pra aprender e todo mundo tem alguma coisa pra ensinar. Várias das coisas mais incríveis que eu compartilho com as pessoas, foram elas próprias que me deram."

Nos passeios que dava quando criança ao lado do pai, Cristal Muniz aprendeu a prestar atenção no lixo. O artista plástico Mauricio Muniz usava materiais de descarte em suas criações e sempre parava para ver o que poderia ser resgatado e reaproveitado nas caçambas cheias de entulho.

Da mãe e da avó, com quem morava, veio o aprendizado de não desperdiçar nada e usar tudo até o final. Desde cedo ela já separava o lixo da casa e reparava no volume de resíduos produzidos pela família.

Mas foi quando foi morar sozinha, em 2011, que o lixo passou a incomodar de verdade. "Eu não fazia nada de mais, não era consumista e ainda assim gerava muito lixo", disse a Ecoa.

A questão permaneceu com ela por alguns anos, sem solução. Até que ela descobriu o movimento lixo zero, por acaso, em 2014, depois de uma notícia encaminhada por uma amiga. O texto falava sobre Lauren Singer, ativista ambiental norte-americana que estava há dois anos sem produzir lixo. Interessada, Cristal leu o blog de Singer, Trash is For Tossers (um trocadilho em inglês, Lixo é Para Babacas), de cabo a rabo em um único dia.

O contato com essa referência a fez embarcar em um desafio de passar um ano sem produzir lixo — que foi muito além do período determinado e acabou virando seu estilo de vida.

Além dos aprendizados e de colocar em prática a produção de menos resíduo, Cristal queria compartilhar suas descobertas: assim nasceu o blog Um Ano Sem Lixo (que passou a se chamar Uma Vida Sem Lixo). Com o tempo, as dicas dela se tornaram referência para pessoas preocupadas com o impacto ambiental de seu lixo.

Hoje, o conteúdo do blog também está nas redes sociais (o @umavidasemlixo tem 250 mil seguidores no Instagram), no YouTube, em podcast e em livro.

Divulgação Divulgação
Divulgação

O que significa lixo zero?

O movimento lixo zero não tem uma cartilha que unifique seus princípios ou que indique um passo a passo universal para pôr fim à geração de resíduos. De modo geral, significa deixar de produzir lixo não reciclável, que vai para aterros sanitários e lá permanece por um longo tempo poluindo o solo, a água e o ar.

Muniz vai mais longe: além de evitar sempre que possível o consumo de itens com algum material que não pode ser reciclado, ela também tem como meta não produzir lixo reciclável, levando em conta que as taxas de reciclagem no país são muito baixas, e transformar todo seu resíduo orgânico em adubo.

A mudança proposta por esse movimento internacional, que ganhou força fora do Brasil na virada dos anos 1990 para os 2000, passa por uma revisão dos padrões de consumo e do desperdício.

O lixo zero é uma utopia. E aqui vou resgatar o [escritor uruguaio Eduardo] Galeano, que disse que as utopias servem pra gente caminhar. O objetivo de tentar reduzir seu lixo é justamente a caminhada, que é super importante pra perceber como a gente consome sem nem se dar conta

Cristal Muniz

Divulgação

Da adaptação às concessões

No início, a principal dificuldade foi o desconhecimento sobre as soluções possíveis para se tornar lixo zero. O fato de as principais referências no tema serem estrangeiras fazia com que algumas dicas não fossem totalmente aplicáveis no contexto nacional.

Cristal se dedicou, então, a pesquisar, criar e testar substitutos caseiros para produtos comercializados, na maioria das vezes, em embalagens plásticas. Ela mudou a forma de fazer compras e deixou de lado alguns hábitos, como pintar as unhas. Hoje, diz que essas mudanças estão totalmente incorporadas no seu dia a dia. "Pra mim não foi difícil, exatamente. Era uma coisa que eu estava muito motivada a fazer, estava muito feliz com o processo todo", conta.

Processo é a palavra-chave: em vez de tentar zerar sua produção de lixo de um dia para o outro, ela foi por partes, resolvendo um problema de cada vez.

Cristal frisa a importância de encontrar soluções que funcionem e façam sentido para a realidade de cada pessoa. Ela incentiva também fazer escolhas não só com base no lixo visível, que está ao alcance dos nossos olhos na lixeira de casa, mas nos impactos socioambientais de determinada cadeia. Ao comprar alimentos, por exemplo, ela prioriza os orgânicos mesmo quando vêm embalados.

Na seção "Comece por aqui" do blog, Muniz dá dicas de como reduzir o lixo por partes: na cozinha, no banheiro, ao limpar a casa, etc. Também há informações auxiliares sobre práticas necessárias ao lixo zero, como fazer compras a granel e fazer uma composteira, além das famosas receitas de cosméticos e produtos de limpeza naturais e caseiros.

Por onde começar

  • 1

    O que mais incomoda?

    Comece pelo tipo de lixo que você sente maior incômodo em produzir. O lixo orgânico é um transtorno? Monte uma composteira. Se sente mal pela quantidade de absorventes descartados a cada ciclo menstrual? Troque por um coletor ou calcinha absorvente

  • 2

    Vá com calma

    Faça as substituições aos poucos, usando até o final os produtos que você já tem. Não queira mudar tudo de uma vez para não desanimar ou descartar coisas antes da hora!

  • 3

    Não tenha medo de errar

    Pesquise e faça testes para descobrir quais soluções funcionam para você. Muniz defende que o lixo zero é um processo de aperfeiçoamento contínuo

Divulgação

Uma comunidade lixo zero

Desde as primeiras publicações nas redes sobre o desafio e dos posts inaugurais no blog, a repercussão foi além do que Cristal esperava. "Eu fiz o blog e, do nada, tinha gente lendo. Nem sabia de onde essas pessoas estavam surgindo. Compartilhei o que estava fazendo e a resposta foi muito legal", disse a Ecoa.

Alguns dos leitores se tornaram apoiadores do conteúdo produzido por ela no Catarse, formando uma comunidade virtual que atualmente conta com cerca de 170 pessoas — eles mantêm um grupo de conversa no Telegram, se reúnem virtualmente para discutir livros e filmes e têm acesso a uma newsletter feita por Cristal.

Uma das participantes dessa comunidade é a engenheira ambiental mineira Júlia Alvarenga, que conheceu o Uma Vida Sem Lixo em 2018. Sua "porta de entrada" foi o vídeo (hoje com mais de 600 mil visualizações) no canal da youtuber Jout Jout, em que Cristal ensina sua receita de sabão líquido. Depois de fazer o sabão, passou a ler o blog e a fazer mudanças em várias esferas.

"Ela realmente provocou grandes questionamentos na minha vida. Me fez ver as coisas do meu dia a dia com um outro olhar", disse a Ecoa.

Já a estudante de História Anna Paula Figlino, de Guarulhos (SP), descobriu o "Uma Vida Sem Lixo" ao pesquisar sobre cosméticos biodegradáveis. Ela já se interessava por pautas socioambientais, mas tinha certa desconfiança em relação a atitudes individuais por saber que a responsabilidade não deve ser assumida apenas pelos consumidores.

"Mas quando vi no blog que era possível minimizar a geração de lixo, chegando o mais próximo possível de zero, eu não tive dúvida de que leria todinho e tentaria repensar meus hábitos", disse a Ecoa.

Figlino conta que ter acesso a essas informações de forma simplificada intensificou sua vontade de atuar em favor da causa ambiental. Atualmente, ela coordena projetos no Instituto Irara, voltado à preservação e regeneração da Mata Atlântica, e que tem o lixo zero como um de seus princípios.

Divulgação Divulgação

Responsabilização das indústrias

O lixo é um grande problema ambiental global. Nos aterros, ele polui o solo, os lençóis freáticos e emite gases de efeito estufa. Nações ricas "exportam" seu lixo para a periferia do planeta. No Brasil, onde mais de 20 milhões de pessoas não têm acesso a nenhum tipo de coleta de lixo, segundo o IBGE, há lixo a céu aberto nas áreas mais precárias das cidades, o que afeta a saúde dos moradores e o meio ambiente.

Ativistas do movimento lixo zero enfatizam se tratar de um problema estrutural, atrelado ao consumo e ao atual sistema de produção. "O lixo zero não é viável, porque a gente vive em uma sociedade capitalista, que é oposta a ele. Por mais esforço que a gente faça, nunca vamos conseguir, porque não depende só da gente", afirma Cristal.

Ela defende que o lixo zero seja abraçado também pelos fabricantes dos mais diversos produtos, repensando o material das embalagens e colocando em prática sistemas de logística reversa.

Ainda assim, acredita que ações individuais práticas têm papel importante e encoraja que cada um procure reduzir sua produção de resíduos de acordo com suas possibilidades. A prática, diz Cristal, também nos empodera a cobrar as empresas e a exigir das autoridades a implementação de serviços como coleta seletiva em seu bairro.

"Quando a gente faz a nossa ação individual, prática, na nossa casa, está fortalecendo aquilo em que a gente acredita, a nossa visão de como o mundo deveria ser. Se você acredita que tem que ser diferente, você age para viver daquela forma, se fortalece dentro daquela prática", diz.

Quer saber mais? Siga essas pessoas!

  • Ailton Krenak

    Líder indígena, ambientalista e escritor, é autor de ?Ideias para adiar o fim do mundo? e ?A vida não é útil?

    Imagem: Mathilde Missioneiro/Folhapress
    Leia mais
  • Bea Johnson

    Uma das figuras responsáveis por popularizar o lixo zero, a ativista ambiental franco-americana reduziu ao mínimo a produção de resíduos de sua família e divulgou o tema com seu livro ?Desperdício Zero? e suas palestras

    Leia mais
  • Mariana Matija

    Criadora do premiado blog Animal de Isla, a colombiana difunde conteúdos educativos sobre o cuidado com o planeta

    Leia mais
  • Anne Marie

    Canadense radicada nos EUA, Anne-Marie Bonneau cortou o plástico de sua vida em 2011. O próximo passo foi o lixo zero. Seu foco é a cozinha: no Instagram, dá dicas de como reduzir resíduos ao comprar e preparar os alimentos

    Leia mais
  • Marina Colerato

    Jornalista e pesquisadora com foco em moda e sustentabilidade, é diretora do Instituto Modefica

    Leia mais

+ Causadores

Regina

Ela ensina a economizar e comer tudo que alimentos oferecem

Ler mais

Diane

Ela rodou mundo com o futebol e mudou a vida de jovens do MA

Ler mais

Veronica

Ela transformou faxina em um negócio de sucesso e esperança

Ler mais
Topo