Aqueles parentes distantes

Com teste de DNA, César Sampaio vê 'família' na Nigéria e promete não aliviar com 'primos' de Camarões na Copa

Djalma Campos Colaboração para o UOL, de São Paulo (SP) Deborah Faleiros/UOL

A seleção brasileira havia acabado de jogar amistosos contra Senegal e Nigéria em setembro de 2019 em Singapura, e o ex-volante César Sampaio, um dos auxiliares técnicos de Tite, precisou embarcar antes da delegação para voltar ao Brasil.

No voo, encontrou o jovem goleiro nigeriano Francis Uzoho, que machucara o joelho e, preocupado com a contusão, puxou papo. Passou a falar da vida e da infância. Um diretor do futebol nigeriano logo se juntou à conversa. Algo no encontro, na conversa e nas histórias fez César sentir uma sensação familiar.

Foi um sentimento estranho. Era como se eu encontrasse um parente. Parecia que eu estava em família"

Três anos depois, ele agora encontra uma explicação. Após topar o convite de Ecoa, César realizou um teste de DNA que mapeia a ancestralidade genética. Após ver o resultado do exame, o ex-atleta soube que grande parte de seu material genético não só remete ao continente africano (77%), mas vem da Costa da Mina (35%), região que compreende Gana, Togo e Benin e... a Nigéria de Uzoho.

Nascido em um lar sedento por conhecer sua história, mas ocupado demais com a própria sobrevivência, César não teve tempo de buscar informações sobre os antepassados — antes de entrar no mundo do futebol aos 13, ele mesmo já trabalhava. "Para mim, o resultado deste exame significa o direito de acesso às minhas origens. O mínimo que a gente tem que saber é de onde veio."

Ainda da África, ele descobriu que outra origem de seus ancestrais é o Oeste do continente, de onde vêm 27% de seu material genético. A região é onde fica Camarões, último adversário da seleção na fase de grupo da Copa do Mundo 2022. Dentro de campo, César garante que não há espaço para parentes ou amigos. Depois da competição, no entanto, ele vai mergulhar em suas origens.

Com o resultado deste exame, tenho um ponto de partida para buscar as minhas origens. Agora, tenho como começar a procurar as minhas raízes

César Sampaio, ex-jogador de futebol e auxiliar técnico da seleção brasileira

Deborah Faleiros/UOL Deborah Faleiros/UOL

O MENINO DOS SAMPAIO

Filho do carteiro Tarquino de Campos e da costureira Benedita Aparecida Sampaio Leite, César Sampaio nasceu em Cidade Leonor, na zona sul da cidade de São Paulo. Terceiro de quatro irmãos, ele viu como faltava dinheiro para abastecer as necessidades mais básicas.

A infância difícil não permitia que César olhasse para trás, apesar da vontade. "Não tive muito contato com meus bisavôs. E meus pais trabalhavam durante o dia inteiro", analisa. Na ausência deles, era a irmã, Marta Sampaio, seis anos mais velha, que cuidava da casa.

Ainda assim, o garoto se permitia sonhar. "Em determinado momento da minha vida, eu achei que ia resolver os problemas de casa. Não sei o porquê... Eu achava que resolveria, principalmente as questões familiares. Meu pai era alcoólatra e minha mãe muitas vezes foi mãe e pai ao mesmo tempo."

A realidade, porém, o levava para outro lugar. César conta que em um fim de semana foi fazer uma visita aos tios. Acabou ficando. Morou lá por dois anos. O alcoolismo do pai fez com que os Sampaio perdessem a casa por não conseguirem pagar o aluguel. E a família ficou sem ter como seguir unida no mesmo endereço.

Hoje, já bem mais velho, tenho curiosidade de saber das minhas origens. E esta busca coincide com o momento que estou vivendo agora

César Sampaio, ex-jogador de futebol e auxiliar técnico da seleção brasileira

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TÉDA VIRA CÉSAR SAMPAIO

Antes de César Sampaio vir a ser o jogador determinado que se tornou conhecido por vestir a camisa de Corinthians, Palmeiras, Santos, São Paulo, da seleção brasileira e de clubes do futebol do Japão, existia o Téda.

Como não sabia pronunciar o próprio nome, ele se apresentava pela corruptela. Mas o nome não era a única característica que diferenciava o menino Téda do futuro jogador de futebol, cuja trajetória foi marcada pela seriedade com que se entregava dentro das quatro linhas.

Naquela época, a imagem de César entre os familiares, principalmente as tias, não era das melhores. Apaixonado por futebol, mas andando com os piores meninos da rua, ele era visto como um péssimo exemplo.

Eu não gostava de estudar. Era o problema. Sempre onde tinha bola, delinquência e crime, eu estava lá. E minhas tias, com razão, não gostavam que meus primos andassem comigo."

César diz que nunca se envolveu em coisa errada. Ainda assim, a pressão era tanta que Téda resolveu que poderia dar outro tipo de exemplo. Começou a virar seu primeiro jogo.

Decidi provar para minha tia Maria Verônica, irmã da minha mãe, que eu não era aquilo que ela dizia. Ela falava que eu só ia aonde tinha maconheiro, um tipo muito malvisto naquela época. Sem perceber, ela foi minha maior inspiração."

César Sampaio, ex-jogador de futebol e auxiliar técnico da seleção brasileira

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UMA LENDA NA ARQUIBANCADA

Ao falar do passado, César fala de Téda como se descrevesse outra pessoa. Garante que o menino durão e mal-encarado segue guardado ali, em algum lugar. Além de se afastar das más companhias, César decidiu que iria levar a sério o amor pelo futebol.

O começo da carreira no final dos anos 1970 não foi fácil. São Paulo, Palmeiras, Corinthians e Nacional o recusaram. Mas teve de escutar a reclamação do pai de que faltava dinheiro em casa e aceitou emprego em uma metalúrgica. "Ele falou que, se eu fosse um jogador tão bom, já teriam me contratado."

Enquanto trabalhava, o futebol foi empurrado para os fins de semana. Por um golpe do destino, a metalúrgica faliu após três meses, e César foi aceito no time de futebol de salão são-paulino.

Por outro golpe de sorte, durante uma das partidas que César jogava aos sábados e domingos, estava na arquibancada Antônio Lima, lendário jogador do Santos da época de Pelé, bicampeão da Libertadores e Mundial pelo Peixe e que integrou a seleção na Copa de 1966.

Naquela época, já aposentado dos campos, Lima atuava como olheiro do time da Vila Belmiro. Gostou do que viu e convidou o menino brigão, que, aos 13 anos, viajou sozinho a Santos. Após peneiras e testes, ele acabou aprovado. "O treinador da base daquela época disse: 'Ele é meio violento, mas dá para ficar'", lembra César.

Desempregado, ele recebia do Tricolor paulista uma pequena ajuda de custo, algo como R$ 600 por mês. Como o dinheiro tinha que render, usava-o para ir à Baixada Santista onde treinava no time do Santos três vezes por semana, voltar para estudar na capital e, claro, ir jogar futsal no São Paulo.

No primeiro ano de futebol, eu paguei tudo com o dinheiro que ganhei no São Paulo. Muitas vezes, eu não tinha como comer. E o senhor Ernesto Andria [funcionário do Santos ligado às categorias de base dos anos 1980] matou minha fome. A vida coloca uns anjos no caminho que nos ajudam em vários momentos.

César Sampaio, ex-jogador de futebol e auxiliar técnico da seleção brasileira

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'A SELEÇÃO BRASILEIRA É PARDA'

Auxiliar técnico da seleção brasileira desde 2019, César Sampaio embarcará para o Qatar, onde o Brasil tentará o hexacampeonato. Ao olhar para a foto do elenco, ele diz ter reparado que a maior parte do selecionado é formada por jogadores miscigenados.

"Na estrutura do Brasil, a gente tem alguns 'enxertos'. Não tem ninguém 100%. Eu estava olhando a cor da Seleção Brasileira (de futebol masculino) e nosso time é pardo. Olha que barato! E a gente fica com esta coisa de branco, negro, de europeu? E nossa cor é essa".

O próprio César representa essa miscigenação. Seu exame genético aponta que 14% seu material genético remete à Europa, 5% às Américas e 4% ao Oriente Médio e Magrebe (Marrocos, Tunísia, Argélia, parte de Mali, Líbia e Mauritânia).

Dentro da família, isso é assunto constante. Frutos de um casal interracial — Cristina, esposa de César, é branca—, as filhas Gabriela, Priscila e Rebeca se engajam com causas ligadas à negritude.

Contaminado por elas, César fica orgulhoso com notícias ligadas à negritude. Tanto que comemorou a recente homenagem da seleção aos jogadores negros.

DENTRO DE CAMPO, NÃO TEM PARENTE E NEM AMIGO

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Mesmo com a conexão que surgiu durante a conversa com o goleiro Uzoho e com os sentimentos despertados pelo exame de ancestralidade genética, César Sampaio diz que todo esse caldeirão de emoções ficará do lado de fora do campo.

Principalmente quando o Brasil enfrentar seus "primos" de Camarões, confronto agendado para o dia 2 de dezembro.

A gente é treinado, desde muito novo, para controlar tudo isso. Isso não interfere no nosso nível de concentração. Rojão no hotel, torcida gritando... Nada. Dia de jogo é dia de buscar a concentração alta. Mas depois do jogo... Quando era jogador, eu normalmente marcava o 10 adversário. Nesta hora, não dá para pensar no DNA de quem está do outro lado."

Para ilustrar o clima dentro de campo, ele conta um caso no treino da seleção de 1994. Durante os rachões, ele ficava na cola do atacante Paulo Sérgio, evangélico como César e seu companheiro de igreja. Depois de uma entrada dura, o volante ouviu Paulo dizer: "Irmão, o que é isso?".

E respondeu: "Irmão é só na igreja".

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RACISMO NO FUTEBOL

"Já deu!". É assim, sem muitos rodeios, que César Sampaio responde sobre as ações necessárias para colocar fim ao racismo no futebol mundial.

Casos de racismo trazem à memória de César Sampaio uma cena dos tempos em que atuava no futebol de salão do São Paulo. Ele e seu pai estavam sentados no metrô, quando duas senhoras brancas entraram.

"Nós levantamos pra elas sentarem, e uma falou para a outra: 'Não vou sentar no lugar onde estava um preto'. Eu, que ainda era o Téda, mandei tomar no cu. Meu pai falou: 'A pessoa que te julga pela cor da sua pele não é digna da sua raiva e indignação'. Por isso, por muito tempo eu fui deixando isso de lado", explica.

A opinião de César Sampaio mudou após o caso de racismo contra Richarlison durante partida da seleção brasileira contra a Tunísia em Paris, na França. Um torcedor atirou uma banana em direção do atacante.

Fui favorável a esta parte educativa, mas mudei depois deste jogo. A tolerância acabou. Já fizemos tudo o que podíamos para conscientizar. Agora tem que pagar. Se não aprendeu de um jeito, vai ter que aprender de outro. Agora é aplicar a lei. Em um campo de futebol, você mostra aquilo que você é. É a essência do ser humano. Tudo essa coisa de pagar cestas básicas, punição, jogador entrar com faixa... Já deu! Para mim, agora, é [aplicar] lei!"

MERGULHO NAS ORIGENS APÓS A COPA

Deborah Faleiros/UOL

Em outras das muitas coincidências surgidas na história da família Sampaio, César se lembra de quando uma sobrinha se casou com um ganês. "Eu brinquei que a gente estava voltando às nossas origens, mas ainda não sabia o resultado deste teste de DNA. Quando veio o resultado, foi um barato!", brinca.

Ainda que goste de história, o ex-jogador diz não ter tido oportunidades de pesquisar a fundo a trajetória de sua família.

Logo após o final da Copa do Mundo do Qatar, vou atrás das minhas origens. Para as minhas filhas, vai ser legal. Minha curiosidade está me aguçando muito! Passando o Mundial, vou cavar até onde eu puder encontrar."

César conta que conhece as histórias dos antepassados que se superaram e tiverem de lutar para serem aceitos. Mas o resultado do exame de ancestralidade genética, diz, muda um pouco a ótica e o faz querer colocar uma lupa sobre o livro da família.

Agora sou mais César! E quero saber de onde eu vim. Quero saber o que as pessoas [negras] passaram, onde moravam e trabalhavam, o que fizeram para ficar aqui [no Brasil]. Acho que todo mundo devia ter esta mesma curiosidade.

César Sampaio, ex-jogador de futebol e auxiliar técnico da seleção brasileira

ORIGENS: QUARTA TEMPORADA

Promovido por Ecoa, Origens está em sua quarta temporada. Esta edição contou com o evento "As histórias que nos trouxeram aqui", em que celebridades e ilustres anônimos contaram como buscaram respostas sobre o seu passado ou agiram para transformar, cada qual à sua maneira, seus núcleos familiares.

Os intervalos de cada painel contaram com apresentações de slam conduzidas pela poeta e compositora Bell Puã e de stand up lideradas pela humorista e apresentadora dos programas Splash Show e Otalab, do UOL, Yas Fiorelo. A apresentação e mediação dos encontros foi feita pela jornalista Semayat Oliveira.

Além disso, esta temporada conta com perfis de ex-jogadores que disputaram a Copa do Mundo e toparam fazer um teste de DNA para explorar sua ancestralidade. Você também confere um trecho em vídeo do papo com o César Sampaio no Instagram de Ecoa. As reportagens sobre os outros atletas estão a seguir:

  • Mauro Silva

    O rei mago de pés africanos

    Imagem: Gsé Silva/UOL
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  • César Sampaio

    Aqueles Parentes Distantes

    Imagem: Gsé Silva/UOL
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  • Romário

    11/11

    Imagem: Arquivo/AFP
  • Cafu

    14/11

    Imagem: Laurence Griffiths /Allsport/Geety Images
  • Ronaldão

    18/11

    Imagem: Reprodução
  • Grafite

    21/11

    Imagem: Jamie McDonald/Getty Images
  • Ramires

    25/11

    Imagem: Antonio Scorza/AFP
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