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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sorrir é resistir

Alan Arkin e Michael Douglas em cena de "O Método Kominsky" - Divulgação
Alan Arkin e Michael Douglas em cena de "O Método Kominsky" Imagem: Divulgação

Rodrigo Ratier

21/06/2021 06h00

Saiu recentemente a terceira temporada de O Método Kominsky, série da Netflix sobre velhice — portanto, uma série sobre a morte. Decaimento físico, doenças diversas, solidão e, finalmente, um par de enterros mostram que ela está sempre à espreita. Se o inevitável não muda, as formas de encará-lo podem variar bastante. A opção de Chuck Lorre, criador da série e nome por trás de sucessos como Two and a Half Man ("Dois Homens e Meio", se você preferir a tradução do SBT) e The Big Bang Theory ("Big Bang: a Teoria"), é o humor.

Não é uma escolha excludente. Não estamos diante de personagens que, ao se depararem com a morte de um ente querido, fogem do velório (ou quando vão, contam piadas) e evitam dar pêsames. Não são pessoas em negação, que diante da catástrofe passam a percepção equivocada de que tudo está bem, de que nada aconteceu. A dor e a perda estão presentes, mas não estão sozinhas: a desgraça aparece lado a lado com a graça. Se a série defende uma tese — eu acho que defende —, eu diria que é a ideia de que rir da tragédia não é uma atitude incompatível com vivenciá-la intensamente.

Essa perspectiva aparece cristalina na cena em que Sandy Kominsky (Michael Douglas, ótimo) provoca os alunos de sua escola de atuação com uma pergunta: "O que separa a comédia do drama?" O professor defende que não existe separação. "Seres humanos choram, amam, temem, riem, se enfurecem. Qual dessas coisas é mais importante do que as outras? A resposta é simples: nenhuma. Não se interpreta comédia, não se interpreta drama. Interpretamos a verdade."

É algo a se pensar num momento em que todos, de uma forma ou de outra, se deparam com a ameaça de desaparecimento pela ação de um vírus mortal. Vitimado pela covid, Paulo Gustavo era um dos que definia o riso como ato de resistência. Referia-se à pandemia, mas cabem outros contextos: a cultura do ódio, a naturalização da brutalidade, o genocídio. Antes das eleições de 2018, declarou que não votaria em Bolsonaro. E fez piada: "E você, que está na minha página falando 'Deixando de seguir': amor, você vai ter três trabalhos. Você me seguiu, vai deixar de me seguir e daqui a pouco você vai me seguir de novo, porque vai ter uma hora que você vai precisar rir — e vai rir com o Bolsonaro? Não, boba. Você vai rir comigo!"

Claro que nem todo tipo de graça é igualmente aceitável. Em outra ocasião mencionei o estudo do psicólogo americano Steven Sultanoff sobre o humor em situações de crise. Há, segundo ele, dois tipos capazes de trazer leveza: o autodepreciativo, quando o alvo do chiste é quem o profere, e o humor de situação, que aborda o contexto em que todos estamos envolvidos.

Em sua última semana de vida, meu pai, desenganado depois de um inútil transplante de medula óssea, saiu distribuindo recomendações aos filhos. A que me coube — "sempre alegre" — era um mandamento informal em sua vida. Raro foi o dia em que não o vi contar alguma piada, até mesmo sobre a leucemia que viria a matá-lo. Sofreu muito, riu bastante também. Para si e para os outros, aliviou um pouco a tristeza de vê-lo partir. Lembrou com graça, em alguns casos impublicável, o patético da condição humana: ao pó voltaremos.

"Sempre alegre" virou um post it há até pouco tempo grudado em meu notebook de trabalho. Por ocasião de meu aniversário, minha filha mais velha, em idade de alfabetização, me presenteou com um desenho. Dois bonecos palito liberam gases na altura da região glútea e se divertem às gargalhadas ("rararara", "cacacaca"). Ao lado, a frase "você é o melhor pai cocô do mundo". Acho que está funcionando, pai.