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Rodrigo Ratier

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

A mídia tem culpa pelo descrédito da mídia

Silvio Santos - João Batista da Silva / SBT
Silvio Santos Imagem: João Batista da Silva / SBT

Rodrigo Ratier

01/03/2021 04h00

Não é que a confiança na mídia diminuiu um pouco. Ela desabou. O recém-publicado Digital News Report, do Instituto Reuters, afirma que menos de 4 em cada 10 pessoas (38%) acreditam nas notícias na maior parte do tempo. No Brasil, o índice de confiança na mídia é um pouco melhor: 51%. Não é motivo para comemoração, já que o tombo foi superior a dois dígitos nos últimos anos.

Entre jornalistas, publishers e barões da mídia, os dedos são rápidos para apontar culpados: as redes sociais, a ascensão do populismo de direita, o aumento do anti-intelectualismo e o contexto de pós-verdade. Tudo isso tem parcela de responsabilidade — bem esquadrinhada, aliás. O ímpeto da imprensa é muito menor, entretanto, quando se trata de olhar para si e fazer a autocrítica que tanto cobram de outras instituições.

A mídia tem culpa em sua própria crise de credibilidade. Não é de hoje. No clássico "Os Elementos do Jornalismo", os pesquisadores Bill Kovach e Tom Rosenstiel apontam tendências que, nas últimas quatro décadas — sim, 40 anos — têm afastado os jornalistas do compromisso com a qualidade de seu trabalho.

Primeiro, a conversão dos líderes de redação em homens de negócios, com parte significativa dos vencimentos atrelada a metas de lucratividade. Para Kovach e Rosenstiel, trata-se de fato alarmante, sabotagem ao trabalho jornalístico e um dos fatores que explicam por que o cidadão perdeu a confiança na imprensa. Como acreditar, por exemplo, que um veículo vai cobrir criticamente o grupo que o controla, quando o salário dos diretores de redação depende diretamente do sucesso financeiro de seus patrões?

Segundo, a vitória da opinião sobre a informação. Isso pode parecer fenômeno recente, ligado à arena polarizada do Twitter e do Facebook. Mas Kovach e Rosenstiel assinalam que o jornalismo foi ficando cada vez mais subjetivo e crítico desde a década de 1970, tendência acentuada com os canais de notícia 24 horas. O ambiente das mídias sociais adubou a terra para a polêmica: jornalista famoso é o sujeito destemido, que vocifera e entra em treta. Já a equipe que trabalha no anonimato em busca de informações geralmente apresenta resultados lentos e dá pouca audiência. O povo quer sangue, e aí não é surpresa que as emissoras all news tenham substituído seus times de profissionais investigativos por meia dúzia de articulistas. No curto prazo, é mais barato e dá mais Ibope ter um punhado de palpiteiros preenchendo a programação. No longo prazo...

...O resultado é conhecido. Políticos picaretas e abertamente mentirosos reivindicam o status de "veículos de informação". No plano do discurso, visam estabelecer uma concorrência com a imprensa que, em termos concretos, deveria soar absurda. O jornalismo tem, ou deveria ter, compromisso com a verdade. Os políticos não deveriam ter, mas têm, compromisso com o poder; o jornalismo tem processos e procedimentos para depurar a informação veiculada pelas notícias, aproximando-a tanto quanto possível do real; os políticos se baseiam na retórica e nas "narrativas". Como é possível que dois universos tão distintos possam se confundir aos olhos do público?

O fato é que, em nome da sobrevivência, o jornalismo tem se aproximado das saídas fáceis pela audiência (opinião, espetáculo, entretenimento, polêmica, lacração), cortado recursos em sua própria razão de ser (a verificação criteriosa de informações), bajulado poderosos à espera de uns trocados (a notória instrumentalização de emissoras como Record e SBT pelo governo Bolsonaro) e tornado-se indistinguível da desinformação (como aceitar a publicação de um manifesto em defesa de um tratamento ineficaz contra a covid?). Olhamos com indignação para quem não acredita na mídia, mas relendo este parágrafo, é o caso de perguntar: você acreditaria? É preciso lembrar Kovach e Rosentiel e reafirmar: a primeira e única lealdade do jornalismo deve ser com os cidadãos.