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Café com Dona Jacira

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Um dia a mulher do chapéu preto veio aqui na feira

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

20/11/2022 06h00

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Cuidado boquinha com o que fala. Mãe tem várias histórias pra contar sobre palavra errada, palavras que nunca devem ser pronunciadas com risco de algo muito danoso acontecer, eu também as tenho por experiência e por ouvir falar.

Tem tempo que as coisas até se confundem porque são lendas urbanas que saiu da boca de alguém aqui e ali quebrando um coco, descascando uma cana, enrolando um quitute pra uma festa, batendo um mato. Saem pra preencher o tempo ou como dizia minha amiga Dulce: "Encangar o grilo", outras experiências de vida aprendidas no limiar das horas.

As horas são sagradas, antigamente eram contadas pelas passagens da natureza, o olhar compreendia os fatos e repassava de geração em geração. Ninguém ousa, nem nenhuma religião desconcorda, que existem horários de batida de relógio que tem mistério, não é à toa que nenhum sacristão deixa de bater o sino ou fazer o sinal da cruz, ou mesmo ousar olhar pra céu com olhar cético.

Há um mistério no ar, e até para aqueles que dizem não crer em estátuas e símbolos respeitam a cruz, afinal de contas a gente pode ir o mais longe que for da nossa comunidade, mas viemos de comunidades primitivas que se comunicavam através dos mistérios da natureza antes do capitalismo abarcar-nos com o deus dinheiro, rede social e refrigerante de cola.

Outras histórias surgem já pra o interior da vida da gente, como esta que vou contar.

Na hora de aperto maior o perigo de morte. Quando o céu ameaça nossa cabeça a gente desvira o chinelo para mãe não morrer atrás da porta. Basta um diagnóstico atravessado e qualquer ateu desavisado relembra o caminho de casa, e a memória o fará relembrar que as horas grandes ou horas mortas existem.

Seis horas é aurora, hora de agradecer de renascer
Doze horas, hora de agradecer e trabalhar, seguir
Dezoito horas, hora de dar graças pela idade que alcançou e preparar o espírito pra subida da montanha
Vinte e quatro horas, hora do ancestral, dos entes falecidos e daquele que aguarda por voltar a terra, que renascera as na aurora às seis da manhã

E ainda tem os adendos, evitar passar em volta de muro de cemitério nestes horários, se tiver que passar o faça em silêncio, cuidado com as palavras ditas, a palavra é uma flecha, ela não volta atrás depois de proferida, todos os portais estão abertos, respeite o invisível, os mistérios.

Uma vez um cético e um cirurgião foram tirar a prova dos nove sobre a existência dos mistérios, foram viajar de avião o mais alto possível, já lá em cima por sobre as nuvens o cético disse:

- Até aqui onde nem os pássaros ousam subir eu nada vi como você pode avistar, eu também não encontrei Deus, sinal de que ele não existe.
O cirurgião por sua vez respondeu:

- Você está certo, mas eu sou cirurgião há muitos anos e opero cérebro, já perdi a conta de quantos abri. Eu nunca vi o pensamento e isto não prova que ele não existe.

Este fato não é lenda urbana, mas lembra, aconteceu com mãe, era um dia aí para trás, não sei qual. Essas coisas a pessoa só conta depois do trauma assentado, do causo resolvido, igual chifre, falência, igual certas verdades. Antes de entrar na saga preciso entrar na história de o que vem a ser, estar ou ser um feirante fixo ou itinerante.

Tem aqueles que têm licença pra trabalhar e os que nunca a conseguem, estes últimos trabalham com o coração na mão com medo de além de não vender perder a mercadoria pra o comando ou a polícia, minha mãe pertencia a este grupo.

Mãe é da casta das pessoas que vende, descendente de mulheres que potencializam e nutrem toda uma nação muitas vezes sozinha, já fizeram de um tudo pra sobreviver, são multidisciplinares formadas em desenvolvimento humano e não raro moram longe nas periferias onde as políticas públicas exploram, mas não alcançam na hora de dividir as riquezas, trabalhou na roça colhendo tudo quanto foi coisa, comendo com os olhos aos olhos do vigia.

Sonhando com a terra prometida e o galardão prometido na bíblia, trabalhou batendo arroz, feijão, girassol e batendo em retirada toda vez que a colheita acabava, porque mãe descende de gente que perdeu a guerra pra o capital e foi destituída de sua própria história virando massa de manobra ou exército de reserva, como eu.

Quem vive deste mister acaba por ter várias opções, nem sempre boas, ou morrem antes mesmo de chegar o tempo ou acabam criando um jeito de viver. Quando eu era criança ela ainda era lavadora e passadora de roupas, os melhores trabalhos da região, que mãe é dessas que quando faz capricha e imprime qualidade.

Um dia mãe sonhou que, assim como aquele homem que veio pra o Brasil e vendeu um par de meias e ficou rico a ponto de comprar uma rede de TV, talvez também ela pudesse ser dona e proprietária de seu próprio negócio. Planejou, guardou uns troquinhos e iniciou vendendo calcinhas de criança bordada por ela que era chamada Bundinha Rica, e não é que ela era boa nisso! O negócio destacou e logo ela tinha uma barraca repleta de tudo o que era roupa de mulher, se fosse hoje eu diria mãe bem feminista, até combinação ela vendia.

A bisa dizia que naquele tempo só dois tipos de pessoas usavam combinação, ela e quem tinha vergonha na cara. Agora ia nas feiras da região a semana inteirinha, só folgava na segunda-feira, foi nesta época que mãe deixou de estar por perto, que eu ganhei o mundo da rua com meus novos amigos, ela foi ser negociante e eu chefe de brincadeira de rua.

Com o tempo a gente foi sendo incorporado a empresa familiar, coisa que pra mim foi muito difícil, eu não gostava de acordar de madrugada, nem sair de casa sem comer, nem atender cliente, nem vender nada pra ninguém, eu tinha um propósito definido, escrever ou arrebanhar, andar em bando, coisas que mãe queria corrigir em mim, tirar de mim o meu moleque, o Nico, que era tudo o que eu tinha, foi uma péssima ideia dela me incorporar ali, já com os outros foi tranquilo, eu acho.

O negócio cresceu, e mãe é observadora pra necessidades locais, aí veio uma barraca só de aviamentos, outra de bijuterias, de meias, de enfeites e mimos pra casa que toda mulher é louca por um pinguim sobre da geladeira ou três cisnes sobre a penteadeira. Foi aí que ela deu fim no galinheiro, deixou de ter animal no quintal, era feio, e foi dando tratos à bola e colocando a gente para seguir na profissão, que era melhor que ser empregada doméstica.

Nunca tive como plano seguir este caminho também, e já desde esta época era um perrengue quando eu ficava em casa, porque era muita casa pra eu arrumar. Quando ia chegando a hora do pessoal chegar da feira, lá pelas tantas, eu corria pra fazer de conta que havia ficado em casa, escondia as bolinhas de gude, pipa e tentava deixar o ambiente o mais arrumado possível, sem conseguir. Minhas irmãs e irmãos se revelaram gente boa de vendas, eu não, eu não gosto de vender, gosto de escrever e de comprar, gosto de sombra e água fresca.

A história que vou contar aconteceu numa feira de quinta-feira, lá na Vila Albertina. Segundo ela, ia já lá pras tantas e nada de ela descolar, vender alguma coisa, o sol a pino, cabeça fervendo, as dívidas rebolando na cabeça e nada de cliente, ela baixou preço, fez liquidação, foi até onde poderia ir pra conseguir vender algo a alguém.

Veio o comando, ela correu com a mercadoria, ficou escondida, depois voltou pra o mesmo lugar, a fúria tomou conta de mãe e, como é de nosso conhecimento, a fúria é má conselheira e dependendo do horário não se deve incitar certas entidades. No auge do seu impossível, e impossível é Deus pecar, com a raiva comendo no centro, veio a palavra errada:

- Eu vendo qualquer coisa hoje, nem que seja pra o... - Falou e calou.

Algum tempo depois, chegou ali uma pessoa, uma mulher linda, muito bem trajada, muito fina com um belo chapéu preto calcado no alto da cabeça. Começou a escolher mercadoria, foi escolhendo de vários tamanhos, cores e tipos, mãe se arrependeu da palavra, mas já estava dito, já estava no vento.

A mulher linda com o chapéu preto maravilhoso escolheu quase tudo deixando só algumas peças, mãe radiante servia a cliente com alegria, ajeitou tudo bem embrulhadinho nos pacotes, fez as contas. Na hora do pagamento teve uma questão, coisa pouca, a moça bonita de chapéu preto não andava com dinheiro grande assim, sugeriu que o pagamento fosse feito com cheque, coisa de gente fina, e mesmo quem não tivesse conta como mãe era só ir ao banco e trocar na boca do caixa.

Mãe pensou, depois despensou, acabou aceitando, pensou consigo, uma mulher fina como esta não andaria mesmo com dinheiro, aceitou o cheque ainda e ajudou a senhora carregar a compra. Feito, juntou a traia, se dirigiu pra casa toda satisfeita com a boa venda realizada, se arrumou, saiu pra ir ao banco trocar o papel por dinheiro de verdade.

Quando chegou na boca do caixa teve uma surpresa, a pessoa que a atendeu disse que o cheque não tinha fundo, não valia nada e que era um cheque roubado, tadinha da mãe, voltou pra casa tão triste que ficou até doente, levou dias pra se recuperar do baque que sofreu. Sofrendo, ela lembrou das palavras que ela chamou meio-dia em ponto, depois tomou dinheiro emprestado na mão de Seu Zé das Meias e minha madrinha e comprou mercadoria, voltou a trabalhar. E só então a gente ficou sabendo do acontecido, lembro como se fosse hoje ela dizendo que foi castigo, aquela mulher linda de chapéu preto era o... Que ela chamou e ele veio com o papel sem valor.