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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nico e a saga de ser moleque de recado

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

09/10/2022 06h00

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O Ataliba foi quem inventou o WhatsApp, lá atrás, nos anos 1970, era batê e valê. Qualquer moleque ali tinha rodinhas nos pés, mas se quisesse que o recado chegasse logo mandasse o dizer por Nico e sua turma. Porém não sem antes afirmar os preceitos estabelecidos e no relógio biológico pra que tudo corresse nos conformes.
- Vô cuspi no chão, você tem que chegar antes do cuspe secar.

Existiam os recados rápidos
E os mais rápidos como os de um velório
De algum corpo pra preparar pra o enterro
Porque se juntasse dois dias o corpo azedava

Naquele tempo o poder das mulheres do Ataliba era tão grande que eram elas que atestavam e davam diagnóstico, preparava, banhava e vestia qualquer morrente. Nesta hora não tinha amigo nem inimigo, quando alguém dizia que fulano morreu, a mãe dizia:
- Vá! Chame Geralda, Dulce, Zefa, Lourdes e diga a elas que fulano morreu.
Não precisava dizer mais nada, mas o prefixo era obrigatório:
- Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo - E esperar a resposta antes de adentrar.
- Para sempre seja louvado.
E só então dar o recado, elas com certeza desligariam o fogo da panela, deixariam o que estivessem fazendo e iriam ao local.

A princípio a gente ia de casa em casa, depois a gente monopolizou uma casa só e mandava ela avisar as outras, mandava não, intuía, digo a gente porque a mãe mandava a gente ir só, mas a gente nunca ia, a gente sempre rebanhava e juntava uma turma de moleque dando recado da morte daquela pessoa, e conversando sobre nossos próprios medos já que ninguém dizia que a gente poderia ter medo, os grandes sempre diziam que moleque nunca tem medo de nada, a gente treinava muita simpatia pra deixar o medo pra lá.

Mulheres avisadas, era a hora da segunda demanda, chamar um dono de reza. Seu Osório ou Seu Onofre, o primeiro que achasse, naquele tempo não se chamava nas rezas sem o aval, presente de um dono de reza que era também a pessoa que fazia as mezinhas, hoje chamado garrafadas ou licor de mesa. Lembro que no velório de Seu Zé das Meia era já tarde da noite e o dono de reza não chegava, alguém puxou o rosário e iniciou as rezas, quando o homem chegou o negócio ficou feio e no meio da reza teve briga. Os donos de reza tinham carta e sindicato, tinha que respeitar, mas a gente pulou uma fase quando foi levar o recado, a gente deixou recado com Dona Rosinha que não era do grupo de lavadeiras, ela era apartada dos afazeres, ela mesma sorridente disse que daria o recado. Dizem que foi castigo porque o Seu Zé das Meia era casado, feirante, pai de uma ruma grande de filhos e filhas, mas tinha um não sei que, um terê tetê com Dona Rosinha que também era casada com Seu Cinco e Meia, e ela e a esposa dele eram arengadas, então ela tava proibida de ir lá. Ela pregou uma peça na gente e no dono de reza e não deu o recado, eu acho.

Naquela data, se Nico entendesse a gravidade dos fatos, teria ficado magoado com ela, mas Nico era intrigado mesmo era com a esposa de Seu Zé por conta de pequenas quiréras de conversa que ela tinha contra ele: "Ô Maria, de um jeito nas sua fia que elas não saem aqui de casa e não deixam minhas meninas me ajuda", dizia a danada a mãe, que sem piedade castigava o couro da gente com as varas da pitangueira, árvore que foi inclusive nossa primeira vara de família, por causa da língua dela que media mais de um quilômetro, e ela mentia porque ela chamava a gente pra ir a casa dela pra saber de Seu Zé e a Dona Mocinha.

Já de Dona Mocinha Nico não guardava mágoa, por outro lado, como Seu Zé nunca se decidiu com qual delas ficar de verdade, ele deixou magoado o coração de Dona Moça, então ele que sustente o fardo de ir mal rezado e chegar na porta de São Pedro com o rosário faltando conta, tem gente que só apronta, ainda qué reza. Quanto a Dona Mocinha, pelo que dizia o padre, o pastor, Dona Maria Preta e todas as bocas, o que era dela estava guardado, mas será que ela não deu mesmo o recado ou deu tarde da noite?

Naquele dia em especial, mãe mandou avisar Tia Tereza, não sei por que, a gente estava no Ataliba e a Tia no Joamar, era mais longe que perto. Mãe, muito sensível como sempre. deu o recado: "Vai lá, diga que fulano faleceu, que ela venha abrir a salve rainha". Mãe obrigava a gente a rezar porque ela mesma tinha aversão a reza, gostava mesmo era de cantar Nelson Gonçalves:
- Chegue lá, dê o recado, escute a resposta, vire no calcanhar e volte. Vou cuspir no chão, você tem que chegar antes do cuspe secar.

E agora? Entre o Joamar e o Ataliba tinha o bairro Fidalgo, ali onde fica a rua com nome de japonês, onde eu e bisa atravessávamos pra ir à igreja dela que era na casa do ... Era longe. Precisava de muita gente pra passar ali, a gente era inimigo desde o início do mundo, não sei por que mais era. Quando alguém do Ataliba precisasse passar por ali sem um adulto, tinha que se preparar pra apanhar e perder tudo que tinha, a forra acontecia quando alguém do Fidalgo precisasse cruzar o Ataliba, sem dó. A coisa era tão marcada que todo domingo havia briga na saída da missa, muitas vezes com a presença de viaturas e apostadores, na maioria das vezes quando algum rapaz queria namorar uma garota que fosse do bairro oposto. Mãe nem e sabia nem acreditava que isso pudesse acontecer, hoje quando leio Amadou Hampâté Bâ, o genealogista, e ele fala das Waldés, grupos que existiam em todas as idades lá na África, vejo que este costume se parece muito com o deles lá naquela época, incrível que mãe não soubesse. Tadinha de mãe, como ela saberia se passou a infância e juventude colhendo coisas pra os senhorios de minha bisa, mãe nem viveu essa aventura, mas nadou no Rio Panorama.

Voltando ao que era ir a casa de Tia Tereza e cumprir o veredicto inteiro. Era pra chegar, dar o recado, pegar a resposta, rodar nos calcanhar e voltar, duas passagens pelo Fidalgo ou dar a volta pela Vila Zilda, que era muito mais longe e apanhar. Tia Tereza, de pirraça, fazia Nico beber água, beber suco, ficar pra o almoço.
- Duvido que sua mãe mandou você voltar ligeiro, que nada! Daqui você só sai depois que descansar e por derradeiro comer alguma coisa. Fala pra ela que eu mandei e pronto!

Você já esteve entre duas potenciais mandonas? Se ficou, já sabe como é estar lascado, mas a comida de Tia Tereza era deliciosa, valia a pena, mas a comida de mãe também era. Teve uma vez que deu até pra dar uma cochilada depois do almoço e o coro foi dobrado.

Nunca foi fácil ser moleque de recado, caso eu tivesse sido criado pra este fim e nunca tivesse passado pela escola, teria sido melhor, porque pra substituir um único moleque rezador e levador de recado foi preciso que o capitalismo inventasse várias funções. Tudo isto pra desempregar toda uma geração de gente já formada, e com a ladainha, o credo, e a salve rainha na ponta da língua. Coisa que eu tento esquecer e não consigo, com direito a prefixo: "Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo" ou "Epa Baba, posso entrar", ou ainda "Venho em paz", esta última servia pra todo lugar, a prática vinha de nunca trocar a mensagem dependendo da pessoa, foi substituída pela campainha. Amadou Hampâté Bâ narra em seu livro o menino fula que "Sua etnia era imprescindível, acreditar e passar adiante um recado sonhado". Era normal uma pessoa ter um sonho e andar por vários dias pra entregar um recado sonhado em outro vilarejo, passar por todas as intempéries da estrada, dar o recado, receber ali algum cuidado, rodar no calcanhar e retornar. Também considero este costume um legado, uma tecnologia ancestral, também teve ele sua carreira interrompida porque teve que ser integrado ao exército britânico, se não me falhe a memória, e não pode ficar em seu povoado. Por mais que sua mãe usasse de influência pra dissuadir os mandantes da época, Amadou relata que teve aí suas boas e ruins consequências. Ao ir pra escola dos brancos e ser retirado das escolas do alcorão ele não podia falar a língua materna, e só era alimentado ou só podia beber água se o pedisse na língua dos brancos, e quem o ajudasse seria castigado como ele. Assim era o método infalível das escolas coloniais daquele tempo pra quem não fez a travessia.

O lado bom foi que os meninos da terra passaram a conhecer e identificar a fala do inimigo. Língua mãe não se esquece, seu moço! E foram estes garotos que criaram as primeiras frentes de libertação como a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique).

E será assim que um dia, nós, moleques de recado, libertaremos o mundo do jugo destas pessoas que nos exploram, e o recado será dado por nossas mães, tipo: "O almoço tá pronto, vem logo, vou cuspir no chão hein!". Nunca desdenhe do poder e força de um moleque de recado.

Afirmado Nico