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Anielle Franco

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nossas vidas importam - Justiça para Kathlen Romeu

A jovem Kathlen Romeu, grávida, foi morta no Rio - Reprodução/Instagram
A jovem Kathlen Romeu, grávida, foi morta no Rio Imagem: Reprodução/Instagram

14/06/2021 06h00

Inicio essa coluna em mais um dia 14, desta vez falando de algo que em mim, como mulher negra, mãe de duas meninas, toca de uma forma diferente. Antes do assassinato de Kathlen, estava em uma reunião fazendo planos para o Instituto Marielle Franco, pensando e construindo o futuro de uma organização, mas também meu e da minha família, no momento que recebemos a notícia, imediatamente nos mobilizamos para tentar entender o que havia acontecido e como poderíamos ajudar aquela família. Quando o furacão passou, me vi sozinha refletindo sobre o futuro, e quem são as pessoas que têm o direito de pensar o futuro, a construção de uma família, a celebração da vida.

Talvez por isso ser negado para nós mulheres negras, de formas tão diferentes ao longo da vida, é que muitas mulheres não conseguem se ver constituindo família. Kathlen de Oliveira Romeu, de 24 anos, estava grávida de 14 semanas e morreu no dia 8, depois de ser atingida por um tiro de fuzil durante uma ação ilegal da policial no Complexo do Lins, na zona norte do Rio.

A morte de Kathlen não é uma exceção. Entre as 715 mulheres baleadas no estado do Rio de Janeiro desde 2017, ao menos 15 estavam grávidas, segundo um levantamento do Fogo Cruzado. Nessa complexa rede que custou duas vidas, o poder público guarda uma parcela enorme de culpa sobre isso. É inadmissível qualquer operação em um contexto da pandemia, e além disso, isso é proibido segundo a decisão da ADPF Das Favelas, de junho do ano passado. Segundo a decisão, qualquer operação que precisar ser feita em qualquer favela do Rio de Janeiro tem que levar em consideração que existem vidas ali. A maioria dos moradores do Lins falaram sobre a entrada truculenta que aconteceu ontem antes dos tiros, que acabou resultando nesse crime bárbaro. A famosa "bala perdida" tem cor e endereço.

Ser mulher negra no Brasil hoje é celebrar a gestação de uma vida, para três dias depois ter a vida retirada de forma cruel por uma ação recorrente que o governo do estado do Rio de Janeiro e a mídia hegemônica, inclusive, a própria UOL, como bem apontou Bianca Santana na sua coluna da semana passada, insiste em chamar de "operação policial". Ser uma mulher negra no Brasil e decidir ter um filho é ter que se preocupar se aos 10 anos ele não vai desaparecer e ninguém vai falar sobre, como foi o caso dos meninos de Belford Roxo, é não saber se eles vão ser recebidos com 111 tiros voltando de uma comemoração de aniversário, como os meninos de Costa Barros, é não saber se sua filha e a prima receberão tiros no portão de casa, como Emily e Rebecca. E, o pior, é nunca saber se algo será feito ou se alguém irá responder se a vida dos seu filho ou filha for retirada.

É difícil comprar a narrativa de "bala perdida", "erro" ou "efeito colateral" quando isso acontece o tempo todo e quando as vítimas são sempre iguais. Nós sabemos a cor e o endereço de quem não tem direito a constituir família, a pensar no futuro, a celebrar e viver a vida. E isso cansa. Enquanto não nomearmos corretamente o que acontece em nossas favelas e periferias como genocídio, e não discutirmos o direito à vida para população negra e favelada, e o quanto custa essa política de segurança, anti-drogas e pró-morte em nosso país, caminharemos a cada dia com passos mais largos rumo à barbárie e um absoluto caos.