Diga apenas sinto muito

Joanna de Assis conta como perdeu um bebê. E diz que falar sobre o aborto ajuda a lidar com a dor

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Gigi Kassis/UOL

"Eu estava dentro da Rede Globo, em São Paulo. Grávida de oito semanas e tinha ido em uma pauta, fazer matéria, normal... Me sentia super bem, não tinha sintoma, não tinha enjoo... Era uma grávida ativa, corria sempre no parque.

Lá na emissora, fui ao banheiro e tudo aconteceu: veio uma enxurrada de sangue, tomei um susto enorme e dei um grito. Uma produtora estava comigo. Na época, não tínhamos intimidade. Com tudo o que aconteceu, viramos muito amigas. Ela foi realmente incrível. Percebeu na hora o que estava acontecendo e foi de uma sensibilidade gigante.

Essa produtora trancou a porta do banheiro e falou: 'Olha só, eu estou aqui, já tranquei o banheiro e quando você quiser sair, está tudo bem, ninguém vai te ver'. Eu saí, liguei para minha médica e fui direto para o hospital. Ainda tinha esperança de salvar o meu filho. Não conseguimos.

Quando decidi contar para as pessoas, muitas não sabiam o que falar. A mulher tenta se abrir e ouve coisas erradas. E nem é por mal, é porque a pessoa não sabe mesmo. Só que dói. Lembro de ter escutado coisas que eu não queria ouvir:

—É assim mesmo, é normal.

—Daqui a pouco você engravida de novo — essa é clássica...

—Faz uma viagem— e assim vai.

As pessoas não entendem que não existe substituição. Não é que você perdeu uma coisa e vai lá e compra outra. É uma dor, uma perda, é um luto. E percebi o quanto as mães se sentem sozinhas e não conseguem se abrir e acabar com a dor."

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Do luto à conscientização

O primeiro sentimento que apareceu no coração de Joanna de Assis, repórter do esporte da Globo desde 2006, logo depois de perder seu bebê foi a culpa. A jornalista, hoje às vésperas de completar 40 anos - em 24 de dezembro próximo -, chegou a pensar que tinha cometido deslizes e não teria se cuidado o suficiente durante a gestação.

"Eu me culpei muito. Pensei que a culpa era minha, que tinha feito alguma coisa errada... A mulher sempre se culpa nesse momento. Achei: 'Ah, será que é porque eu corri no Parque do Ibirapuera?'. Me perguntava o que tinha feito, se tinha comido algo errado, o que tinha acontecido?"

Tempos depois, a repórter procurou ajuda profissional para se recuperar do luto e conseguir se reerguer. No dia 11 de novembro de 2020, um ano após o aborto, Joanna publicou um texto em seu perfil nas redes sociais. Ela decidiu se abrir para homenagear o seu filho e projetar um grande abraço em mães e pais que sofrem com essa dor.

"Chorei por uma semana. Eu escrevi ao longo dos dias, porque começava e ficava emocionada. Não tinha contado para ninguém. Lembro de ter postado e, assim que meu marido viu, ele saiu da sala e veio me abraçar: 'Acabei de ver seu texto'. Perguntei como ele se sentiu. Ele falou: 'Achei lindo, a gente tem que sempre se lembrar do nosso bebê coxinha'. E que bom que ele se sente assim também, porque é como eu me sinto", destacou —o bebê coxinha ganhou o apelido por causa do salgado, um dos desejos de grávida de Joanna.

Muita gente me mandou mensagem e eu fiquei bem surpresa. No dia em que eu postei, um ano depois que perdi meu bebê, uma amiga minha estava abortando. A primeira coisa que ela viu foi essa publicação. Algo surreal. Ela me ligou no dia seguinte

Joanna de Assis

O abraço de Joanna surtiu efeito e chegou em mais gente do que ela esperava. Uma das pessoas que recebeu esse carinho à distância foi uma grande amiga da repórter, que está sofrendo com o aborto de seu bebê.

"Minha amiga me ligou e disse: 'Não acreditei quando eu vi. Estava me sentindo muito sozinha'. Ela não teve coragem de contar nem para a mãe que estava grávida, porque ela estava com medo da gestação, só o marido sabia. Ela viu a publicação e me procurou. Conversamos muito sobre vários assuntos: saúde, como eu me curei emocionalmente e fui buscar ajuda. Ali eu tive certeza que que foi muito válido o que eu fiz", relatou Joanna.

"E o apelido do bebê dela era 'bebê feijão', similar ao codinome que dei ao meu bebê. Falei: 'Amiga, você é a mãe, você não pode deixar ninguém te fazer duvidar disso e precisa respeitar o que está sentindo. Você vai ser mãe independentemente da forma: se você pegar uma doação de óvulos, se você adotar, não importa'. Eu quero desmistificar essas coisas na dor das mães, porque eu passei por esse processo", acrescentou.

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Pais sofrem menos, mas também entendem a dor

Com uma base de seguidores predominantemente masculina, Joanna contou que também recebeu mensagens de homens após a publicação de seu texto. A repórter, então, trouxe à tona uma recordação de um momento que viveu com seu marido, Henrique Barbosa.

"Me lembro que, no meu ápice, quando estava muito mal, fui até a sala e meu marido estava jogando videogame... Parei e coloquei a mão no ombro dele e falei: 'Meu, você está bem?'. Ele falou: 'Eu tô, mas estou preocupado com você'. Aí eu disse que queria saber como ele estava e conversamos..."

"Eu notei que a maioria dos homens, quando acontece isso, sofre pela mulher. Eles demoram a entender o que era aquilo, o que era aquela criança", relembrou Joanna, emocionada.

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As coisas erradas que as mulheres ouvem

A maioria das mulheres desaba com o sentimento da solidão assim que sofre o aborto. Segundo Joanna, as mães ouvem coisas erradas e se fecham ainda mais, porque sentem que é errado sentir tanta dor nesse momento.

"Ninguém tem a obrigação de saber, mas eu acho que uma vez que eu posso contribuir com um panorama do que é e tentar ajudar as pessoas a entender, vou fazer. Ninguém precisa passar por isso, mas dá para ser mais sensível, humano, empático", contou.

"Eu já falei a coisa errada, pensei a coisa errada. Até que aconteceu comigo. Eu sei que as pessoas não falam por mal, mas não se fala [que se está dizendo algo errado]. Ninguém vai substituir uma pessoa por outra... 'Ah, tudo bem, daqui a pouco você engravida de novo', 'fica tranquila que você é nova, vai engravidar já já', 'Imagina, é normal, você sabe que isso é normal, né?', 'Por que você não faz uma viagem?'. Não, gente. Não existe isso".

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Dor subestimada

A jornalista acredita que todos precisam entender melhor o que se passa com mães que perdem bebês e respeitar esse sofrimento. "O aborto é uma dor muito subestimada. Muito subestimada. E ela não deveria ser".

"Por ser subestimada, a mulher não fala, tem vergonha de contar, se sente mal e sozinha. E não tem coisa pior no mundo do que você se sentir sozinha no meio de uma dor e não conseguir tirar isso de dentro de você de alguma forma", falou Joanna.

"Ainda é uma coisa que me emociona muito. Mas acho extremamente importante falar. Temos mesmo que fazer esse movimento do bem, para perderem o medo de falar e educar para entenderem essa dor, que destrói vidas, destrói mulheres. As mulheres sofrem com depressão, não falam sobre o assunto, se culpam, terminam relacionamentos, ouvem muita besteira de médicos e amigos", destacou.

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"Eu já falei a coisa errada quando pessoas próximas passaram por isso"

"Eu achava que era uma dor exagerada. Cometi esse erro. Quando uma grande amiga sofreu um aborto há dez anos, ela ficou num quarto escuro por uma semana. E eu comentava com as outras amigas do grupo: 'Gente, mas por que ela está assim?'. Eu não entendia essa dor, até acontecer comigo. Nossa... Como eu estava errada no meu pensamento.

Certamente as pessoas não entendem que a dor é a mesma de perder um filho que já nasceu. Eu senti isso, pensava isso. Quando sofri o aborto, eu decidi telefonar para essa amiga para pedir desculpas. Eu pedi perdão. E ela nem sabia que eu pensei errado e falei errado. Na época, ela se trancou literalmente, conversava com o marido dela. Hoje eu pedi mil perdões e disse a ela: 'Eu pensei tanta coisa errada na época. Entendo sua dor'.

Conversei, também, com outra pessoa que eu sabia que tinha sofrido o aborto. Essa amiga tinha perdido o filho recentemente. Ela me contou o quanto tinha escutado coisas cruéis e me fez uma lista de frases que as pessoas falaram para ela, alguns absurdos até maiores do que os que escutei, e eu aprendi muito. Minha amiga sofreu o aborto cinco meses antes de mim e me deu um tutorial do que não fazer. Quando aconteceu comigo, vi o quanto ela tinha razão em tudo o que ela me falou e acho que as pessoas deveriam respeitar mais essa dor."

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Sinal de alerta para doença séria

Depois que sofreu o aborto, Joanna descobriu que tinha uma condição genética muito séria: a trombofilia. O médico ginecologista Geraldo Caldeira conta que a doença pode ser hereditária ou adquirida e, por alterar os fatores de coagulação, pode causar o aborto.

"A paciente pode ter mais risco de ter coágulos que podem produzir trombose venosa, embolia pulmonar, AVC e outras doenças. Na gestação, a trombofilia acaba entupindo a circulação dentro do útero e acaba levando ao aborto. Além disso, pode levar a óbito fetal, anemia de baixo peso, diminuição do líquido amniótico, parto prematuro e muitas outras complicações", explicou Caldeira, membro da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) e da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (SBRH), além de médico do Serviço de Reprodução Humana do Hospital e Maternidade Santa Joana.

"Eu desconhecia o meu corpo e passei a conhecer tudo o que poderia me causar um aborto, tudo o que poderia me deixar doente. Eu não tinha o menor conhecimento. Acho que informação é poder. As pessoas não têm essa informação e isso começou a me incomodar também. Eu descobri que tenho trombofilia e fui tratar. Como nunca me pediram esses exames? Acredito que deveria ser básico para uma mulher ativa e que queira engravidar", destacou Joanna, que atualmente faz tratamento com um anticoagulante injetável diariamente.

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De acordo com o médico Geraldo Caldeira, o diagnóstico precoce é extremamente importante antes de as mulheres engravidarem. "Ao descobrirmos que a paciente tem trombofilia, entramos com anticoagulante e isso diminui muito o risco de aborto e de todas as outras grandes complicações", explicou Caldeira.

Joanna conversou com amigas próximas para saber se elas tinham conhecimento tanto da doença como dos exames para detectá-la. Nenhuma delas conhecia o assunto.

"Me assusta como a gente fica vulnerável com coisas tão simples. Esse exame de trombose é algo caro e o convênio não cobre. Pessoas que não têm informação e boa condição financeira passam batido e isso é triste. Mas até mesmo as pessoas que têm acesso a médicos particulares e redes de laboratórios de análises clínicas também não sabem disso".

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"Não precisamos ter opinião sobre tudo"

Para Joanna, todas as palavras ruins que ela ouviu poderiam ser substituídas por gestos de carinhos. Às vezes, as pessoas querem dar a opinião com intenção de ajudar, mas não têm conhecimento o suficiente para abordar um assunto de maneira correta.

"Você não precisa ter opinião sobre tudo. Ninguém precisa dar opinião sempre. Você pode simplesmente ouvir e falar: 'Sinto muito por você'. Não precisa falar o que acha, não precisa cagar regra sobre uma coisa que você não sabe".

"Se alguém te falar que perdeu um filho, é simples: diga sinto muito, mande um chocolate, uma mensagem carinhosa, um ursinho, flores... Você vai ver que isso vai ajudar muito", afirmou Joanna.

Eu percebi o quanto é impressionante o quanto nós, mulheres, somos fortes, o quanto a gente se redescobre. A gente cai, mas a gente levanta. Eu fico admirada com isso. Meu marido sempre se impressiona

Joanna de Assis

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Joanna firme e forte

Joanna passou por um processo: luto, aceitação, amadurecimento. Hoje, pouco mais de um ano após a perda de seu bebê, a repórter está ainda mais forte. A necessidade de falar sobre o assunto e ajudar a conscientizar outras pessoas faz parte dessa evolução.

"A pandemia foi um momento difícil para mim, precisei me tratar e fazer cirurgia, mas estou sempre de bom humor, me mantendo forte. Para mim, o que mais impressionou nesse processo é que vi que estava muito forte para passar por tudo isso. O meu começo nessa jornada definitivamente não foi assim, mas eu me fortaleci demais. Nesse ano, eu e meu marido nos fortalecemos demais, também. Às vezes, essa experiência separa e afasta os casais. Aconteceu o extremo oposto para a gente", contou Joanna.

"Quem aplica a injeção do anticoagulante em mim, todos os dias, é meu marido. A gente tem essa parceria. Ele odiava agulha, morre de medo. E não tinha como eu colocar sozinha. Hoje ele aplica amarradão".

De novembro de 2019 a novembro de 2020, Joanna sofreu com o luto, aprendeu e descobriu muitas coisas e se redescobriu. Agora, ela e o marido Henrique se preparam para uma nova gestação.

"A gente está sempre pensando em ter outro bebê... Estamos muito tranquilos, sabemos que vai acontecer na hora certa. Eu estou saudável agora, recuperada... Estou bem. Essa é a parte boa de toda a história. É questão de tempo... Logo menos estaremos contando novidades boas por aí".

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