Não é traição

Minha História - Nathalie Moellhausen, campeã mundial de esgrima: "Ganhar pelo Brasil foi mais intenso"

Nathalie Moellhausen Em depoimento ao UOL, em São Paulo Rafael Roncato/UOL

O dia do meu casamento rendeu fotos e vídeos incríveis, mas um deles eu já perdi as contas de quantas vezes vi e revi. Era o dia em que meu pai me entregaria o volante para que eu me tornasse a motorista da minha própria vida. Até no caminho da igreja era ele quem guiava: ele foi o motorista de um antigo carro conversível. Por um momento, pus meu buquê de rosas brancas no colo, saquei o celular e comecei a filmá-lo todo alegre.

"Nathalie, vai ganhar pelo Brasil ou não vai?", ele me perguntou, mais como pedido do que como cobrança. E eu respondi firme: "Vou ganhar". Ele continuou: "Eu sei que você vai. Vai ganhar pelo Brasil. E esse dia vai ser ainda mais forte, mais lindo, porque você vai saber que venceu por ter feito uma escolha e insistido nela até o fim".

Eu não sabia, mas aquele seria o último dia em que eu veria meu pai. Aquela foi nossa última conversa frente a frente, no verão europeu de 2017. Ele morava no México e iria me visitar em Cuba, em janeiro, em uma competição na qual sempre nos encontrávamos, mas não conseguiu. Combinamos de nos vermos em junho, então, porque o Pan-Americano seria também em Havana. Não deu tempo. Ele morreu em 2018, nove meses depois do meu casamento, sem se despedir de mim.

Por um tempo, a esgrima parou de fazer sentido para mim. Eu sentia algo como "ele não vai estar aqui para me ver ganhar, então, para que vou ganhar?". Eu sentia como se esse sonho não existisse mais. Como se eu tivesse deixado de ser muitas coisas. Inclusive, deixado de ser brasileira. Era um sofrimento muito grande.

Eu procurava e não encontrava o meu projeto de ganhar pelo Brasil. Eu temi, de verdade, que aquilo não fizesse mais parte da minha vida, de mim. Desejei estar aqui por tantos anos e, de repente, virei as costas e achei que não era isso.

Até que meu técnico francês, com quem treino desde a adolescência, me procurou e disse: "Nathalie, você não pode desistir agora. Você tem que fazer isso pelo Brasil". Tinha, mesmo. Quando decidi que dali para frente defenderia o Brasil na esgrima, o fiz por um propósito. O dia lindo, que meu pai havia previsto, ainda estava por vir.

Treinei por oito meses, olhando diariamente para a minha bandeira do Brasil e sonhando em vê-la no alto do pódio. Eu sabia que ganhar pelo Brasil seria mais forte, mais intenso, diferente de tudo que já havia vivido e que a esgrima já havia visto. E foi mesmo. A vida nos surpreende de um jeito que a gente não espera.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Laços familiares

Sou filha de uma família de imigrantes. Meu avô paterno tinha origem grega e foi cônsul da Itália na Alemanha durante a Segunda Guerra, ajudando diversos judeus a fugir do Nazismo. Tenho muito orgulho dos livros que contam essa participação honrada dele.

Meu pai nasceu na Itália, assim como meu avô materno, um italiano apaixonadíssimo pelo Brasil. Foi aqui que ele conheceu minha avó, uma brasileira superbonita, que tocava violão, como ele. Daí meu gosto por tocar, também. Os dois foram morar na Itália, onde nasceu a minha mãe.

Eu nasci na Itália, em Milão, mas sempre tive laços fortes com o Brasil. Quando os dois países fizeram a final da Copa do Mundo de 1994, eu lembro bem, meu avô chamou um monte de amigos para ver o jogo na casa dele, todos torcendo para a Itália. Mas minha mãe, minha avó e eu torcemos para o Brasil.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Pra mim, é a coisa mais natural do mundo. Desde pequena, eu via minha mãe torcendo para o Brasil e torcia também. Não é que tivesse algo contra a Itália, mas se eu tivesse que escolher, era Brasil. Para minha mãe, sempre foi algo importante que eu tivesse esses laços. Durante toda a minha infância, minhas férias eram no Brasil.

Com ela e minha avó, eu só falava português em casa. Minhas babás também eram brasileiras — uma delas, a Lucy, foi testemunha do meu casamento e sabe todos meus segredos. É quem me corrige quando eu erro uma palavrinha em português.

Na adolescência, meu prazer era tocar violão. Na escola, eu e dois amigos formávamos um trio que tinha um nome brasileiro: Baiúca. Tocávamos bossa nova, Garota de Ipanema. Eu compunha umas músicas, mas acho que não era muito boa nisso, viu. Nem me peçam para cantar, ok?

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Era para ser

Fiquei uns 10, 12 anos sem vir ao Brasil. Voltei para disputar uma Copa do Mundo no Rio de Janeiro. Lembro de estar com meu técnico no Pão de Açúcar e dizer a ele: "Me sinto em casa. Não sei por que, mas acho que vou fazer alguma coisa um dia aqui".

Sempre senti essa coisa, sabe?

Mas nunca parei para pensar o quê. Era só uma sensação. Até que, em 2013, por um ano, eu fiquei fora das competições para trabalhar como diretora de arte da Federação Internacional de Esgrima. E o presidente da Confederação Brasileira começou a conversar com o da Italiana, que me perguntou se eu já tinha pensado em competir pelo Brasil. Até tinha, quando cheguei no adulto, mas nunca de forma muito séria.

Naquele momento, decidi passar mais quatro meses por aqui e entendi que tinha acontecido algo dentro de mim. Meu pai, que sempre foi aquela pessoa que diz "quebra com tudo, vai, se joga", dessa vez não fez diferente: "Vai!"

Minha avó também me ajudou muito. Por causa dela, eu tenho o passaporte brasileiro. Quando eu fiz 18 anos, ela pegou todos os meus documentos e disse que ia refazer meu passaporte, mesmo que eu nunca precisasse usar. Ela fazia questão, e eu passei a fazer também. Nunca deixei de renovar, mesmo sem utilizá-lo. Era uma coisa minha.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Um dia, estávamos assistindo à televisão e as italianas estavam na TV. Elas tinham ganhado o Mundial. Eu estava triste, chorando, e ela disse: "Ai, Nathalie por que você não faz isso pelo Brasil? Imagine você sendo campeã mundial pelo Brasil, o que seria?". Essa frase ficou na minha cabeça.

Voltei a falar com minha avó sobre isso um tempo depois. Estávamos ela e eu sentadas em dois sofazinhos pequenininhos, um de frente para o outro, na nossa casa na Itália, e falei para ela que estava pensando seriamente na proposta. Ela me disse: "Nathalie, você tem que fazer isso. Confie em mim".

Quando eu ganhei a minha medalha de ouro, eu levei para ela. Ela chorou muito, muito, muito, como sempre chora quando eu chego e quando vou embora. Disse a ela que eu tinha prometido a medalha. E que estava cumprindo a promessa.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Um novo passaporte

Quando eu tinha 13 anos, fui visitar meu pai. Ele estava morando em Londres e comprei uma calça de quatro cores. Eu estudava em uma escola chique na Itália, de gente rica, onde todo mundo estava sempre arrumadinho. Claro que eu fui para a aula com a calça e foi um escândalo.

Muitas pessoas falaram "vai trocar essa calça", mas eu tinha a minha personalidade. Da mesma forma, muitas pessoas me criticaram por decidir trocar a Itália pelo Brasil. E me perguntam se eu me arrependi. Arrepender do quê?

A calça, eu coloco e tiro se quiser. Na esgrima, eu tomei uma decisão e não posso voltar atrás. E, como em toda decisão, esta também veio com uma responsabilidade que precisa ser assumida, junto com as consequências dela. É um problema só meu.

Na Itália eu era militar da Aeronáutica e, pelo sistema de apoio ao atleta de lá, eu poderia ter uma carreira depois que parasse de competir. Abri mão disso e recomecei do zero, sem apoio nenhum do Brasil, porque era só a número 250 do ranking mundial e não tinha posição no ranking nacional. A regra de apoio que valia para todos da esgrima brasileira, valia também para mim, sem privilégios. Por um tempo, intercalei meus treinos com serviço de personal trainer.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Para minhas companheiras da seleção italiana, foi difícil. Elas me chamaram para conversar, não entenderam. Disseram "Mas, como? Você poderia ter sua retomada pela Itália, não precisava fazer isso". Gerou muita polêmica, críticas. Houve quem achasse que eu estava mudando porque, pelo Brasil, seria mais fácil chegar à Olimpíada. Para ser sincera, deixei que pensassem isso, porque eu iria calar a boca deles quando eu fosse campeã.

Mudar de nacionalidade não é uma coisa bem vista no mundo do esporte. Você tá, de certa forma, traindo seu país. Na verdade, eu já tinha passado por algo parecido no meu começo de carreira. Eu comecei a competir internacionalmente aos 15 anos, os resultados apareceram, e, aos 20, fui convidada para treinar em Paris. Hoje seria algo normal, mas na época a Itália não queria que eu treinasse com um francês. Era uma mentalidade muito fechada, muita rivalidade, e eu seria a primeira italiana a ir para a França. E eu era muito rebelde nessa época, ainda tinha minha banda. E, agora, ela que não tocava só bossa nova: a gente mandava rock pesado, fazia shows, era muito legal.

Para mim, as coisas eram claras. Não era só a questão da estrutura de poder do esporte, mas do que você, como atleta, quer. Eu queria ter aula com meu treinador porque era ele quem me conhecia. Mas, como o sistema não queria isso, eu fiquei muito brava. "Por que eu tenho que ficar aqui?"

Fui para a França e não me arrependi. Treinando na França, com meu treinador, e competindo pela Itália, fui medalhista de bronze no Mundial de 2010, no individual, campeã por equipes em 2009 e terceira colocada em 2011. Minha trajetória só terminou em 2012, quando fui à Olimpíada para competir apenas por equipes.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Filosofando

A melhor escola de vida que eu tive foi a esgrima. Aprendi muito na faculdade de filosofia em Paris, mas a parte filosófica foi voltada para campos artísticos. A filosofia é um pouco como Bruce Lee. Aliás, sabia que até ele foi estudar filosofia para entender melhor a própria disciplina? Filosofia ensina muito sobre comportamento e ética. E essa linguagem é importante para poder comunicar as mensagens certas para a sociedade.

O esgrimista é um artista, só que com aquelas regras de atleta, que são boas. Porque, muitas vezes, artistas, pintores, podem ficar naquela visão longe da realidade. A gente não pode sair disso, tem que estar na pista, treinar duro, ficar nas regras comportamentais de respeito pelo adversário e pelo seu técnico.

Tudo isso é super formativo porque faz com que você, quando jovem, fique dentro do sistema. Você vai competir com pessoas que são menos e vão crescer, mas também com pessoas que são mais e vão te desafiar a se superar. Tudo isso é formativo.

Tento sempre correlacionar minhas paixões. Eu gosto muito mais de ler biografias ou autobiografias. Me interesso pela história de mestres samurais. A cultura oriental me interessa muito, principalmente para aplicar o que aprendo nas artes marciais. Filosofia estoica também, porque passa pela história de grandes imperadores e você entende as memórias, os respeitos aos encargos.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Devolvendo o que ganhei

Atualmente, gasto muito tempo tentando entender meu papel como campeã mundial de esgrima pelo Brasil. Qual a minha missão. Sinto que estou aqui para poder inspirar as novas gerações através da minha história.

É uma via de mão dupla. Antes do Mundial, eu achava que o único jeito de encontrar minha identidade era ganhar pelo Brasil. Eu dizia para minha psicóloga que, quando eu ganhasse, eu queria tocar muitos projetos artísticos, eventos, abrir uma escola na favela, ter um projeto social. E ela me perguntava: "Ok, mas e se você não ganhar? Você vai fazer o que?". Eu sentia que precisava do Brasil para que minha experiência fosse justificada. Como eu contaria para as crianças que o trabalho mental funciona se eu não ganhasse?

Acho que a responsabilidade do atleta não é só ganhar. É a história que ele quer contar. O meu projeto não é somente ensinar a esgrima, mas usar a esgrima para dar a possibilidade de a criança, o jovem, entender como funciona a mente, como a gente pode se educar nesse sentido, como as crianças podem alcançar seus sonhos. Usar a esgrima como desculpa para comunicar de outro jeito.

Durante a pandemia, lancei meu projeto 5 Touches (cinco toques), realizando lives que ajudaram as crianças a encontrarem motivação. Fiz treino de esgrima, palestra motivacional, ensinei coreografia à distância. Isso é fazer esgrima de uma forma não tradicional, é o que eu acredito.

Eu tenho a missão de comunicar, e cada pessoa vai pegar um pedacinho. O que eles não entenderem hoje, vão entender amanhã. Eu não fico pensando no que as crianças, os adolescentes, esperavam de mim, mas no que eu posso oferecer a eles. Ser sincera e falar de uma forma que as pessoas vão entender.

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Minha história não é a mais clássica, de começar o esporte numa classe social baixa. Mas o que mais me deu força foi me afastar do meu nível social para viver uma vida mais simples. Isso é muito bom aprender. E a esgrima não é um esporte de dinheiro. A esgrima é suar.

Entendi com o tempo que às vezes é mais difícil renunciar a algo que você já tem, a um certo conforto, para realizar outra coisa, do que conquistar algo que você não tem. Renunciar, numa sociedade como a atual é muito mais difícil. Você passa por muita discriminação social. Quando você não tem tudo isso, você não tem esse problema porque está em uma fase de conquista, não passa pela renúncia.

Eu sei que a esgrima é uma escola de vida e que ela vai trazer educação a uma sociedade que tem violência, agressividade e todas essas coisas que, na verdade, são só fruto de falta de consciência de si mesmo. A gente aprende os próprios limites, aprende que força não é violência. A gente não usa a espada pra matar o outro, mas para se educar, para aprender a respeitar o outro.

Não assumir minhas responsabilidades como uma brasileira campeã mundial de esgrima seria uma falta de respeito comigo, com aquilo que aprendi e com o que propus para mim. A vida é como uma pista de esgrima, onde tem dois momentos. O de aprender (encontrar as pessoas certas que vão te ajudar) e o momento de entregar tudo o que você aprendeu. Eu tenho que fazer isso porque sei que as pessoas me ajudaram a chegar até aqui.

Lucas Lima/UOL

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Tóquio, originalmente marcados para agosto de 2020, foram adiados para o ano que vem. Com todo o mundo impedido de sair de casa, os atletas tiveram de parar, pensar e traçar planos para recomeçar. Para marcar essa etapa, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro que devem brilhar no Japão.

A primeira edição teve o campeão olímpico do salto com vara de 2016 Thiago Braz, que fez um relato sincero sobre relacionamentos, como o que está reconstruindo com seus pais, e amizades, como as com o saltador Augusto Dutra, o treinador Elson Miranda e o fisioterapeuta Damiano Viscusi, que morreu em 2017.

Ler mais

+ Minha História

Marcus Steinmeyer/UOL

Aline

Vice-campeã mundial de luta olímpica relata infância humilde e abusos: "Sofri abusos sem entender o que era".

Ler mais
Ricardo Borges/UOL

Silvana

"Caraca, sou uma atleta olímpica": campeã mundial de surfe lembra como foi a infância em uma barraca de praia

Ler mais
Lucas Lima/UOL

Diego

"Eu acho que sou gay", disse Diego em mensagem de celular ao amigo Michel Conceição quando tinha 19 anos

Ler mais
Arte/UOL

Ingrid

O relato da saltadora olímpica que foi humilhada mundialmente por fazer sexo na concentração: "Fui detonada"

Ler mais
Topo