Um filme na sua cabeça

Ele inspirou música dos Beatles e até o filme 'Crepúsculo': mas o que ciência já sabe sobre o sonho?

Lívia Inácio (texto); René Cardillo (arte) Colaboração para o UOL

Vamos começar com três dicas: ele já inspirou músicas como "Let It Be", descobertas científicas como a tabela periódica, além de ter ajudado pessoas a lidar com traumas. Estamos falando do sonho, que, diferente dessa charada, está longe de ser desvendado. Mas não por falta de pesquisa.

Cientistas se debruçam há décadas nos mistérios do sonho, e seu vínculo com a espécie humana é ainda mais remoto. Em civilizações antigas, os sonhos embasavam até decisões políticas de autoridades.

Um exemplo vem da Bíblia: em 606 a.C., Nabucodonosor II teria chamado o profeta Daniel para interpretar o que o rei caldeu havia sonhado. Na época, existiam grupos treinados para esse tipo de missão. Sonho era assunto de interesse público e ajudava monarcas a definir os passos de seus governos.

Foi o caráter tecnicista da modernidade que tirou o protagonismo dos sonhos no Ocidente, por volta do século 18. Embora diversas comunidades tivessem mantido a atenção ao sonhar, ele só voltou ao cerne do conhecimento hegemônico no século 20, com a ascensão da psicanálise e o desenvolvimento da neurociência.

O tema é intrigante, mas nebuloso. E tanto mistério divide opiniões entre especialistas.

Há quem entenda que sonhos sejam combinações aleatórias de ideias, e sem função específica. Do outro lado, há os que acreditam no papel cognitivo e reparador do sonhar.

Agora, você confere aqui até onde a ciência já chegou nesse debate.

Freud explica?

Lançado em 1900, "A Interpretação dos Sonhos", de Sigmund Freud, foi um marco nos estudos sobre o onírico. Nele, o psiquiatra austríaco avaliou mais de 200 sonhos, incluindo alguns dele mesmo.

Diferente do que muita gente defendia na época, Freud argumentava que os sonhos eram representações de desejos individuais e deveriam ser interpretados com base na vivência de quem sonhava.

O neurologista dividiu o conteúdo onírico em duas partes:

Conteúdo manifesto: é o sonho propriamente dito, aquilo que você conta que sonhou.

Conteúdo latente: são os desejos escondidos no chamado inconsciente, onde estão seus pensamentos mais secretos. Um conteúdo impreciso, que ao se tornar manifesto ganha forma e pode ser interpretado.

Ainda segundo o livro, os sonhos costumam ser confusos porque há uma instância censora na mente que disfarça os desejos para que eles não apareçam em sua forma literal.

Ainda que tenha sido inovador, "A Interpretação dos Sonhos", de Freud, sofreu críticas.

Uma delas diz respeito à vinculação exclusiva dos sonhos a desejos. O próprio Freud chegou a publicar, décadas depois, em "Além do Princípio do Prazer", que sonhos (em especial os repetitivos) poderiam representar traumas, e não apenas vontades reprimidas.

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung rompeu com a linha do médico austríaco ao propor novas ideias para a interpretação da psique, como a crença no chamado inconsciente coletivo. Repleto de símbolos universais, ele precederia o inconsciente individual e poderia ser expresso em sonhos.

Hoje, cientistas que pesquisam o tema sugerem que eles podem também refletir soluções de problemas intelectuais e emocionais, aprendizagem, adaptação, neutralização do estresse e outras funções, explica o professor de psiquiatria Elie Cheniaux, da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Mas essas novas hipóteses só foram possíveis com a ascensão da neurociência.

Músicas, livros e invenções que surgiram a partir de sonhos

  • Let It Be e Yesterday, The Beatles

    Dois dos grandes sucessos dos Beatles nasceram a partir de sonhos. Um deles foi 'Let It Be', de Paul McCartney, nos anos 1960. Em entrevista ao apresentador britânico James Corden, o músico conta ter sonhado que a mãe, falecida quando ele tinha 14 anos, o tranquilizava. Quando acordou, compôs a canção. O segundo insight foi 'Yesterday'. Paul conta ter acordado com a melodia na cabeça em 1967 e composto a música logo depois no piano.

  • The Prophet's Song, Queen

    O compositor de 'Prophet 's Song', Brian May, contou em um programa de rádio inglês que a música foi inspirada em um sonho que teve sobre o dilúvio.

  • Every Breath You Take, The Police

    Sting, da banda The Police, diz ter acordado certa vez no meio da noite com a frase "every breath you take, I'll be watching you" ("a cada respiração que você der, estarei te observando", em português). Então, escreveu o hit em meia hora. "Acho que estava pensando no Big Brother, vigilância e controle. Eram os anos Reagan e Guerra nas Estrelas", contou o músico ao jornal The Independent.

  • Frankenstein, Mary Shelley

    Publicado em 1818 e considerado o primeiro romance de ficção científica da história, 'Frankenstein', de Mary Shelley, surgiu após um sonho que a autora teve aos 18 anos. Mary Shelley não sabia nada sobre robôs, clones nem alimentos transgênicos, mas de algum modo a história de 'Frankenstein' conseguiu abranger tudo isso, diz o professor de história da arte Leo Braudy, da Universidade do Sul da Califórnia.

  • 'Crepúsculo', Stephenie Meyer

    Em entrevista ao jornal Público, a autora da saga Crepúsculo diz que a ideia do primeiro livro surgiu depois de Meyer ter sonhado com uma menina e um vampiro brilhante tendo uma conversa intensa em uma clareira na floresta. O casal discutia sobre o fato de estarem apaixonados e o vampiro se sentir atraído pelo cheiro de sangue da garota.

  • Tabela periódica, Dmitri Mendeleiev

    Em fevereiro de 1869, o químico russo Dmitri Mendeleiev pensava em uma forma de organizar os 63 elementos químicos conhecidos à época. Exausto de tanto estudar, dormiu sobre os seus escritos e sonhou com a organização que o inspiraria a criar a tabela periódica. Detalhes dessa história estão descritos no livro "O Sonho de Mendeleiev", do escritor britânico Paul Strathern.

Já olhou para alguém e pensou o que passa na cabeça dela?

Avanços importantes para o estudo do cérebro ocorreram ainda no século 19. Foi o caso da Teoria Neuronal, de 1891, desenvolvida pelo médico Santiago Ramón y Cajal, para explicar a constituição e o funcionamento do sistema nervoso. O trabalho foi tão marcante que o espanhol é conhecido como o pai da neurociência moderna.

Nas décadas seguintes, esse campo deu passos ainda mais largos e um deles foi a criação do eletroencefalograma (EEG) pelo médico alemão Hans Berger, no fim dos anos 1920.

O método, capaz de medir a atividade elétrica cerebral a partir de eletrodos colocados na cabeça, ajudou pesquisadores a entenderem como o cérebro reagia a diferentes estímulos ou em diferentes estados da consciência. A invenção colocou a pesquisa sobre sonhos em um novo patamar.

Entre os anos 1950 e 1960 foram feitas as primeiras descobertas sobre o sono REM (do inglês Rapid eye movement sleep, ou sono de movimento rápido dos olhos, em português).

Para compreender a importância dele, é necessário entender como a sua mente descansa. Assim que você adormece, seu cérebro inicia um ciclo de quatro estágios: N1, N2, N3 e REM.

Esse ciclo tem mais ou menos 1h30 e se repete ao longo da noite. No N1, você começa a relaxar. No N2, a atividade das ondas cerebrais diminui gradualmente até chegar ao N3, ponto mais profundo do descanso.

A calmaria é interrompida pelo REM, fase em que o movimento ocular é intenso e a frequência das ondas cerebrais identificadas por um eletroencefalograma é parecida com a frequência de quando a pessoa está acordada.

É nessa quarta etapa, em que você está dormindo, mas com a mente a todo vapor, que a maior parte dos sonhos aparece.

"Podemos dizer que os sonhos da fase REM são como filmes, enquanto os de outras fases são como gifs", ilustra a médica e neurocientista Natalia Mota, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Foi só um sonho?

Mas senta que lá vem mais mistério. Jung escreveu em suas memórias que, quando teve um infarto, em 1944, saiu de si mesmo e viu a Terra de cima.

Ele não foi o último nem o primeiro a relatar essa sensação, que pode acontecer com pessoas adormecidas mas acordadas também. A ciência chama o fenômeno de EFC (Experiência Fora do Corpo). Pacientes contam que se sentem voando e que enxergam o próprio corpo "do lado de fora".

Uma das hipóteses para explicar isso vem do médico suíço Olaf Blanke, de Genebra, que atribui a condição a alterações na Junção Têmporo-Parietal (JTP), região do córtex responsável por integrar as percepções visuais e auditivas do ambiente com as que as pessoas têm de si mesmas, interferindo na noção dos limites do entorno e do próprio corpo.

Outro enigma é o caráter antecipatório dos sonhos. Recorrer a eles para prever o futuro é uma prática ancestral e ela sobrevive mesmo hoje, em uma sociedade marcada pelo materialismo. Em um estudo conduzido em Natal com mais de 200 vestibulandos, no ano de 2010, mais da metade dos entrevistados declarou conhecer ao menos um caso de premonição onírica.

A pesquisa, que reproduziu uma metodologia aplicada nos Estados Unidos, Índia e Coreia do Sul, para investigar a crença em sonhos premonitórios por aqui, retoma a ideia de que as pessoas sonham com situações ameaçadoras a partir de suas vivências e assim podem se preparar melhor para elas.

O trabalho, conduzido pelos pesquisadores Rafael Scott, doutor em Psicobiologia pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), e Sidarta Ribeiro, autor de "O Oráculo da Noite", conclui ainda que a ocorrência de sonhos antecipatórios é proporcional à crença na eficácia deles.

Essa teoria, chamada de "Teoria de Simulação de Ameaça" não explica coincidências entre previsões que se concretizam de forma precisa, como a que você verá no quadro a seguir, mas já traz uma pista para solucionar esse enigma.

Sonhar para quê?

  • Sonhos não têm função específica

    Nos anos 1970, os professores de psiquiatria de Harvard James Allan Hobson e Robert McCarley desenvolveram a Teoria de Ativação e Síntese. Para eles, os sonhos só refletem a atividade cerebral enquanto dormimos, de forma aleatória e sem função específica, embora possam ter um sentido passível de interpretação.

  • Sonhos são como ensaios

    Para o finlandês Antti Revonsuo, autor da Teoria de Simulação de Ameaça, o fato de as pessoas sonharem com situações de risco as coloca em alerta, garantindo uma vantagem evolutiva. Como a maioria de nós vive em cidades, as situações de tensão que mais aparecem em sonhos têm a ver com nosso contexto social, diz Mota, que pesquisou como a pandemia de coronavírus impactou os sonhos dos brasileiros.

  • Sonhos ajudam a promover a regulação emocional

    Há cientistas que também defendem o papel do sonho na regulação emocional, com potenciais semelhantes aos da psicoterapia, dizem Cheniaux e Mota. Para os adeptos a esta teoria, representações que aparecem nos sonhos se associam a outras com a mesma conotação afetiva, colocando os sentimentos em ordem e fazendo com que traumas recentes ou remotos sejam atenuados.

  • Sonhos ajudam a consolidar memórias

    Pesquisas sugerem ainda que o sonho é importante para o aprendizado e a consolidação de memórias. Estudos identificaram prejuízos na aprendizagem de animais e humanos que foram privados de sono REM após serem apresentados a uma tarefa nova. Os que passavam pelo mesmo treinamento, mas não eram privados dessa fase, tiveram a quantidade de sono REM aumentada quando aprendiam a atividade ensinada.

  • Sonhos representam desejos

    A chamada neuropsicanálise tenta investigar hipóteses psicanalíticas com instrumentos da neurociência. Um dos representantes dessa corrente é o pesquisador sul-africano Mark Solms. Para ele, a formação dos sonhos está vinculada a circuitos de dopamina, neurotransmissor associado ao prazer - o que contribui com a hipótese de Freud de que sonhos são representações de desejos.

Histórias inusitadas

A enfermeira Rayane Fernandes, 31, conta que, na primeira vez em que dormiu na casa de uma amiga, sentiu ter saído do próprio corpo, visto a si mesma adormecida na cama e passeado por cômodos que não conhecia. Viu a mãe da amiga lendo uma revista na sala, o pai da amiga dormindo de cueca vinho no quarto, e, na manhã seguinte, descobriu que esses detalhes se confirmavam. "A mãe da minha amiga estava mesmo lendo uma revista à noite e o pai dela dormia com uma cueca vinho."

A nutricionista Victória Trevisan Nóbrega Martins, 30, que é doutoranda em enfermagem, conta que muitas vezes sonhou com suas pesquisas e acordou com insights sobre o que tinha lido antes de dormir. "Uma professora do mestrado me explicou que isso era comum e eu comecei a ir para a cama com um caderninho do lado, para anotar tudo assim que acordasse", diz.

"Tenho várias experiências de sonhos que trazem mensagens sobre mim mesma", diz a psicóloga Drielle Sanches, 36. Ela lembra que, quando se separou do primeiro marido, sonhava com frequência estar dirigindo carros desgovernados, ora sem bancos, ora sem freios. "Na vida real, eu não conseguia dirigir." Ela relata também que durante a pandemia, sonhou estar em uma guerra, com muita destruição e escombros ao redor. Por um momento do sonho, escreveu o próprio nome em um papel e colocou no bolso. "Acho que eu tinha medo de esquecer quem eu era", diz.

A professora Fernanda Soares, 37,* conta ter se assustado com a previsão que teve há dois anos. Sonhou que o então marido conhecia uma nova colega de trabalho chamada Bárbara e tinha um caso com ela. Comentou com o parceiro, que riu e a chamou de louca. Meses depois, olhando o celular dele, descobriu que ele a estava traindo com uma funcionária recém-chegada à empresa e o nome da mulher era Bárbara. "Não sabia da rotina profissional dele nem com quem trabalhava. Então, fiquei surpresa com a coincidência. Depois do sonho dedo-duro, me divorciei", diz Soares.

Sonhando acordado

O sonho lúcido é outro assunto que faz pesquisadores perderem o sono. Se durante a fase REM, áreas do cérebro ligadas à razão ficam "adormecidas", como é possível que alguém possa controlar o que sonha? Pois não é que uma parcela da população tem facilidade com isso?

Segundo Sérgio Arthuro, médico pela UFRN e pesquisador do sonho, algumas pessoas conseguem identificar quando estão sonhando e interferir no andamento da história em curso. Não se sabe exatamente o que elas têm de especial, mas um estudo alemão de 2015 mostrou que sonhadores lúcidos frequentes têm maior volume de massa cinzenta.

A boa notícia é que qualquer pessoa pode treinar essa façanha, capaz de reduzir pesadelos, aperfeiçoar o desempenho e as habilidades motoras e ainda auxiliar a comunidade científica a acessar o conteúdo onírico com mais precisão, já que um dos maiores desafios de se investigar os sonhos está no caráter subjetivo e fugaz do material estudado.

A sugestão auto-induzida de sonhos antes de adormecer é uma das inúmeras técnicas já testadas. Outra tática é se questionar no dia a dia quando se está sonhando ou não.

A recordação dos próprios sonhos é também uma competência que nem todo mundo tem espontaneamente, mas que pode ser treinada, diz a psiquiatra Gisele Richter Minhoto, especialista em Medicina do Sono e professora da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).

Um estudo italiano de 2011 sugere que os mecanismos neurofisiológicos usados para sonhar e lembrar o que se sonhou são os mesmos envolvidos na construção e recuperação de memórias enquanto se está acordado. Então, que tal rememorar seus sonhos logo de manhã?

Especialistas garantem que os benefícios serão inúmeros. Até mesmo Hobson (aquele da Teoria de Ativação e Síntese) chegou a admitir que analisar os sonhos é uma boa maneira de descobrir causas de ansiedade e rever fatos emocionais.

Está aí um caminho para encontrar um lado seu que você nem imagina - ao menos não de olhos abertos.

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