"Por que comigo?"

A busca de sentido na espiritualidade contribui para a promoção da saúde

Cristina Almeida Colaboração para VivaBem

Em janeiro de 2020, dados de uma pesquisa realizada pela empresa YouGov colocaram o cultivar a espiritualidade entre os dez primeiros objetivos que as pessoas gostariam de alcançar ao longo dos então vindouros 12 meses. Naqueles dias, ninguém poderia imaginar o advento da pandemia do coronavírus, nem as perdas que toda a população do globo vivenciaria.

Contudo, quem colocou em prática esse projeto de transcendência, certamente já deve estar colhendo frutos. Isso porque a medida tem o potencial de ajudar a lidar com as vicissitudes da vida, prevenir doenças físicas e mentais, e até contribui para a longevidade.

Há tempos os médicos observam em seus pacientes necessidades espirituais, e considerá-las no momento de traçar um plano terapêutico pode aumentar as suas chances de sucesso. Esta é a razão pela qual a comunidade científica tem discutido a urgência de revisar o conceito de saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde), que a define como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não só a ausência de doença ou enfermidade".

Afinal, a saúde é apenas um dos indicadores de qualidade de vida, que também consideram questões como espiritualidade, cultura, valores, entre outros fatores, na complexa equação que busca entender como os aspectos positivos e negativos da realidade de cada pessoa influenciam em seu bem-estar geral.

Enquanto a unificação desses conceitos não acontece, a ciência segue na coleta e no registro de evidências que indicam que ser espiritualizado pode ter, sim, um impacto positivo na saúde. E, mais do que isso, tal conexão pode ser o ponto de partida para o estabelecimento de um círculo virtuoso das forças que a promovem.

Uma relação antiga

Religião e medicina têm uma longa história de proximidade. Em todas as culturas sempre existiu a figura de um líder espiritual que "cuida" das doenças da alma, mas também das mazelas do corpo. Desde a Idade Média e até a Revolução Francesa, muitos médicos eram clérigos, as organizações e ordens religiosas mantinham hospitais, e a elas também cabia licenciar os profissionais para a prática médica. A dissociação dessa "parceria" é recente e se deu, principalmente, a partir do Iluminismo, momento no qual a ciência passou a se dedicar a tudo, menos à crença religiosa.

Talvez, essa estreita relação com o dever de escuta do sacerdócio explique a razão por que as necessidades espirituais começaram a chamar a atenção nos consultórios médicos. A questão não se vinculava e nem se vincula a questões morais ou de valor, como o fato de que pessoas religiosas, por praticarem uma fé, mereçam ser mais saudáveis, ou o seu contrário —os que não praticam nenhum credo, fatalmente, teriam escores de saúde mais baixos. O que conta, nesse contexto, é a espiritualidade, cujo conceito não exclui religião e religiosidade, mas a elas não se restringe.

Alexander Moreira-Almeida, fundador e coordenador do NUPES (Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde) da UFJF esclarece que espiritualidade se refere ao transcendente e o sagrado.

Trata-se da convicção de que há algo para além do mundo material e físico, o que abrange a ideia de Deus, de espírito ou mesmo a ancestralidade. Tal espiritualidade pode até ser institucionalizada por determinado grupo que compartilha crenças e práticas, o que conhecemos como religião.

Por que eu?

Ao vivenciarem o sofrimento, a dor, a doença e a morte, uma crise, as pessoas têm sede de sentido, ou seja, desejam encontrar respostas que justifiquem essas adversidades. Para muitos, esta será a primeira ocasião do enfrentamento da transitoriedade da vida. Perguntas comuns que os médicos ouvem são: por que isso está acontecendo comigo? O que fiz para merecer isso? Por vezes surge a rápida conclusão de que tal revés seria consequência de algum erro do passado, um "castigo divino".

Ao perceber o emergir desses sentimentos, o profissional da área da saúde precisa ser capaz de saber o que isso representa naquele contexto. Cabe a ele lembrar ao paciente o valor da espiritualidade e como ela pode ajudá-lo naquele momento fala José Genilson Alves Ribeiro, professor da disciplina medicina e espiritualidade da UFF.

Elementos que caracterizam necessidades espirituais

  • Recursos

    Ter recursos para superar o luto, o ressentimento, a falta de perdão, a autorrejeição, a vergonha, aprofundar a experiência da confiança, autoestima, esperança, alegria e amor pela vida

  • Conexão

    Desenvolver maior consciência da conexão com a vida, o outro, o mundo e todos os seres vivos

  • Sabedoria

    Identificar e desenvolver a sabedoria e a criatividade

  • Responsabilidade

    Ter valores, prioridades, compromisso com a justiça, integridade e amor que levem a um viver mais responsável

  • Crença

    Cultivar crenças que tragam significado à vida, mesmo diante da tragédia e das perdas

  • Cura

    Vivenciar a renovação da transcendência e o poder curador do amor

Um por todos, todos por um

Diante dessa realidade, a maioria das escolas de medicina dos Estados Unidos já integrou a espiritualidade em seus currículos, e o Brasil não é exceção, já que uma recente pesquisa do Datafolha mostrou que cerca de 90% da população nacional tem uma religião. Por trás do objetivo de treinar médicos e equipes de saúde a lidarem com a espiritualidade de seus pacientes, está o reconhecimento de que, mesmo com "a mais alta das mais avançadas das tecnologias", até o momento, não foi possível resolver o mistério do sofrimento.

Somam-se a isso os inúmeros estudos científicos que mostram os efeitos benéficos da prática religiosa e da espiritualidade na saúde. Assim, esses profissionais precisavam aprender a fazer um diagnóstico do perfil do paciente, respeitando seus valores pessoais, fala Frederico Camelo Leão, coordenador do PROSER, do IPq-FMUSP.

Já criamos até uma anamnese espiritual-religiosa, que é uma forma de saber se a pessoa possui uma crença ou religião, se tem com quem falar, e se deseja abordar esse assunto. A ideia é exercitar a escuta. A partir das características do paciente, o médico poderá fazer algum tipo de sugestão para ajudá-lo.

Aliás, um dos maiores pesquisadores dos efeitos da religião e da espiritualidade na saúde, o psiquiatra Harold G. Koenig, da Duke University (Estados Unidos), declarou recentemente na prestigiosa revista The Lancet que é isso que as pessoas esperam de seus médicos, exatamente porque a maioria é espiritualizada.

Saúde mental em alta

Embora seja difícil identificar fatores biológicos, psicossociais e até transcendentais que justifiquem a melhora do estado geral de saúde, as evidências científicas confirmam a correlação com a espiritualidade, o que a alçou a fator de promoção da saúde (salutogênese). Confira a seguir, o que se sabe, até o momento, sobre os benefícios para a saúde mental das práticas religiosas ou espirituais:

  • 1

    Confere mais recursos para lidar com as dificuldades

    Sentimentos positivos reduzem o estresse e também previnem a depressão (inclusive sua recuperação), ansiedade, suicídio e abuso de substâncias

  • 2

    Promove o cultivo da fé

    Traz sentido/propósito ao sofrimento

  • 3

    Encoraja o otimismo

    Há crença em um poder superior transcendental que a tudo vê e provê

  • 4

    Oferece sentido do controle

    Os eventos podem ser influenciados por meio da oração

  • 5

    De onde vim? Para onde vou?

    Traz respostas significativas para questões existenciais

  • 6

    Melhora as condições de enfrentamento

    Na hora das perdas e mudanças, os modelos santos são inspiradores

  • 7

    Estimula a compaixão e o altruísmo

    Viver em comunidade muda o foco para fora da pessoa, o amor ao próximo e as emoções positivas

  • 8

    Cultiva virtudes

    Honestidade, perdão, gratidão, paciência e interdependência fortalecem e mantêm relações, aumenta a positividade e neutraliza a negatividade

Ciência + espiritualidade = saúde

Os céticos dirão que a religião pode ser fonte de preconceito, exclusão, práticas obsessivas, problemas psicossociais e de relacionamento, sem falar que ainda podem atrasar diagnósticos. É o próprio Koenig a reconhecer isso. Contudo, ele afirma que, na maioria das vezes, ela promove o bem-estar.

E as suas vantagens não se limitam à saúde mental. Cultivar a espiritualidade já tem sido objeto de muitos estudos que a associam à prevenção e melhora das seguintes enfermidades:

  • Doença arterial coronária
  • Hipertensão
  • AVC (Acidente Vascular Cerebral)
  • Alzheimer e demência
  • Funções imunológica e endócrina
  • Câncer
  • Dor
  • Longevidade

Mesmo quando se considera o modelo de patogênese (as causas das doenças), espiritualidade e religiosidade aparecem como fatores preventivos. É o que afirma o cardiologista Álvaro Avezum, diretor da Socesp, que explica que o processo de adoecimento, seja ele cardiovascular ou por câncer, passa pela má adaptação da sociedade no estilo de vida. Tudo começa com o sedentarismo, alimentação não saudável, tabagismo, além de estresse e depressão. Os dois últimos fatores, em especial, também influenciam as relações com os outros e consigo mesmo.

Atitudes negativas como a falta de perdão, rancor, ressentimento, desejo de vingança e egoísmo precisam ser cunhadas de enfermidades morais. Tais sentimentos liberam hormônios nocivos à saúde. Se a linha de chegada é a doença, essas posturas devem ser prevenidas e tratadas. É aqui que entra a espiritualidade —um aspecto dinâmico de todas as pessoas que influencia a vida de relacionamento por meio de sentimentos, enfrentamento, propósito e atitudes.

De olho nessas premissas, o GEMCA (Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular) da SBC, incluiu a espiritualidade em suas Diretrizes de Prevenção Cardiovascular —as primeiras na cardiologia mundial a integrá-la em suas práticas, baseadas em níveis de evidência científica e graus de recomendação.

Como chegar lá?

O percurso para a espiritualidade não precisa ser elaborado e pode começar até mesmo no ambiente corporativo, que muitas vezes é bastante desafiador. A Medicina do Trabalho, cuja atuação abrange a promoção da saúde e do bem-estar, tem estimulado práticas como meditação, ioga, comunicação não agressiva, entre outras atividades, para estimular o vínculo afetivo e a relação de fraternidade entre os funcionários.

"Cada vez mais se estabelece a ideia de somar esforços e não estimular a competição, além de construir redes de solidariedade. Somadas, todas essas iniciativas conferem um sentido para além da subsistência do trabalho", acrescenta Juliano de Trotta, cirurgião geral e coordenador da pós-graduação em Medicina do Trabalho da PUC-PR.

Apesar de todas essas vantagens, a espiritualidade não deve ser vista como solução que substitui os cuidados médicos, mas, sim, como uma aliada capaz de potencializar o bem-estar e a qualidade de vida, mesmo na ausência de uma crise pessoal ou de saúde. A advertência é de Luciano Magalhães Vitorino, enfermeiro e professor da FMIT.

O primeiro passo nessa direção é se perguntar: o que faz sentido para mim, neste momento? A resposta pode ser a família, o trabalho, a natureza, as artes, acreditar em um ser superior, e até mesmo praticar uma atividade física.

Já Mary Rute Gomes Esperandio, professora do programa de pós-graduação em teologia e bioética da PUC-PR, pondera que o momento atual [a pandemia do coronavírus] é oportuno para buscar por maior conexão consigo mesmo e, sobretudo, com os outros. Ela fala que a resposta que buscamos não está no governo, nem no parceiro, mas, sim, no silêncio que o campo espiritual promove.

"Para desenvolver e fortalecer a espiritualidade não há outra via senão voltar-se à interioridade. Pouco a pouco, quando estivermos em contato com o outro, perceberemos que temos algo precioso a oferecer, isto é, mais espaço para a escuta, empatia, compaixão, compreensão e solidariedade", completa.

Vida em abundância

E nunca é tarde para assumir essa empreitada pessoal. Aliás, a maturidade e o envelhecimento são marcos da linha do tempo de todas as pessoas que propiciam a reflexão sobre temas existenciais, sobre como se viveu ou tem-se vivido a vida.

O processo pode levar ao autoconhecimento, dado o constante exercício de identificar o que ainda falta ser feito, as responsabilidades consigo, com os outros, além da revisão de atitudes, relacionamentos e comportamentos. A explicação é de Lidiane Klein, psicóloga clínica e docente da UFCSPA.

A espiritualidade pode facilitar o processo e este pode ser potencializado pela espiritualidade. É ela que fornece as ferramentas para acessar novas perspectivas que, consequentemente, levarão à ressignificação da existência, abrindo espaço para mais saúde, longevidade e qualidade de vida.

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