Viagem sensorial

Pessoas com sinestesia enxergam mulheres douradas, sentem gosto da quinta-feira ou cheiram sua música favorita

Beatriz Calais e Gabriela Del Carmen Colaboração para o VivaBem

Antônio se apaixona por mulheres douradas e Luiza ouve música clássica amarronzada. Com auras, acordes e letras alavancando gostos, cores e sons, um dia descobriram que nem todas as pessoas enxergam o mundo da mesma forma que eles. Para a maioria, som é som, cor é cor, gosto é gosto e falar que uma palavra cheira a mel é... fantasia?

Mas Antônio Oiticica e Luiza Dias não estão brincando quando dizem que cheiram, sentem gosto ou enxergam as coisas de forma diferente. Pelo contrário, eles fazem parte do grupo de 3,7% de pessoas ao redor do mundo possuem pelo menos um tipo de —rufem os tambores — sinestesia, segundo estudo coordenado por Julia Simner, professora de psicologia da Universidade de Sussex (Inglaterra).

Trata-se de um distúrbio neurológico que faz com que o estímulo de um sentido cause reações em outro, gerando uma mistureba de sensações, como mostramos a seguir.

Arte/UOL

Como a sinestesia acontece?

Para a maioria das pessoas, os estímulos externos recebidos no cérebro são processados paralelamente e em uma rota específica. Ou seja, nenhum cruza com o outro, e eles são interpretados separadamente. Porém, no cérebro de um sinesteta, as trilhas se cruzam, criando uma verdadeira salada sensorial entre visão, audição, paladar, tato e olfato. Isso faz com que uma pessoa possa sentir gosto em sons ou enxergar cores em palavras, entre tantas outras misturas possíveis para cada indivíduo sinesteta.

Então sim, Antônio enxerga uma aura dourada nas mulheres pelas quais se apaixona e Luiza vê marrom nos acordes de uma música clássica. Apesar de não serem os únicos, seus sentidos são muito particulares, e talvez por isso existam tantas formas de sinestesia espalhadas pelo mundo. Sean Day, professor na Universidade de Ohio (Estados Unidos) e presidente da Iasas (Sigla inglesa para Associação Internacional de Sinestetas, Artistas e Cientistas), conta que existem mais de 70 tipos distintos de sinestesia, embora alguns sejam mais comuns do que outros.

Day também explica que a reação é muito natural e que não pode ser escolhida ou mudada.

É algo invariável. Se o som de um piano produz um céu azul nebuloso, sempre será assim. A pessoa não consegue escolher o que é conectado com o que, simplesmente acontece"

Dados coletados por Simner mostram que, entre os que têm sinestesia, quase 50% possui mais de um tipo. Uma pessoa pode possuir diversas relações sinestésicas, enquanto outra apresenta apenas uma. Patricia Lynne Duffy sabe bem disso, ela é autora do livro "Blue Cats e Chartreuse Kittens: How Synesthetes Color Their Worlds" (sem tradução para o português), a primeira obra literária de uma sinesteta sobre sinestesia, e ministra palestras sobre o assunto nas universidades dos Estados Unidos.

Além de sua própria experiência, Patricia possui contato direto com diversos sinestetas, e revela o quanto tudo é muito subjetivo e único, "outro dia, eu estava conversando com um sinesteta para quem cada palavra tem um gosto correspondente".

Descobrir que nem todos são sinestetas pode ser um choque

O conhecimento de Patricia na área nasceu de sua própria vivência como sinesteta. "Quando soube que sinestesia era uma percepção que apenas uma minoria de pessoas experimentava, eu queria divulgar ao público as diversas maneiras pelas quais os seres humanos podem experimentar o mundo". A questão é que descobrir que a maioria das pessoas não partilhava da mesma visão que ela foi uma revelação um tanto quanto tardia e inesquecível.

Quando estava com 16 anos, Patricia teve uma conversa com seu pai sobre sua dificuldade de infância em aprender a diferença entre as letras R e P. Ela contou que a solução veio ao perceber que para criar um "R", tudo o que precisava fazer era desenhar um "P" e depois só acrescentar mais uma linha ao lado direito, como uma perninha. Porém, deparou-se com uma surpresa memorável: ao adicionar a linha, conseguiu mudar uma letra amarela para uma laranja.

Seu pai ficou confuso com a menção de letras coloridas, e Patricia mais ainda quando percebeu que sua compreensão de P como amarelo e R laranja não era algo universal. O choque foi grande, mas isso fez com que ela se admirasse ainda mais pelo assunto e aprendesse que existem várias pessoas no mundo com as formas mais diversificadas de sinestesia. Enquanto para ela as letras e palavras transbordam cores, para alguns são os sons e gostos que tomam frente aos sentidos.

Sinestesia em suas diferentes formas

Luiza Dias, por exemplo, conta que para ela números têm cores e que os sons apresentam uma sinfonia sensorial ainda maior: além de coloridos, podem ter gostos, texturas, cheiros e temperaturas. "Tem músicas que em uma parte vem um gosto tão doce, como marshmallow, e na parte seguinte já surge um sabor metálico... É uma aventura nova a cada som", revela.

Já para Hugo Ramos o espetáculo está no som das palavras: Carol é uma mistura de azul e vermelho com um fundo verde. Catarina é azul e branco, Janaína é verde e seu nome, Hugo, é preto. Foi perguntando "qual a cor do seu nome?" para seus amigos na faculdade que ele descobriu que nem todas as pessoas pensavam e sentiam o mundo como ele. E apenas anos depois descobriu que isso tinha um nome e que não era o único com essa raridade sensorial.

Até então, Hugo achava que todos sabiam a cor de seus nomes, assim como sabem quantas letras eles possuem. Esse pensamento se dava por conta da naturalidade com que a sinestesia ocorre no cotidiano dos sinestetas.

Muitos não fazem ideia de que vivem com sinestesia, pois é algo intrínseco ao seu ser

Day explica que, para quase todos, a condição não atrapalha a vida cotidiana mais do que, por exemplo, o olfato atrapalha uma pessoa (sinesteta ou não) no dia a dia. "Com o olfato, qualquer pessoa pode sentir cheiros muito agradáveis, como café fresco, biscoitos caseiros e perfumes exóticos. No entanto, também pode sentir cheiros desagradáveis, como vômito ou o odor de banheiros públicos extremamente sujos". O pesquisador ainda adiciona que a maioria dos cheiros do nosso cotidiano passa despercebido. Tudo tem odor, mas não é algo que mobiliza o ser humano. Da mesma forma é a sinestesia.

Como é viver com sinestesia

Porém, essa completa festa de sentidos pode despertar algumas emoções. No caso da escritora Patricia, isso lhe propiciou uma história que considera engraçada, uma anedota de uma de suas viagens a Praga. Na tentativa de usar o metrô, a seguinte problemática: "A cidade tinha duas linhas, a verde (A) e a laranja (B). Mas, nas minhas próprias percepções sinestésicas é exatamente o oposto: A é laranja e B é verde". Bastou essa confusão de linhas, cores e letras para que Patricia demorasse horas para se encontrar e conseguir entender o caminho para seu destino.

A situação da sinesteta Iura Breyner já é um pouco diferente. Seus sentidos aflorados podem beirar o exagero e virar seu cotidiano de cabeça para baixo. Iura apresenta diversas relações sinestésicas associadas ao som. "A partir de determinada luz natural eu 'ouço' uma espécie de música orquestrada".

Ela explica que é mais o conjunto do momento —como a sensação do vento, a quietude do lugar — que geram diferentes sons internos. "Uma canção ora harmônica, ora dissonante, ora com aquele som surdo que ouvimos dentro do ouvido quando estamos embaixo d'água". Por conta desse "rádio interno" em play constante, ela revela ter dificuldades para se acalmar e encontrar o silêncio. "Tudo faz um link na minha cabeça. Até quando eu me deito. Então, ponho um tufo de algodão nos ouvidos para desligar um pouco e conseguir dormir".

Luiza compartilha do mesmo sentimento de Iura. "Me incomoda quando preciso prestar atenção em algo, ou quando estou muito cansada, e a sinestesia fica lá tentando me fazer ter mais experiências". Apesar do cansaço com o estímulo de informações, a sinesteta diz enxergar tudo isso como um presente. "É uma bênção, uma outra maneira de ver o mundo. Acho sensacional saber que não preciso utilizar nenhum tipo de droga para ter uma experiência única dessas".

Patricia, Iura e Hugo já estão acostumados a receber um julgamento das pessoas ao falar de suas condições. Luiza admite que com ela a situação não é diferente. Apesar de muitos amigos próximos e familiares interpretarem sua sinestesia como um tipo de arte conceitual, ela evita conversar sobre a questão, com receio do preconceito que será atrelado. "Até hoje tenho receio de falar sobre minha sinestesia e ser taxada como louca, drogada ou sem noção", revela.

Características comuns entre sinestetas

  • 01

    A sinestesia é involuntária e permanente. Ou seja, as reações acontecem sem que o sinesteta consiga controlar, é automático, como sentir um cheiro ou ler uma placa de rua. Além disso, as reações não mudam com o tempo.

  • 02

    As percepções sinestésicas geralmente têm uma dimensão espacial. Patricia explica que enxerga as palavras muito claramente em seu campo de visão, escritas em cores diferentes. A escritora até acredita que isso a ajuda a ser uma boa oradora.

  • 03

    As experiências sinestésicas são muito memoráveis. Um sinesteta geralmente não esquece suas percepções sinestésicas.

  • 04

    Os sinestetas têm uma conexão emocional com as formas com que interpretam o mundo, geralmente gostando delas. A maioria não gostaria de ficar sem.

É algo raro, não anormal

Por ser um fenômeno raro e desconhecido entre muitos, as reações sinestésicas são muitas vezes interpretadas como resultado da utilização de drogas, alucinógenos ou doenças mentais. Porém, o consenso entre os especialistas não é este: pesquisadores e neurologistas ao redor do mundo garantem que não é loucura nem uma alteração no estado de consciência.

Não é uma doença. É uma característica, assim como ser ruivo ou ter olhos verdes" Sean Day

Segundo Day, ao analisar o que sabemos sobre a anatomia neural dos seres humanos, percebemos que a sinestesia está na esfera do normal —embora rara — possivelmente resultado de um desenvolvimento cerebral.

Ele explica que rotular a sinestesia como doença sugere que há alguma coisa errada que precisaria de uma cura ou tratamento. Day destaca a importância de diferenciar o que é uma situação anormal e rara: anormal indica que há algo biologicamente defeituoso, já a raridade denomina algo difícil de se encontrar e que ocorre com pouca frequência.

Para ilustrar, peguemos um par de dados, ambos com seis faces. Estatisticamente, temos quase 50% de chance de jogar os dados e com a soma deles obter um total de 6, 7 ou 8. Já a chance de conseguir um 12 é de aproximadamente 2,8%. Apesar disso, não há nada anormal (ou doentio) em tirar 12 em um par de dados. É algo raro, mas completamente normal, pois é assim que eles funcionam. Em oposição, se ao jogar um par de dados a soma resultar em 13, pode-se concluir que há algo de errado com pelo menos um deles e que alguma coisa alterou o objeto em relação ao que é um dado normal de seis faces.

Drogas são sinestésicos "sintéticos"?

Alguns especialistas argumentam que as drogas podem, sim, causar reações sinestésicas, de confusão da mente a embaralhamento das sensações. Nestes casos, a mistureba sensorial é aleatória e momentânea, enquanto para um sinesteta a condição neurológica não é algo passageiro que depois de algumas horas deixará de ocorrer.

Day sustenta que "as percepções das drogas alucinógenas são qualitativamente diferente das experienciadas por sinestetas congênitos". Ou seja, a breve sinestesia causada pelas substâncias psicoativas ativam apenas uma pequena e bastante específica parcela dos amplos e diversos tipos de sinestesia.

As dúvidas e certezas da ciência

A ciência ainda não desvendou todos os segredos da sinestesia. Sabe-se que é uma condição congênita, que se manifesta desde o nascimento e possui relação com a genética. Porém, os genes específicos e a forma como eles atuam no indivíduo para "ativar" a situação são fatores desconhecidos.

"Sabemos que é causada por mais de um gene — aparentemente mais de sete — localizados em mais de um cromossomo", afirma Day. Embora as informações sejam poucas, as investigações já feitas indicam que a sinestesia não tem uma relação com os cromossomos sexuais, ou seja, com o par XX e XY. Dessa forma, é algo indiferente ao fato de alguém ser homem ou mulher.

O sinesteta Antônio Oiticica conta que nunca pensou em si mesmo como alguém com sinestesia. Para ele, era algo familiar. Seu pai possuía os mesmos estímulos sensoriais e inclusive trabalhava como artista visual, área em que explorava o pensamento sinestésico. Mais do que os múltiplos sentidos, Antônio herdou o amor pela arte, especialmente pela música. Ele inclusive acredita que desenvolveu ainda mais essa característica sensorial por conta de suas composições.

"Percebi essa associação com as cores mais fortemente quando comecei a compor. Quando toco uma música no tom "dó", muitas vezes me vem a cor azul", acrescenta. Para Antônio, a sinestesia é simplesmente uma outra forma de ver e sentir a realidade. "Acho que cada um sente e explica o mundo da sua maneira. E essa foi a forma que eu me dei conta que poderia organizar minhas emoções e sentidos", afirma.

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