RESPEITA A NOSSA ONDA!

Na cidade do campeão olímpico Italo Ferreira, elas buscam espaço no surfe e driblam machismo até no grito

Júlia Flores Em Baía Formosa (RN) Márcia Costa/UOL

De mãos dadas, na beira da praia de Baía Formosa (RN), as melhores amigas Gabriela Guimarães, a Bibi, e Hanna Prado encaram o mar antes de entrar na água com suas pranchas de 1,50 m de altura, maiores que o tamanho delas. As meninas têm apenas sete anos mas o que procuram, além de boas ondas, é a companhia e o apoio de outras surfistas para poder cair no mar.

O receio delas não é das ondas. "Acho que tem mais menino no mar do que menina. Isso me deixa um pouco nervosa, porque alguns não respeitam muito", diz Bibi a Universa. "Mas eu não brigo, continuo lá tentando pegar onda."

Ela, Hanna e Maria Clara Dornelas, 12, a Clarinha, são algumas das meninas da nova geração de surfistas de Baía Formosa, um vilarejo de 9 mil habitantes que fica a 100 Km de Natal. E, enquanto não têm uma grande referência local feminina no esporte, se inspiram em Italo Ferreira, 27, ganhador da medalha de ouro no surfe nas Olimpíadas de Tóquio, nascido e criado na cidade.

O próprio Italo, que também já conquistou o título de campeão mundial de surfe, aposta nessas crianças e adolescentes de sua terra natal. Ele está construindo um instituto social para que essa nova geração possa ter aulas de surfe — na cidade, apenas duas escolas oferecem aulas. E nenhuma é gratuita.

A tensão de Bibi quando tem mais meninos do que meninas na água não tem a ver com sua pouca idade. Outras mulheres que vivem ali e também estão tentando conquistar espaço e se desenvolver tecnicamente no surfe também precisam enfrentar o preconceito.

"A diferença entre homens e mulheres surfistas é gritante. Infelizmente, ainda é um esporte machista dentro e fora da água. Não só por conta das falas sexistas que temos que ouvir, mas também por muitas vezes os caras não respeitarem quando uma mulher está na onda", reclama Patrícia Chao, 30, integrante do grupo Oceânicas, coletivo formado por cerca de 50 participantes que incentiva o surfe feminino em Baía Formosa desde março de 2021.

O machismo, contudo, não é capaz de tirar o equilíbrio dessas garotas que cada vez mais são vistas no mar em cima de uma prancha. Nem que para isso elas tenham que fazer barulho, igual a Maria Clara: "Eu grito até eles saírem da frente, não tenho vergonha, é meu direito".

Em grupo, de mãos dadas ou aos gritos, cada uma dessas surfistas encontra alternativas para provar que o lugar delas é no mar, seja onde estiverem.

'Eu quero chegar tão longe quanto o Italo e por isso eu treino todo dia. Meu pai sempre diz: 'Vamos surfar para que você seja igual a ele'. E eu acredito nisso, diz Hanna

A coragem dessas atletas já está surtindo efeito: nos dias 23 e 24 de outubro, acontecerá o primeiro campeonato feminino de surfe da cidade — e todas já estão se preparando para a competição.

Marcia Costa/UOL
Maria Clara, 12 anos

"Se tentam me 'rabeirar', grito até eles saírem da frente"

"Comecei no esporte quando tinha dez anos. Via meus amigos surfando e decidi fazer o mesmo. Como eu sempre tive contato com a praia, pedi para a minha mãe uma prancha, e ela me deu. Na primeira vez que que me empurraram em uma onda, já fiquei de pé e estou aqui até hoje.

Em Baía Formosa vemos mais meninos surfando, mas vejo que isso está mudando. É sempre bom ver pelo menos umas três garotas dentro da água para você se animar. Me sinto mais segura quando surfo com mulher; mas, como aqui eu sou uma das únicas garotas que surfam, não posso ter medo.

Alguns meninos me tratam bem no mar, outros não. A maioria das vezes eles não deixam eu pegar onda e ficam me rabeirando [invadindo a onda], então eu saio gritando, e eles saem da frente. Grito até eles saírem

Comecei a competir em 2019 e atualmente já sou a sétima colocada no ranking nacional sub-14 de surfe feminino. Ser uma atleta profissional é meu sonho e isso exige bastante dedicação. Divido meu dia entre as caídas no mar, a escola e o tempo livre para brincar.

Acabei de fechar patrocínio com uma agência de surfe que me ajuda com pranchas e roupas. Mas as viagens para competir quem paga é a minha mãe, Elizia, que trabalha como auxiliar administrativa em uma creche e me cria sozinha. Ela faz rifa, sorteio e hora extra no trabalho para me ajudar. Já viajei para São Paulo, Bahia, Fortaleza... é muito legal competir, eu adoro, mas nenhum mar é como o de Baía Formosa.

Quando estou em uma competição, quem não é de Baía Formosa me vê no mar e diz: 'Olha lá, a menina da terra do Italo''. Já surfei algumas vezes aqui perto do Italo — ele, inclusive, me 'rabeirou' em uma onda. Lembro que ele passou voando do meu lado e eu fiquei tão assustada que caí da prancha. Depois ele voltou para me pedir desculpas.

É muito legal ver alguém daqui chegando tão longe. No dia em que ele ganhou a medalha de ouro, fui para a rua comemorar. Eu quero fazer igual; o importante é ter foco e acreditar."

* Maria Clara, 12 anos, ocupa o 7º lugar no ranking nacional da categoria sub-14 de surfe feminino

Já trinquei a prancha, já furei, já passaram por cima dela... o importante é não desistir. Se Italo surfava em uma tampa de isopor, a gente se vira com o que tem

Maria Clara, 12 anos, surfista de Baía Formosa

Márcia Costa/UOL Márcia Costa/UOL
Hanna, 7 anos

"Quando vejo o Italo no mar, fico olhando ele fazer várias manobras"

"Comecei a surfar quando tinha três anos de idade. Papai [Juvenal] me colocou em um pranchão e me empurrou. Apesar de eu demorar para conseguir me equilibrar, fiquei animada e comecei a me dedicar ao esporte. Nunca tive medo do mar, nem depois do primeiro tombo que levei; fiquei com um 'trauminha', mas logo me acostumei

Eu vejo mais meninos no mar do que meninas. Por isso peço para o meu pai ir surfar primeiro e ver se eu posso entrar; qualquer coisa, entramos juntos. Eu lembro até hoje da primeira prancha que ganhei, ela era roxa e preta. Eu nunca quebrei nenhum equipamento, nem me machuquei. Gosto de cair no mar de manhã, antes da minha aula de reforço.

Eu já compito e não fico nervosa, não; na verdade, fico de boa. Quando entro no mar, perco o medo. Eu e a minha amiga Bibi competimos nas mesmas categorias, aí entramos juntas no mar. Uma sempre apoia a outra, então isso facilita e tranquiliza as duas. A gente fica de mão dada, brincando, torcendo. É legal.

No tempo livre, gosto de brincar de Barbie e de andar de skate. Além disso, também fico no TikTok — é minha rede social favorita, uso para publicar vídeos de surfe.

O Italo é uma inspiração para mim. Quando eu entro no mar e ele está, fico olhando ele fazer várias manobras legais. Eu também já faço manobras! Sei puxar a prancha para dentro e dar algumas batidas na onda. Como eu quero chegar tão longe quanto o Italo, acho importante focar e treinar todo dia. Meu pai sempre diz: 'Vamos surfar para que você seja igual a ele'. Eu acredito nisso."

* Hanna Prado, 7 anos

Márcia Costa/UOL Márcia Costa/UOL

No mar tem espaço para todas

Arquivo pessoal

Geisa Maria, 43 anos

"Sou de São Paulo e me mudei para Baía Formosa há dez anos; desde então, surfo. Sempre foi meu sonho praticar o esporte, porque 'água salgada, alma lavada'. Infelizmente alguns surfistas locais mais velhos não respeitam as mulheres no mar, porém estamos tentando mudar esse cenário"

Arquivo pessoal

Emília Adachi, 64 anos

"Nunca pensei em surfar, mas após começar a frequentar Baía Formosa me chamou a atenção a alegria daqueles meninos que entravam no mar independentemente do clima e do horário. Comecei a fazer aula há seis anos, quando me aposentei. Desde então, não parei mais."

Arquivo pessoal

Vitória Soares, 15 anos

"Surfo há três anos. Me identifiquei com o esporte, porque é uma prática que me deixa mais conectada comigo e com a natureza. Ainda assim, vejo muito machismo dentro do mar; às vezes acham que nós, mulheres, não temos a capacidade de dropar uma onda maior ou de remar forte."

Márcia Costa/UOL Márcia Costa/UOL
Gabriela, 7 anos

"Italo que me desculpe, mas minha maior inspiração é a Clarinha"

"Comecei a surfar aos seis anos, quando meus pais se mudaram de Brasília para Baía Formosa. Logo na primeira onda fiquei em pé — foi bom, mas eu fiquei nervosa, porque sentia medo do mar.

Acho que tem mais menino no mar do que menina. Isso me deixa um pouco nervosa, porque eles não respeitam muito. Eu não brigo, continuo lá tentando pegar onda

A primeira prancha que ganhei era amarela, de um atleta daqui. Me lembro dela até hoje. Outro dia, durante uma competição aqui, assim como o Italo [na final das Olimpíadas de Tóquio] eu também quebrei uma prancha. Sorte minha que ela só amassou. Mas, mesmo assim, fiquei meio apreensiva.

Tem dias que dou duas caídas no mar — é bom para aperfeiçoar meu surfe, para praticar manobra. Normalmente, eu vou surfar depois do almoço. Quando volto para casa, vou brincar, andar de skate, encontrar outros amigos para brincarem de boneca comigo.

Só vi o Italo no mar uma vez. Eu estava na praia e fiquei lá assistindo ele surfar. Acredito muito que vou ser igual a ele quando crescer: quero competir todos os campeonatos, focar no esporte. Acho que o mais importante é acreditar que você consegue fazer.

E ele que me desculpe, mas a minha maior inspiração no surfe é minha amiga Clarinha. Torço muito por ela."

* Gabriela Guimarães, a Bibi, 7 anos

Márcia Costa/UOL Márcia Costa/UOL

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