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'Criei calcinhas para trans ao ver mulher morrer por não ir ao banheiro'

Silvana da Silva, de 46 anos, deixou emprego em hospital para se dedicar à loja: "Preferi as calcinhas" Imagem: Bruno Santos/Folhapress

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

30/06/2022 04h00

Depois de anos trabalhando no banco de sangue de um hospital em São Paulo, Silvana da Silva, hoje com 46 anos, deixou o emprego com carteira assinada para vender calcinhas, mesmo sem saber costurar. Mas não se tratava de qualquer calcinha: eram modelos específicos para mulheres trans, com um corte que ajuda a "aquendar", ou seja, esconder o pênis e os testículos, encaixando-os entre as pernas.

A Trucss, empresa que vende as calcinhas, nasceu depois que Silvana percebeu um número alto de mulheres trans sendo submetidas a cirurgias renais. "Fiquei curiosa com isso, até que entendi, conversando com as pacientes, médicas e enfermeiras, que isso acontecia porque elas passavam muito tempo segurando a urina."

Na prática, as mulheres trans que desejam esconder o pênis puxam o órgão para trás, onde fica preso entre as pernas com uma fita colante. Por isso, passam horas sem ir ao banheiro, o que é bastante prejudicial à saúde.

"Uma delas morreu na minha frente, quando eu trabalhava no hospital. Tinha mais ou menos a minha idade, estava na fila do transplante de rim e fazia hemodiálise. Pensei: 'Não é possível uma pessoa morrer por não conseguirem ir ao banheiro'", diz Silvana em entrevista a Universa.

Atualmente, Trucss, nascida em 2017, vende mais de dez modelos entre calcinhas, conjuntos e moda praia, com biquínis e maiôs, todos com 16 variações de tamanho. As peças permitem que pessoas com pênis escondam o órgão mas consigam soltá-lo facilmente para fazer xixi.

Distribuição gratuita no SUS

Agora, Silvana quer distribuir o modelo tradicional de sua calcinha no SUS (Sistema Único de Saúde). Um abaixo-assinado on-line já reúne mais de 2.100 assinaturas favoráveis, e ela espera chegar à meta de 2.500 para levar a proposta à Câmara dos Vereadores de São Paulo ou à Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).

"Minhas peças não têm um valor tão acessível, principalmente considerando meu público, de mulheres trans, que estão fora do mercado formal de trabalho. Sei que muitas meninas não conseguem comprar e podem ter problemas sérios de saúde, como as que eu vi no hospital", fala. O preço das calcinhas vai de R$ 70 a R$ 90.

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

A médica Lilian Fiorelli, uroginecologista especialista em sexualidade humana, confirma que segurar o xixi de forma crônica —ou seja, transformar isso em hábito, segurando por muito tempo e muitas vezes seguidas— aumenta as chances de problemas renais.

"O sistema urinário é um sistema de limpeza. Tudo que é ruim, que não serve para o corpo, vira xixi, mas quando esse líquido fica retido no corpo, aumenta as chances de qualquer bactéria se proliferar", explica.

"Quando a bexiga fica cheia a ponto de chegar no limite, a urina começa a voltar para o ureter, e tudo que era ruim e deveria sair do corpo volta para o rim. Em casos extremos, o quadro se agrava até que o rim infeccione e pare de funcionar", alerta a especialista.

"Dizia às costureiras que era roupinha para cachorro"

Quando a Trucss começou a funcionar, as vendas e eram realizadas pelo WhatsApp, até que ficou impossível para Silvana conciliar a marca com os plantões noturnos no hospital e Silvana. Então, aos 42 anos, teve que fazer uma escolha: "Preferi ficar com as calcinhas".

Imagem: Bruno Santos/Folhapress

"Desenhava o modelo no papel e mostrava para as costureiras aqui perto da minha casa, mas elas não entendiam nada. Um dia, peguei um pedaço de tule de uma saia da minha filha e costurei a mão para que elas entendessem o que eu queria", lembra.

Todas as peças da Trucss seguem o mesmo modelo: têm um suporte interno para colocar o pênis e os testículos, que Silvana chama de "funil". Essa parte é puxada para trás, entre as pernas, e presa com um fecho similar aos colchetes de sutiã. "É a mesma forma de 'aquendar' com a fita, mas como as calcinhas têm fecho, elas conseguem ir ao banheiro quando quiserem, sem dificuldade de prender de novo depois", explica a empresária.

"No começo eu não dizia para que eram as peças, dizia que era roupinha para cachorro, porque a maioria das costureiras que eu conhecia eram senhoras evangélicas. Quando contava a verdade, elas desistiam".

Durante um período, tinha que trocar de costureira toda semana porque, depois que elas entendiam que aquele era um produto LGBT, falavam que não iam mais pegar meu serviço. Algumas chegaram a dizer que eu ia para o inferno", lembra.

Em 2019, conheceu Renata, costureira que virou sua parceira nos negócios. Juntas, elas conseguiram aprimorar os moldes e desenvolver todos os modelos vendidos hoje no site da Trucss: "Eu pagava R$ 100 para os amigos da minha filha virem aqui em casa provar as calcinhas e me deixar ver, para fazer ajustes".

"Tem mês que vendo 50 peças; em outros, vendo uma"

No começo deste ano, algumas peças de Silvana apareceram no Big Brother Brasil no corpo da cantora Linn da Quebrada: um biquíni amarelo e um conjunto com top preto.

"A Linn já era nossa cliente e um dia entrou em contato querendo várias peças em poucos dias. Conseguimos produzir, meu filho foi entregar e ela entrou com as peças na casa", conta. "Quando a gente via ela de legging no programa, sabia que tinha uma peça nossa por baixo".

Mas a exposição na TV não impactou nas vendas, já que, por contrato, a cantora não podia divulgar marcas durante sua participação no reality.

O faturamento da empresa variam bastante: "Tem mês que vendo 50 peças, tem mês que vendo uma", fala a dona, que conta com a ajuda do marido e dos quatro filhos na administração da Trucss —eles ajudam a mãe fazendo entrega das peças, buscando as calcinhas no ateliê e comprando tecidos.

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