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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Trans ameaçada por denunciar exploração de mulheres ganha exílio na Espanha

Fernanda vai morar na Espanha por um tempo para resguardar a vida Imagem: Arquivo pessoal

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

13/02/2022 13h11

A técnica de enfermagem pernambucana Fernanda Falcão, 29, sente que precisa fugir do país para resguardar sua vida. Ela é uma mulher trans e conta que está jurada de morte. Ela atribui essa ameaça a denúncia de um espaço de prostituição na cidade Abreu e Lima (no Grande Recife), que mantém mulheres cisgêneras e transgêneras sob condições desumanas. Fernanda agora busca recursos, por meio de uma vaquinha, para comprar a passagem aérea para ir até a Espanha, onde foi aceita por uma ONG que apoia refugiados —e que vai abrigá-la em um exílio.

Fernanda é ativista LGBTQIA+ com trabalhos prestados em secretarias do governo de Pernambuco, além de atuação no GTP+ (Grupo de Trabalho Positivo). Hoje ela coordena a Rede Nacional de Mulheres Travestis, Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV/Aids. Hoje ela é a implementadora da profilaxia de pré-exposição em Pernambuco.

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A sua vida mudou desde junho de 2021, quando precisou deixar sua casa, no Recife. Fernanda relata que um grupo de homens chegou na casa dela chutando a porta. "Diziam que iam me calar", conta em entrevista a Universa.

Quando isso ocorreu, ela passou um período na casa de apoiadores até receber apoio da ONG "Front Line Defenders", uma entidade irlandesa fundada em 2001 para ajudar e proteger defensores de direitos humanos. Eles custearam a estadia dela por três meses fora de Pernambuco.

Mas o período acabou em setembro, e desde o seu retorno, Fernanda não tem parado em um lugar com medo de ser perseguida. "Eu aqui vivo escondida. Desde o retorno estou sub-existindo na casa dos outros e fazendo alguns trabalhos. É muito perigoso, eu tenho de me expor para não ficar com fome. Mas como é necessário, faço", diz.

A exposição na luta pelas trans já a fez ser ameaçada outras vezes. "Na condição de mulher negra e transgênera, vivencio essa desumanização não só social, mas institucional", afirma.

Carta sobre inclusão de Fernanda em programa de proteção de Pernambuco Imagem: Reprodução

Ao denunciar a condição de vida e ameaças, várias entidades nacionais e internacionais prestaram solidariedade e mostraram interesse em ajudar Fernanda. A reportagem teve acesso a várias as cartas de associações e grupos de direitos humanos.

Em 22 de janeiro, ela recebeu a declaração de que está inclusa no programa estadual de proteção aos defensores e defensoras dos direitos humanos de Pernambuco.

Ela conta que o programa que está inclusa teve alcance limitado. "Eles só fizeram mesmo ir na delegacia comigo e pagar R$ 200 por três meses para o psicólogo", diz.

Nesse período de volta, ela conta que sofreu uma tentativa de sequestro que a abalou profundamente. "Reagi e não entrei no carro, mas ainda conseguiram arrancar parte do meu cabelo puxando. Corri para um carro da polícia que estava passando, e riram da minha cara e disseram que os caras deveriam só querer um programa", relata. Depois desse episódio, abalada, ela admite que chegou a tentar suicídio.

Tentei solicitar um pedido de morte assistida, mas não fui atendida pela defensoria pública e não tenho como custear um advogado. Fiquei realmente louca, mas depois vi que não era a solução
Fernanda Falcão

Fernanda teve a casa quase invadida por homens após uma denúncia Imagem: Arquivo pessoal

Convite para o Canadá

Nesse período ela chegou também a receber o convite de uma outra companheira trans para que fosse morar no Canadá, mas a burocracia exigida a impediu. "Eu teria de tirar um visto e comprovar ter 1.200 dólares canadenses por mês na conta para poder me custear. Não tenho esse recurso", conta.

A situação de Fernanda rodou o mundo, até que uma ONG da Espanha ofereceu exílio a ela, custeando a estadia dela. Por isso, ela iniciou uma campanha para custear as passagens.

Antes disso, o desafio agora é conseguir, até a quarta-feira, dinheiro para bancar sua viagem a Salvador para ir ao Consulado da Espanha regularizar sua situação e viajar para o país. Ela precisa estar no consulado da Espanha às 10 horas. "Eu agora só tenho uma opção: vou para rua fazer programa, não tem outro jeito", conta.

A Vakinha aberta para compra da passagem para Espanha está andando bem. Neste domingo, ela chegou a 64% do total pedido: R$ 7.158.

Sair do país, porém, deixa Fernanda triste. "Na Espanha me sentirei segura, mas no fundo não queria isso. Sinto-me impotente recebendo tantas demandas e podendo fazer tão pouco. As minhas manas travestis continuam morrendo sendo humilhadas, e isso dói na minha carne. Mas quero viver, e para isso tenho que cuidar um pouco de mim para continuar a luta", diz.

Fernanda diz que ainda pretende voltar logo ao Brasil Imagem: Arquivo pessoal

Prisão injusta

A história de Fernanda é marcada por episódios de preconceitos, a começar dentro de casa. Aos 15 anos, quando contou a sua mãe que teve sua primeira experiência sexual com um homem, foi amarrada e passou por uma sessão de "exorcismo".

"Ela disse que aquilo era errado, chamou o pastor e o pessoal da igreja e ficaram: 'sai, sai, sai'. Viram que não saiu nada, e ela pediu para eu me retirar porque não sabia lidar comigo", relata.

A primeira experiência foi com o homem que é companheiro dela até hoje. À época, foi ele quem a abrigou após a saída de casa. "Ele me disse que eu era mulher", conta.

No meio do percurso, porém, veio um episódio que marcaria sua vida: a prisão (equivocada) em 2010, ano em que se formou como técnica de enfermagem e estava cursando a graduação de enfermagem.

Ela ficou detida por 3 anos e três meses, acusada de portar 18 pedras de crack e R$ 36 em cocaína. Durante o confinamento, ela foi estuprada por vários homens em celas lotadas. "Lá eu também fui torturada por agentes e era xingada sempre", lembra.

Mas a prisão era injusta. Ela acabou sendo absolvida após uma filmagem mostrar que a droga não era sua, mas sim, tinha sido posto por uma policial em sua bolsa.

Eu apenas frequentava o local, não sou nem nunca fui traficante e ainda precisei pagar propina aos guardas para ficar no ponto [de prostituição na capital pernambucana]
Fernanda Falcão

Fernanda em evento em 2015 que reuniu mulheres negras e trans no Recife Imagem: Arquivo pessoal

Pouco antes de sair da cadeia, ela conta que conheceu Maria Clara de Sena, única mulher trans a ocupar um cargo no Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura. Ela hoje mora no Canadá justamente por ameaças de morte. "Foi ela que me fez entender que eu tinha direitos humanos", diz.

Foi com ajuda dela que Fernanda fez seleção e passou para ser coordenadora de políticas estratégicas do sistema prisional.

Um dia, ela acabou sendo designada para acompanhar os inspetores do Mecanismo na mesma prisão onde foi detida, a Penitenciária Agroindustrial São João, em Itamaracá-PE). "Levei um tiro de um agente penitenciário que ficou incomodado com a minha presença. A bala atingiu o peito, precisei de uma cirurgia", lembra.

Após deixar a prisão, ela também se reaproximou de sua mãe e hoje ajuda a cuidar dela. "Não digo que teve pazes, nem briga. Minha mãe passou por um processo de envelhecimento e, assim, por algumas necessidades. Eu fiz questão de ajudar sem lembrar aquilo que passou porque foi doloroso para mim, mas também foi doloroso ver que minha mãe tipo foi obrigada a fazer aquilo, porque ela não sabia lidar, não sabia como as irmãs da igreja iam lidar", conta.

Fernanda diz que espera um dia voltar para o Recife e viver na cidade natal. "Quero seguir lá fazendo coisas para ajudar a todas que precisam, e que um dia eu possa voltar para minha casa e minhas manas", conclui.

Tradutor: Ameaçada após denunciar exploração de mulheres trans, ativista consegue exílio na Espanha

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