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'Verdades Secretas': 'Book rosa existe, mas não é óbvio', contam modelos

No TikTok, Bruna Espíndola produz conteúdo sobre a "vida de modelo pobre" Imagem: Arquivo pessoal

Júlia Flores

De Universa

21/10/2021 04h00

Clara Raddatz tinha 16 anos quando foi abordada por um "olheiro" na porta de sua escola, um colégio de Cachoeira do Sul, no interior do Rio Grande do Sul. "Quando recebi o convite para modelar, fiquei em dúvida, mas aceitei. Tive que me mudar para São Paulo ainda na adolescência e demorou cerca de um ano para que eu conseguisse um trabalho decente", comenta a jovem de 23 anos e 1,77 m de altura.,

O começo da carreira de Clara lembra a história de muitas garotas que sonham em ser modelo: elas deixam a vida no interior do país para correr atrás do desenvolvimento profissional em São Paulo. É o que acontece, por exemplo, com Angel (interpretada por Camila Queiroz), personagem principal da novela "Verdades Secretas" produzida pela Globoplay.

Na noite desta quarta-feira (20), estreou a segunda temporada da produção de Mauro Mendonça Filho. Para além das passarelas e ensaios fotográficos, a novela retrata os bastidores da carreira de modelo e deixa uma dúvida: o que ali é verdade e o que é ficção? Universa conversou com profissionais do ramo para descobrir.

Book rosa existe, mas não de um jeito óbvio

O assunto mais polêmico abordado por "Verdades Secretas" é, sem dúvida, o "Book Rosa" — serviço de prostituição de luxo oferecido por agências de modelo. "Depois que minha avó viu a novela, ela veio me perguntar se eu saía por aí transando com cliente e eu expliquei para ela que não é bem assim", fala a publicitária e influencer Juliana Calderari, de 28 anos, entre risadas, para Universa.

Juliana é modelo desde os 21 anos e diz nunca ter recebido nenhuma proposta nas agências em que trabalhou. Para ela, "Verdades Secretas" traz uma abordagem estereotipada da profissão: "Nunca fiz nenhum daqueles trabalhos. É claro que, no Instagram, recebo inúmeras mensagens e ofertas de propostas de viagem com tudo pago, para receber em dólares. Mas, dentro da agência, nunca vi isso acontecer".

Apesar de nunca ter recebido nenhuma oferta nas agências em que trabalhou, Clara sabe da existência de book rosa, "de um jeito não escancarado". "Quando você está começando, por exemplo, recebe muitos convites de promoters para festas — se quiser, toda noite pode ir a algum evento de graça —, restaurantes, é preciso ter cuidado. Muitas meninas se perdem, ficam deslumbradas, 'desistem' de modelar e só querem saber de balada", comenta.

"É mais fácil viver em festas do que fotografar 105 peças em um dia. Desse mundo para o book rosa — e a prostituição — é um passo", alerta Clara. Já Bruna Espíndola, de 22 anos, que trabalha como modelo comercial em Mato Grosso do Sul, diz que a produção da Globoplay fez com ela recebesse várias ofertas. "Já teve gente que me abordou pelo Instagram e ofereceu dinheiro para sair comigo. Lembro que era um homem bem mais velho". A modelo recusou a oferta.

Na primeira temporada de "Verdades Secretas", Angel acaba se envolvendo com Alex (Rodrigo Lombardi), que contrata seus serviços sexuais através do book rosa. A segunda temporada da novela também promete abordar a questão.

Não é life style, é profissão

Clara tem 23 anos e atua como modelo desde os 16 Imagem: Arquivo Pessoal

Ao se mudar para a capital paulistana, Clara ficava hospedada em apartamentos oferecidos pela sua então agência. Estes locais eram divididos com outras jovens que também estavam iniciando a vida profissional. Ela conta que chegou a morar com outras 14 garotas em um imóvel de 3 quartos. "Na temporada da São Paulo Fashion Week era uma loucura", relembra.

"A convivência nesses locais é complicada, um monte de menina adolescente vivendo junto. Era cabelo no ralo, louça na pia. No começo é o caos, a cobrança de deixar tudo organizado. As garotas se unem em questão de trabalho, de dar suporte, mas também rola uma competição, fica um clima ruim. Sempre falo que, se você consegue viver em um apartamento de modelos, você consegue viver em qualquer lugar", diz Clara, que hoje tem 23 anos e mora em Londres, na Inglaterra.

No aplicativo de vídeos TikTok, Clara produz conteúdo sobre a profissão. Com a hashtag #vidademodelo, ela fala sobre a rotina de trabalho que, apesar de parecer glamorosa, exige esforço e dedicação. "Tenho a impressão de que as pessoas acham que a vida de modelo é festa toda noite, limusine, champanhe. Você chega no cliente, tira duas fotos e só. Mas não é assim. O público precisa entender que modelar é uma profissão, não é apenas life style. Você acorda, pega seu ônibus às 6 da manhã, vai para o trabalho, tira foto com mais de 100 looks e volta para casa às 6 da tarde".

Já cheguei a ficar doente de tanto trabalhar. Tive uma infecção de pele causada pelo estresse. Vida de modelo é uma loucura: você não tem horário fixo, tem semanas de muito trabalho, outras não. É preciso saber se cuidar, comer e dormir direito - Clara Raddatz

Golpes e perrengues: a vida da modelo "pobre"

Juliana Calderari: "Depois de Verdades Secretas, minha avó veio me perguntar se eu fazia book rosa" Imagem: Arquivo pessoal

Assim como Clara, Juliana Calderari também compartilha conteúdo sobre #vidademodelo nas redes sociais. "Tomo muito cuidado com o que publico, sei que estou mexendo com o sonho das pessoas", comenta. Só no TikTok, a hashtag já tem mais de 82 milhões de views. "Procuro sempre orientar as jovens que estão iniciando a procurar profissionais confiáveis. É comum encontrar agências que cobram 2 mil reais para fazer um book de fotos e nunca dão retorno às meninas".

Recebo muitas mensagens de garotas que querem começar na profissão; o que mais alerto é sobre os riscos de golpe - Juliana Calderari

Foi por medo de cair em golpes de falso agenciamento que Bruna decidiu adiar o sonho de ser modelo. "Só investi na carreira quando fiz 18 anos e tive dinheiro do próprio bolso para começar. Primeiro, para ter certeza que a agência era de confiança. Segui todos os modelos da empresa no Instagram, queria saber se eles eram de verdade e ver como era a vida deles", diz.

Depois de comprovar a seriedade da empresa, Bruna, então, foi atrás do sonho. Hoje ela trabalha como modelo comercial e fashion, em Campo Grande (MS), onde conta com uma cartela de clientes. Porém, engana-se quem pensa que a vida dela é fácil. "Quem vê close, não vê perrengue", brinca.

Na pandemia, a modelo — que é formada em educação física — também passou a gravar vídeos para o TikTok. Um detalhe, porém, destaca o conteúdo de Bruna dos demais: ela se auto intitula "modelo pobre". "Eu não me via representada naqueles vídeos de modelos ricas, viajando, em passarelas internacionais. Na maioria das vezes eu preciso pagar para trabalhar, nem meu Uber o cliente quer pagar", cita.

É preciso ter dinheiro e força de vontade para começar. Participar de casting, ter gastos com atualização de fotos. Se eu fosse só modelo não teria dinheiro para fazer isso. A pessoa rala para ir atrás do próprio sonho - Bruna Espíndola

"Tem que tomar cuidado para não pirar com aparência"

Diferentemente de Clara e Bruna, Juliana não desfila em passarela e trabalha apenas em comerciais, já que não possui medidas dentro "do padrão" exigido pelas marcas — ela mede cerca de 1,65m de altura e modelos de passarela costumam ter mais de 1,70m.

A pressão estética é um dos desafios da profissão. "Quando se é modelo, a autocobrança fica afiada. Sua vida gira em torno da aparência, mas eu tomo cuidado para não me pilhar tanto. Faço exercício, me alimento bem, tento não ficar noiada com o peso", cita.

Na opinião de Clara, as cobranças sobre medidas corporais diminuíram desde que ela iniciou na carreira, mas ainda existem. Ela conta que, em uma agência onde trabalhou no Japão, toda semana as profissionais eram medidas para garantir que se mantinham no mesmo tamanho descrito no contrato. "Era uma pressão horrível, as meninas passavam o final de semana bebendo chá para caber nas medidas".

Na nova temporada de "Verdades Secretas", uma modelo plus size faz parte do elenco. Esta é a estreia de Mayara Russi na TV. "Uma mulher gorda em rede nacional, na Globo, representa muito para nosso mercado que foi e ainda é tão batalhado", diz a modelo para Universa.

Colocar uma mulher real, gorda de verdade, que tem barriga, em um local onde não é depreciativo considero muito importante para o que queremos construir. Estou muito feliz de fazer parte desse momento - Mayara Russi

Clara admite já ter feito "loucuras" para caber nas medidas "ideais". Hoje, porém, assume uma postura contrária: "No começo da carreira, fiz maluquices para seguir os padrões. Atualmente me arrependo disso, sei o quão arriscado é para a minha saúde". No TikTok, ela tenta orientar jovens a respeito do assunto e não revela informações sobre seu tamanho. "Falo sobre positividade corporal, indico agências que não vão torturar essas garotas; o que elas precisam entender é que, se o cliente gostar de você, ele vai gostar - não importa o tamanho".

"É preciso ter equilíbrio. Não adianta a modelo passar a semana comendo alface e bebendo água. Se estou com vontade de comer hambúrguer, vou lá e como. Não acho que essas dietas cíclicas funcionem. Acho que, se você está bem mentalmente, consegue cuidar muito melhor do corpo", opina.

Vinícius Zanetti, manager, agente e fundador da VZM Models, comenta sobre o assunto. "Essa cobrança por medidas ideais não vem da agência, mas sim do cliente. Quando uma garota quer começar na carreira de modelo, a gente já deixa claro para ela os desafios da profissão. Se ela, por exemplo, tem que perder peso para fazer passarela, a gente orienta ir a um nutricionista. Caso haja necessidade de fazer uma dieta maluca, descartamos a ideia, porque sabemos que a garota será infeliz".

"Hoje em dia vemos modelos curve e plus size na passarela? Sim. Mas vamos ser sinceros: dentro de 30 mulheres na passarela, apenas duas serão fora do padrão. O mercado ainda precisa mudar bastante" - Vinícius Zanetti

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