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"Me apaixonei por uma mulher e a igreja me mandou a um sítio para cura gay"

A designer Claudia Baccile Imagem: Arquivo pessoal

Claudia Baccile em depoimento a Fabiana Batista

Colaboração para Universa

01/03/2021 04h00

"Minha família frequentava uma igreja evangélica, mas não era assídua. Aos 14, fui com a minha avó, gostei do culto, e me converti. Seguia à risca o que aprendia. Deixei de ouvir músicas que não eram religiosas, e não frequentei mais espaços senão os da igreja. Apesar dos meus desejos lésbicos desde nova, ouvia -e concordava-, que homossexualidade é uma possessão do demônio, fruto de problemas psicológicos.

Participava dos grupos de louvor e de leitura da Bíblia, frequentava assiduamente os cultos e respeitava as palavras ditas. Por conta desta adequação, aos 18, decidi ser seminarista. Finalizei o ensino médio, e voei de Brasília a Minas Gerais para estudar durante dois anos numa escola. Eram em torno de 300 jovens que moravam, se divertiam, alimentavam-se e estudavam no mesmo prédio na cidade de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. Separados, meninos e meninas, eram divididos em grupos e liderados por seminaristas.

Já no segundo ano, conheci uma colega que acabara de chegar. Percebemos, meses depois, que nossa aproximação extrapolou os sentimentos de uma amizade, pois além de querermos estar juntas o tempo todo, nossos olhares se cruzavam repetidamente. Nessa situação, pedi para nos afastarmos, eu reconhecia um desejo pecaminoso.

Nas férias, ela me adicionou no MSN, e mais uma vez pedi para nos afastarmos. Apesar de concordar, ao contrário de mim, ela explicou que não pretendia lutar contra suas vontades: 'Se eu quero te beijar, vou te beijar'. Eu, apesar de apaixonada, preferi negar este sentimento.

Ao voltarmos, o que ambas sentíamos uma pela outra ficou insustentável, e em um encontro nos beijamos pela primeira vez. Esse foi o início de uma jornada de culpas. No dia seguinte, me arrependi, e pedi ajuda para uma seminarista na qual confiava.

Infelizmente, não fui amparada, mas exposta, porque outros líderes souberam e espalharam por toda escola. Foi difícil viver vigiada o tempo todo. Apesar de justificarem esse assédio como forma de proteção, hoje sei que tinham o intuito de nos punir.

'Fui enviada a um sítio no interior para ser curada'

Nos separamos, eu e a menina, e fomos proibidas de nos falarmos. Sentíamos falta uma da outra, e a distância aumentou nossa paixão. Passamos então a nos ver às escondidas. Em um dos encontros, nos beijamos pela segunda vez. E me senti culpada novamente. Fomos juntas conversar com a mesma seminarista. Pedimos ajuda, mas não fomos acolhidas. Para não sermos expulsas, fui obrigada a rejeitá-la.

Imagem: Arquivo pessoal

No encontro entre mim, o pastor, a seminarista e a garota, fui instruída a ler um versículo da Bíblia que abomina a homossexualidade, não lembro qual, e rejeitá-la. Pela convicção e adoração a Deus, cumpri com o combinado, mas foi horrível. Ela chorou, e eu chorei. A mulher indagou sobre meu choro, e disse que não entendia como aquele sentimento era possível. Na hora, lembrei da seminarista me falando de seu desejo por homens que não o marido. E pensei o quão contraditório era aquilo.

'Ou me curava ou teria que aceitar o celibato'

Depois das duas confissões, fui enviada à um sítio em Sabará (MG) para ser curada da homossexualidade. Lá, a igreja tem um sítio para curar as pessoas apontadas por eles como casos perdidos. Passei três dias isolada entre palestras e sessões de oração e cura. Ao chegar, tive taquicardia, mas não fui levada ao médico. Uma pastora interpretou aquilo como unção do Espírito Santo na minha vida.

Em conversas individuais com um pastor, fui instruída, caso não fosse curada, a cumprir o celibato. Em sessões em grupo eles colocavam a mão na minha cabeça e insinuavam expulsar algo dentro de mim.

No último dia, participei de uma palestra sobre libertação de pecados. Ficamos sentados e refletimos sobre eles. Depois, como ato profético, tiramos as roupas como forma de despir nossos pecados, e nos vestimos com outras para sermos aceitos por Deus. Percebi, nestas situações, que a tentativa de ajuda não é honesta, e não há acolhimento.

Ao voltar ao seminário depois desse período, fiquei meses sem conversar com a menina por quem estava apaixonada, e apenas nos falamos, em tom de despedida, três dias antes da minha formatura. Pela internet, expliquei que apesar de gostar dela, tínhamos que seguir nossos caminhos. Aquela conversa que julguei inocente seria o motivo de minha expulsão.

'Fui expulsa do seminário na véspera da formatura'

Na sexta-feira do fim de semana da celebração, a líder -aquela que nos delatou- organizou uma despedida para as formandas. Neste encontro, me pediu o computador emprestado, e sumiu depois da festa. Tive contato com meu notebook apenas no dia seguinte, e não entendi aquele episódio. Mais tarde fui chamada para uma conversa com dois seminaristas e um pastor.

Trancada com eles em uma sala, fui questionada sobre o que eram os conteúdos impressos na mesa que deduzi serem minhas conversas virtuais tiradas do meu computador. Sem oportunidade para me explicar, fui expulsa da instituição e proibida de me formar. Submissa, aceitei, e fui encontrada em prantos pela minha mãe, que havia viajado para assistir à formatura. Dali, fui embora escondida até das minhas amigas.

"Passei a questionar, não a existência de Deus, mas quem ele era"

Depois do que vivi, demorei para me restabelecer. O período entre 2009, meu último semestre no seminário, e 2010, depois de ser expulsa, foi o mais difícil da minha vida. Passei a questionar, não a existência de Deus, mas quem ele era, porque na igreja pouco se fala sobre amor e muito sobre pecado. Minha imunidade baixou, meu emocional ficou abalado, fui hospitalizada.

Desenvolvi depressão e ansiedade e sou medicalizada até hoje por psiquiatras. No entanto, apesar desse abalo emocional, fiz faculdade e sou designer.

Não foi fácil redescobrir a vida longe das doutrinas religiosas. Tudo era novo para mim. Felizmente tive amigos que me ajudaram, pois precisei me adequar à nova vida social. Por exemplo, entender que não há mal em me relacionar com pessoas não religiosas. Ou que não vou para o inferno por ouvir músicas que não são gospel. São episódios simples, mas me senti saindo da caverna do mito de Platão.

Além desses acontecimentos, vi minha sexualidade e tesão castrados. Demorei anos para me permitir, aceitar e entender meus desejos. Foi uma redescoberta. Os sentimentos alimentados pela relação homoafetiva no seminário precisaram ser tratados na terapia porque eram confundidos com lembranças traumáticas.

Onze anos depois, sou casada com uma mulher que me presenteou com um filho de outro relacionamento, que também é afetuoso comigo. Essa relação me traz renovação, sobretudo na forma com a qual consigo me desenvolver pessoalmente. Considero que superei boa parte do que vivi, mas quero justiça. Com a minha história, procuro ajudar para que outras pessoas não precisem passar pelo que vivi."

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