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Análise: por que elegemos candidatos com histórico de violência de gênero?

Imagem: Antonio Augusto/TSE

Camila Brandalise

De Universa

04/12/2020 04h00

Na reta final das eleições, um episódio de violência de gênero do agora vice-prefeito eleito de São Paulo Ricardo Nunes (MDB) se tornou assunto de debates e entrevistas. O prefeito reeleito de Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), foi acusado de estupro por uma funcionária. Em Curitiba, o vereador eleito Denian Couto (Pode) ameaçou a ex-namorada de morte. Em cidade do Pará, o próximo vice-prefeito, Marcelo Mikaloka (PSD), foi denunciado por satisfação sexual diante de uma criança.

Todos eles foram eleitos no pleito deste ano. Apesar de parte dos casos estar ainda sob investigação, especialistas chamam a atenção para o fato de as denúncias não pautarem o eleitorado.

Para a cientista política e professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV (Fundação Getulio Vargas) Graziella Testa, há duas explicações. A primeira é que as informações, muitas vezes, não cheguem aos eleitores. Em segundo lugar, ela vê o impacto negativo do machismo e da crença de que violência doméstica é algo que diz respeito somente ao casal — a velha e equivocada ideia de que "em briga de marido e mulher não mete a colher".

"Infelizmente, existe essa percepção [por parte do eleitorado] de que o que acontece no âmbito privado não vai influenciar na esfera pública e na atuação política e profissional do indivíduo. Há toda uma literatura que mostra isso", afirma Graziella Testa.

E exemplica: "Então, ele pode ser um agressor no âmbito privado, mas no público ser um bom politico, alguém confiável. Existe uma separação evidente, como se isso não fosse propriamente um defeito de caráter ou um ponto necessariamente negativo no trabalho que ele desempenha, o que é evidentemente reprovável".

Já a advogada da Rede Feminista de Juristas Maíra Recchia, coordenadora-geral do Observatório de Candidaturas Femininas da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo), acredita que esses casos mostram que a sociedade ainda acha a violência de gênero um problema menos importante.

"A população só fica chocada mesmo quando são crimes cruéis ou quando há grande exposição da mídia. Caso contrário, é como se fechasse os olhos para o assunto", avalia.

"A violência contra a mulher é naturalizada"

Mesmo que os casos ainda estejam em curso ou tenham sido arquivados, sem condenações, Maíra ressalta que eles não são discutidos com a importância que deveriam. "Isso mostra nossas raízes culturais e educacionais. A violência contra a mulher nos seus mais diversos aspectos ainda é naturalizada."

Ela chama a atenção também para o perfil do agressor. "Ganha pano de fundo quando vemos que o agressor é uma pessoa bem colocada social e economicamente, é um homem branco, de boa aparência. Acaba sendo um fator para que ele seja aceito pela opinião pública sem maiores questionamentos."

"O pessoal é político"

Doutoranda em Ciência Política pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora na área de estudos feministas, Beatriz Rodrigues Sanchez acredita que o atual cenário deixa evidente o quanto é preciso avançar na discussão sobre violência de gênero. "É uma questão pública e, portanto, de responsabilidade do Estado e dos políticos", afirma.

"O slogan dos movimentos feministas da década de 1960, que exclamava 'o pessoal é político', continua fazendo bastante sentido atualmente. É a partir do trabalho de mobilização, formação e conscientização da população que poderemos aos poucos alterar a opinião pública sobre esse tema."

Conheça alguns casos:

Em São Paulo, acusação de agressão

  • O caso: Em 2011, a mulher do vice eleito Ricardo Nunes, Regina Carnovale, registrou um boletim de ocorrência de violência doméstica contra o marido -- de quem se separou na época, mas mais tarde reatou o casamento, mantido até hoje. A existência do documento foi revelada pela Folha de S.Paulo em outubro. Nunes, "inconformado com a separação", diz o B.O., estava "efetuando ligações proferindo ameaças". Não houve abertura de processo.
  • Outro lado: após a publicação desta reportagem, a assessoria de Ricardo Nunes enviou nota à redação se posicionando sobre o tema. "Nunca houve qualquer ato de violência da parte de Ricardo Nunes contra sua esposa, Regina. Há dez anos, o casal passou por uma crise, e Regina foi para a casa da mãe. Inconformado, Ricardo insistiu muito para seu retorno, com ligações e tentativas de encontrá-la para conversar", diz a nota.

Em Florianópolis, acusação de estupro

  • O caso: Reeleito, o prefeito Gean Loureiro foi acusado de estupro em outubro por uma ex-funcionária da Secretaria de Turismo, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico. Segundo o depoimento dela, os crimes ocorreram em 2017, quando ele era o chefe da pasta, e 2019. Em todos os casos, os atos foram cometidos no ambiente de trabalho. Uma semana após a denúncia vir à tona, Loureiro subiu 16% nas pesquisas eleitorais.
  • Outro lado: A reportagem procurou Gean Loureiro para comentar sobre o caso. Em nota, um integrante de sua equipe afirmou que a denúncia "não passou de uma armação eleitoral". "O fato, que teria ocorrido há um ano, mas que a candidata a vereadora só registrou boletim na véspera da eleição, foi planejado, filmado sem autorização do prefeito, e claramente consensual."

Em Curitiba, ameaça de morte

  • O caso: Denian Couto, eleito vereador, respondeu a uma denúncia de ameaça contra uma namorada, registrada em janeiro de 2019. Na gravação apresentada à polícia, Couto afirma: "Cala a boca que eu vou te matar". E diz: "Filha da puta, puta, vadia, retardada, burra do caralho".
  • Outro lado: Procurado pela reportagem, o advogado de Couto respondeu por meio de documentos da Justiça, um habeas corpus de pedido de trancamento do inquérito policial, "em razão da precariedade dos elementos necessários à configuração do crime de ameaça". No documento, afirma que "não se observa risco iminente à integridade física e psicológica da suposta vítima", ainda que ela tenha manifestado interesse em abrir um processo contra Couto.

No Pará, satisfação sexual diante de criança

  • O caso: Na cidade de Vigia de Nazaré, a cerca de 100 km de Belém, o atual vereador e vice-prefeito eleito Marcelo Mikaloka, foi denunciado em novembro de 2017 por "satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente". A reportagem teve acesso a dados do processo. A vítima relatou que, aos 12 anos, ele chegou a deitar em cima dela na cama, tocou em partes do seu corpo, ouviu dele frases eróticas. Um grupo de mulher da cidade criou a mobilização Mulheres Vigienses em Movimento e afirma que o que aconteceu com a vítima é comum na região.
  • Outro lado: A reportagem tentou contato por telefone, e-mail, mensagem pelo Facebook e pelo Instagram, sem retorno.

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