Doutores na tela

Chefe da Philips na América Latina prevê revolução da saúde com uso dos nossos dados e telemedicina

Gabriel Francisco Ribeiro De Tilt, em São Paulo

As dores provocadas pela pandemia do coronavírus fizeram o setor de saúde se transformar mundial. Além de descobertas científicas e importantes avanços médicos, ficará para a história uma virada no uso das tecnologias para melhorar o atendimento dos pacientes. É o que acredita Fabia Tetteroo-Bueno, executiva-chefe da Philips na América Latina. Em entrevista a Tilt, ela ressaltou que muitos avanços estavam há anos a ponto de mudar e foram acelerados pelas novas demandas.

Um exemplo claro é o atendimento remoto a pacientes (a telemedicina), que esbarrava em vetos de associações médicas e leis, principalmente no Brasil, mas foi flexibilizada para evitar que as pessoas fossem aos hospitais. Mas não para por aí. Talvez a grande revolução mesmo seja no uso dos dados dos pacientes —o que, obviamente, vem acompanhado de preocupações sobre abusos, vigilância e falta de privacidade.

Para a Philips, este avanço era esperado há muito tempo e abre ainda mais as portas para que a empresa, que ficou conhecida por aparelhos de TV e som, mostre que agora seu foco é na área médica.

Calejada com tufões

Fabia é cria da casa: começou como estagiária na área de TVs há 23 anos e subiu na companhia até chegar ao cargo máximo da América Latina. A brasileira mora há tanto tempo fora do país que tem dificuldades com algumas palavras em português. Atualmente no Panamá, ela já viveu na Alemanha, Holanda, China e nas Filipinas, onde ganhou experiência com desastres naturais a todo momento.

Isso foi um grande diferencial quando precisou conduzir a Philips durante a pandemia —ela assumiu o cargo em 1º de março, 15 dias antes de todos os escritórios serem fechados como medida de prevenção.

"Nas Filipinas, eram 30 tufões por ano. Eu ia de uma crise para outra. Você cria uma casca e sabe como lidar. Vejo colegas gerentes de outras empresas entrando em pânico, porque é a primeira pandemia deles. Eu não entro em pânico... Crise, principalmente na América Latina, sempre vai ter", afirma.

Mas, uma crise sanitária numa empresa que lida com saúde não deixa de ser um desafio. Atualmente, a Philips trabalha com um terço dos negócios voltados a consumidores e dois terços diretamente com outras empresas, na maioria hospitais —um dos setores que mais sofreram pressão na pandemia.

Das TVs para a saúde

Tilt: A Philips é mais conhecida no Brasil pelas TVs, aparelhos de som e afins. Como a empresa mudou totalmente o foco nos últimos anos?

Fabia Tetteroo-Bueno: Hoje, um terço do nosso negócio é para o consumidor e dois terços para área de saúde. Somos uma empresa de quase 150 anos, um conglomerado que tinha de tudo antigamente. Mas, percebemos que somos fortes onde tem inovação. A nossa parte de consumo é focada em saúde e bem-estar, por isso. É onde há inovação e podemos nos beneficiar.

No Brasil, temos a parte de saúde para mãe e bebê com a linha Avent, ligada ao app Gravidez+ [com dicas para gestantes acompanharem o desenvolvimento do bebê], que é um sucesso. Não é só vender mamadeira, mas ter solução para mães que estão amamentando os filhos e precisam voltar ao trabalho. Isso é inovação.

Tilt: Quais os motivos e as consequências dessa mudança?

Fabia Tetteroo-Bueno: Tudo o que não era relacionado a essa parte de saúde fomos deixando de lado. Melhor entregar para alguém especializado, licenciar nosso nome e fazer acordos. Queremos dedicar nossos 12% de receita à pesquisa e desenvolvimento em saúde, uma área que acreditamos que somos fortes. Não é pouco dinheiro: é 1,8 bilhão de euros.

Todo mundo pergunta por que agora, mas existe uma foto do último imperador chinês, lá no início do século passado, sendo tratado com uma máquina de raio-x da Philips. Então, não estamos entrando agora. Estamos há mais de 100 anos na área de saúde, é que a parte de consumo sempre chamou mais a atenção. Se alguém faz TV melhor do que nós, melhor vender a marca para eles.

Tilt: O que vocês têm disponível para o setor de saúde atualmente?

Fabia Tetteroo-Bueno: Acreditamos no "Health Continuum", um ecossistema voltado a prevenção, diagnóstico e até tratamento. Tem também a parte de saúde em casa, com equipamentos para tratar do sono.

Quando vendemos as outras áreas da empresa, o dinheiro foi usado para comprar empresas nas áreas de saúde. Estamos ficando mais velhos como sociedade, vivendo mais, e precisamos viver com qualidade. Então, é uma das áreas que achamos que o futuro traz muita oportunidade e pede muita inovação.

Novo normal

Tilt: Como a inteligência artificial vai remodelar os cuidados de saúde?

Fabia Tetteroo-Bueno: Com a covid-19, várias coisas estão sendo aceleradas. Havia muitas barreiras para telemedicina na América Latina. Perdia-se uma hora para ir ao médico, uma hora esperando, 15 minutos de consulta, depois voltava para casa e levava mais uma hora. Super-ineficiente. Agora, todo mundo começou a aceitar a telemedicina e querer ter o mínimo possível de pessoas no hospital para evitar infecção.

Temos soluções que antes não eram muito usadas, como o gerenciamento de saúde da população. Estamos em mais de 1.500 hospitais com nossa solução Tasy de gestão hospitalar, com informações de pacientes. Com análise de dados e inteligência artificial, é possível formar grupos de pessoas com uma tendência a problemas do coração e tomar ações para eles. Então, toda essa parte vai ser muito mais eficiente.

Tilt: Como você imagina que vamos cuidar da nossa saúde daqui a dez ou 15 anos?

Fabia Tetteroo-Bueno: Espero que tenhamos um futuro muito mais focado em prevenção do que tratamento de doenças. Acho que vamos depender menos de hospitais. Hoje em dia, se você precisa de qualquer coisa vai a uma emergência de hospital. Há muitas outras maneiras: pode fazer mais tratamento em clínicas, em casa. Sou casada com um holandês e os avós dele moram em casa especializada para idosos. Não é um asilo. A casa tem infraestrutura médica caso necessitem a qualquer momento. Qualidade de vida na velhice vai vir com esse tipo de inovação.

Tilt: A telemedicina foi aprovada para ampla utilização durante a pandemia no Brasil. Você acha que veio para ficar?

Fabia Tetteroo-Bueno: Voltar para trás é ir contra o futuro. Seria a mesma coisa que colocar vela na rua em vez de lâmpada. Não se pode vetar a tecnologia para salvar uma profissão, e muitos médicos temem isso. Há uma oportunidade muito grande para os médicos que perceberem isso. A telemedicina depende da necessidade: se for um pré-natal ou consulta ginecológica, precisa estar lá presencialmente, mas se for um follow-up [acompanhamento] de diabetes, pode fazer online. É algo que veio para ficar e muitos médicos jovens são positivos sobre isso.

Tilt: Por que você acha que existe essa rejeição? Os tratamentos remotos não podem precarizar a saúde e piorar diagnósticos?

Fabia Tetteroo-Bueno: Eu acho que tudo na vida é hábito. Se você está acostumado de uma maneira, é mais difícil se adaptar à outra. Por isso que algo como a covid acelera novas tecnologias. A maioria dos médicos que eu falo não quer voltar atrás, só fazem a ressalva de que em alguns momentos não dá para ser remoto. O problema é que agora está desbalanceado, você está evitando ir ao hospital. A resistência é a existir só telemedicina, e nisso concordo. Há momentos que precisam ser presenciais mesmo. A questão agora é aprender quando precisa ser físico e quando não precisa.

Os riscos da saúde digital

Tilt: Muitas pessoas temem a digitalização da saúde por medo do compartilhamentos de dados sensíveis. Como ter certeza de que isso não nos prejudicará mais tarde?

Fabia Tetteroo-Bueno: De um lado, ter acesso à informação de um paciente é muito importante para hospitais e setor público. Aqui no Panamá fui a um médico antes da pandemia. Entrei de um lado para fazer um exame, andei 300 metros para fazer outro e tive que passar todos meus dados novamente. Então imagina se você é um paciente do SUS que hoje vai ser tratado em Barueri [SP] e amanhã em Santo André [SP]. Você perde tudo, é uma ineficiência absurda. Não só por ter de falar tudo de novo, mas porque perde o histórico. Às vezes, você tomou um remédio, não pode tomar de novo, mas o médico não sabe disso.

As seguradoras também têm um problema enorme, porque os exames são repetidos —vou num médico, não confio nele, vou em outro e ele pede o mesmo exame. Eu acho que ser dono dos seus dados e levá-los consigo onde for vai melhorar muito o serviço. Hoje há riscos da informação ser usada contra nós em tudo, não só na saúde. É só ver como politicamente nossos dados estão sendo mal utilizados. Mas é por isso que existem regras. A LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados] é muito boa e, na saúde, acho que ela vai nos deixar mais protegidos.

Tilt: Um outro receio das pessoas são os hackers. Na Alemanha, um hospital teve o sistema sequestrado e isso causou uma morte. Podemos ficar mais seguros?

Fabia Tetteroo-Bueno: Já sofremos esse risco, só não sabemos. Hoje em dia, se você está no hospital e a luz cai, corre risco. Mas, todos têm gerador: se cair, volta. E é assim com software. Você não pode ter todos os dados em um só lugar sem backup. O problema de cibersegurança vai crescer, bancos e hospitais vão ser atacados. Bancos melhoraram muito a qualidade da sua segurança de software e backup. É um risco que vem com a tecnologia, mas temos que nos preparar.

Nova saúde, novas regras

Tilt: A Philips está dando mais ferramentas para médicos ou para os usuários?

Fabia Tetteroo-Bueno: Estamos focando em três níveis. Antes, era muito sobre vender uma máquina. Não acreditamos que seja esse o futuro. Acreditamos que seja sobre softwares e digitalização do setor, telemedicina, inteligência artificial e análises de dados. Essa necessidade de automatização, otimização e fazer consultas baseadas em dados, ter grupos de tratamento, é uma das nossas áreas.

A segunda área é a parte de soluções de ponta a ponta. Não pensar somente no custo da máquina, mas quantos exames pode fazer e como melhorar a produtividade. Acreditamos bastante na consultoria ao cliente. Às vezes, ele tem uma Ferrari sendo usada na primeira marcha.

A terceira perna é de soluções conectadas, que é o exemplo do app Gravidez+, que conecta o paciente ao médico. Temos também soluções de saúde bucal que acompanham diariamente a limpeza da boca, e o paciente pode até levar o resultado ao dentista.

Tilt: A tecnologia pode levar a automedicação e autodiagnóstico. Como evitar isso?

Fabia Tetteroo-Bueno: Essa é a maior preocupação que o setor médico tem que ter. Vamos precisar de boas regulamentações, do que pode e não pode ser online. Tem que regulamentar primeiro a privacidade, pois são informações muito pessoais sendo gerenciadas. A segunda parte é de tratamento incorreto, de automedicação. Por exemplo: você não pode nunca comprar online um remédio tarja preta e entregarem a você sem verificação.

Se não houver maneira de controlar a venda em páginas [de internet], vai ser um problema. Não vendemos qualquer coisa online, porque já existem regras que impedem, por exemplo, vender ultrassom online. Temos um ultrassom portátil para médicos levarem a lugares remotos. Colocamos em uma página dos Estados Unidos e quem mais pedia eram mães que queriam checar a barriga, mas a regra é ter registro médico para comprar, não disponibilizar para o consumidor. E está certíssimo.

Há muitas oportunidades com conectividade e saúde, que vão deixar os produtos mais baratos e acessíveis, mas precisa de regulamentação.

Tilt: Mas a tecnologia vai esperar pelas regulamentações? Normalmente a tecnologia vem antes e depois temos que correr atrás dos prejuízos...

Fabia Tetteroo-Bueno: A tecnologia sempre vem mais rápido. A telemedicina existe faz mais de 15 anos. Não estava sendo usada, porque não podia. No Brasil, a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e o governo restringem bastante, não podemos colocar qualquer coisa na nossa página online. Somos bastante protegidos no Brasil se comparado com outros países da América Latina, mas vamos ter que acelerar algumas decisões nos próximos meses. A covid está pedindo isso. A questão agora é ir relaxando essas proteções para liberar mais tecnologias no mercado.

Tilt: Você vê esse foco na saúde como um desejo realmente grande dos consumidores? Acha que vai ter um impulso com a pandemia?

Fabia Tetteroo-Bueno: Hoje, escutamos muito mais pedidos de como se cuidar melhor, comer melhor... Está crescendo demais e vai crescer ainda mais. O consumidor millennial e a geração Z são muito mais conectados, querem ter melhor tratamento e prevenção. Nosso executivo-chefe [Frans van Houten] viu 20 anos atrás que tínhamos que focar em saúde e viu muito bem. Tenho orgulho de estar em uma empresa de 150 anos que conseguiu se renovar e focar em áreas em que acreditamos que a nossa inovação pode agregar.

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