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OPINIÃO

Glória Maria mudou tudo apenas por estar lá e ser brilhante

A apresentadora Glória Maria - Reprodução
A apresentadora Glória Maria Imagem: Reprodução

Fabiana Moraes

Colaboração para Splash, do Recife

04/02/2023 04h00

"Como ela pode fazer tudo isso?"

Essa era a pergunta que me atravessava todas as vezes que via Glória Maria na televisão: ela estava em uma montanha-russa, estava falando com Michael Jackson, estava em uma cerimônia rastafári na Jamaica, estava entrevistando Freddie Mercury, estava encantando uma menina que queria ser repórter, estava com Madonna, estava na Guerra das Malvinas, estava na invasão da Embaixada do Peru, estava da Copa do Mundo na França.

Era isso: Glória estava. E esse estar era povoado de graça, de raça, de inteligência, de intimidade com o ato de comunicar, de espontaneidade, de técnica. Em uma frase (se o pessoal do UOL deixar): Glória era foda.

Mas só há poucos anos eu entendi que meu espanto também estava absolutamente ligado ao fato de aquela mulher ter a pele escura, retinta. Aquela pele que eu, na época morando ou em conjuntos habitacionais ou em um morro, associava a lugares subalternos, pauperizados, servis.

Foi algo apresentado continuamente a milhões de pessoas pela pedagogia da TV: cor de gente feita para sofrer e prestar serviço. Mas Glória — e Pelé, outro nome que se inseriu como talentoso e célebre em um momento no qual o racismo era tão presente quanto negado — quebravam isso tudo. Suas presenças foram e continuam epistemológicas.

Gloria Maria - Reprodução/ TV Globo/ Memória Globo - Reprodução/ TV Globo/ Memória Globo
Gloria Maria voltou para local onde o viaduto caiu para reportagem 10 anos depois, em 1981
Imagem: Reprodução/ TV Globo/ Memória Globo

Vendo a jornalista, vendo Pelé, vendo a atriz Ruth de Souza (primeira atriz negra a encenar no Theatro Municipal do Rio), eu não pensava só em dor, em sofrimento, em escravidão. Pelo contrário: eu via excelência, autonomia, inteligência, competência.

Se a TV nos ensinou que éramos ótimos e ótimas figurantes em novelas sobre o período escravocrata, as imagens de Glória, de Pelé, de Ruth, nos informavam que dor e sofrimento não deveriam ser as únicas características associadas à nossa pele.

Naquele momento, assim como ela, eu ainda tinha pouco letramento racial, algo que se tornou felizmente comum em um Brasil que deixou de ter medo de falar sobre negritude, racismo, beleza, poder, diferença, gênero.

E, se chegamos a essa falta de medo, precisamos atribuir esse caminho também à Glória, cujo ativismo era principalmente estar. Um estar que proporcionou a nós e a muita gente a certeza de que nossas presenças não deveriam ser lidas como atrevimento: se não parecíamos "comuns", deveríamos e poderíamos ser.

"Não teve nenhuma menina negra nesse país que não tenha visto em algum momento Glória Maria como algo não natural, porque Glória tornou natural para gente ver uma mulher negra na televisão. Era ligar a TV no domingo e ela estava ali. Acontece muito quando você é jornalista e negra ouvir das pessoas 'você vai ser a próxima Glória Maria', porque ela se tornou um ícone para gente, uma força referencial. Ela tornou natural que mulheres negras estivessem em todo mundo, que pessoas negras fossem vistas também como elegantes, viajadas, boas profissionais. É complicado pensar na morte dela, porque ela estava em todos os lugares. Ela abriu o caminho para mim e para outras, sempre se mantendo lá na frente, na ponta, mostrando que podemos fazer o que a gente quiser."

O depoimento de Jéssica Santos, da Ponte Jornalismo, é uma das pérolas que revelam a insurgência da repórter e apresentadora global que nos deixou na quinta-feira (2). Assim como eu, ela sofreu um baque: não conseguimos associar a jornalista à doença, à morte. É o caso de pensarmos, porque sempre esquecemos, que vida e partida não são dicotômicas, e sim irmãs.

"É complicado pensar na morte dela, porque ela estava em todos os lugares"

Gloria Maria - Reprodução/Globo - Reprodução/Globo
Glória Maria em entrevista com Michael Jackson em 1996
Imagem: Reprodução/Globo

A condição célebre da filha de um alfaiate e de uma dona de casa foi marcada também por uma cobertura midiática muitas vezes perversa. Não resta dúvida que o corpo de uma mulher é duas (três?) vezes mais escrutinado que o dos homens uma vez que atinge a condição de estrelato.

"Qual a idade de Glória?", "O que ela faz para manter um físico condicionado?", "Como ela mantém o rosto jovial?", "Como foi a adoção das filhas?", "Quem é seu namorado?", Etc. "Eu nem sabia que ela estava doente" foi a frase que ouvi de amigos — e que eu também pensei quando soube de sua partida.

Como assim Glória ousa nos deixar sem ter nos informado da sua doença, sem vermos sua jornada final? Como assim um velório fechado para parentes e amigos? Por que sua briga para manter nacos de sua intimidade foi constante?

A cultura das celebridades, sabemos, apaga constantemente o trabalho de uma mulher para voltar-se para sua alimentação (se magra, melhor), sua idade (se jovem, melhor), seu gênero (se cisgênera, melhor), suas filhas e seus filhos (se ainda não teve, qual é a razão?).

É assim que muitas de nós aderimos aos preceitos esperados socialmente para conseguir mais visibilidade midiática. Mas a adaptação estratégica é, também, diversas vezes permeada pelo próprio sumiço de si, e isso foi muito mais comum para gerações de pessoas negras que viveram um Brasil no qual falar de racismo era quase proibido.

"Eu sempre falo que a importância de pessoas negras apresentando jornais, na televisão, é muito mais sobre expandir o imaginário"

Gloria Maria - Divulgação/Globo - Divulgação/Globo
Glória Maria virou referência para o jornalismo brasileiro
Imagem: Divulgação/Globo

Quando a jornalista Eduarda Nunes ouviu Glória sendo entrevistada no podcast Mano a Mano, por exemplo, achou equivocadas algumas questões colocadas pela apresentadora e repórter. Perspectivas sobre racismo, mérito, sucesso etc. "Só depois entendi que ela não era como eu, que me formei em outro contexto, ligada a movimentos sociais. Glória estava fazendo o dela. E fez. Ela impactou e cumpriu seu papel".

Os pais de Eduarda limitavam seu acesso à TV, principalmente no horário noturno, mas isso não foi um obstáculo para que a menina e depois adolescente não fosse atravessada pela presença de Glória. Assim como aconteceu com Jéssica, muita gente a abordou quando entrou no curso de jornalismo da UFPE.

"Me perguntavam se eu ia ser a próxima Glória Maria e eu falava que não queria ser repórter de TV. Depois, fui entendendo que essa pergunta tinha uma amplitude bem maior, era sobre espaços e era sobre mulheres negras de pele mais escura, já que geralmente as oportunidades no entretenimento, na comunicação, no jornalismo, são para pessoas negras de pele mais clara. A atuação e a presença dela têm referência forte tanto no mundo profissional quanto na imaginação. E eu sempre falo que a importância de pessoas negras apresentando jornais, na televisão, é muito mais sobre expandir o imaginário".

Essa presença-referência, aliás, extrapolou as linhas da tela da TV: se nela a jornalista foi a primeira a aparecer em uma transmissão a cores (1977) e décadas mais tarde na primeira transmissão em HD (2007), foi fora de um meio técnico que ela usou a Lei Afonso Arinos contra a discriminação racial pela primeira vez.

Era 1970 e o gerente de um hotel no Rio de Janeiro disse que ela deveria usar a porta dos fundos para acessar o local. O infrator saiu do país e pagou uma multa ridícula.

Poucos anos depois, o racismo escancarado mordia os calcanhares de Glória mais uma vez: o presidente militar João Figueiredo (mandato de 15 de março de 1979 a 15 de março de 1985) se referia a todo momento à jornalista como "a neguinha da Globo" e pedia que não a deixassem chegar perto dele. Uma fala racista, e por isso idiota, de alguém que não via à sua frente uma princesa do Cacique de Ramos.

Viver com o coração

Gloria Maria - Reprodução/ Memória Globo - Reprodução/ Memória Globo
Gloria Maria em um dos depoimentos que deu para o Memória Globo
Imagem: Reprodução/ Memória Globo

Uma das fundadoras no site jornalístico Nós, Mulheres da Periferia, Semayat Oliveira estava presente na citada entrevista no podcast Mano a Mano (onde é consultora e pesquisadora) na qual Glória era a convidada. Assim como Eduarda, a jornalista, até aquele momento, encarava como controversa a postura da apresentadora sobre questões raciais. Hoje, percebe que o pensamento era um engano.

"Quem é capaz de dimensionar a resiliência da primeira mulher negra que apareceu com destaque nos jornalísticos da TV brasileira? Glória é imensa e muito da sua imensidão está na força dela ter mantido a essência do jornalismo: ouvir e sentir o outro foi o coração da sua trajetória. Não é à toa que toda reportagem dela tem um encanto. E a forma como ela manteve a confiança em si e a certeza de sua excelência são inspiradoras, principalmente em um país extremamente racista e que insiste em impor limites ao avanço da maioria da população brasileira, que é negra."

Semayat conta que a oportunidade de a ouvir durante a gravação foi tão forte que a levou às lágrimas: aquela foi uma chance de conhecer não a celebridade, a Glória, e sim a Maria, como gostava de ser chamada.

"A força e sensibilidade da Maria que conhecemos são imensuráveis. Ela é um marco no jornalismo brasileiro. Uma inspiração para meninas, jovens, mulheres e pessoas negras. E é, para mim, um exemplo de como viver com o coração, liberdade e sem medo de ser quem é. Aprendi com o jeito dela a fazer jornalismo, em sua compreensão de que o brilho é do outro, e não nosso. Eu acho isso muito bonito. Seu legado nunca morrerá", diz Semayat.

Glória, Maria, desejamos que você descanse em poder, que descanse em beleza. Falar sobre sua vida e sua partida me remete à outra mulher negra jornalista talentosíssima que partiu cedo. Seu nome era Graça Araújo. Espero que vocês se encontrem em algum lugar e fofoquem sobre política, vida, marombas, joias (de ouro, diamante, plástico, latão).

Aqui, a gente vai seguir estando. Sendo presença. Não é atrevimento: é nosso caminho natural.